Sofia, o rosto de quem não vemos

08/05/2016

Por Thais Silveira Pertille - 08/05/2016

Neste mês de maio o Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF - lançou a campanha “Eu Sou Sofia” com o objetivo de dar visibilidade às milhares de crianças pelo mundo que se encontram em situação de vulnerabilidade por conta de processos migratórios forçados.

Sofia é uma personagem criada por tecnologia 3D a partir de 500 imagens de crianças reais e oriundas de países que se encontram em situações de emergência como é o caso do Sudão do Sul, Haiti, Somália, Ucrânia, Níger, Iêmen e Síria, por exemplo. Sofia pretende dar visibilidade às crianças que foram obrigadas a deixar suas casas por conta de guerras civis movidas por contextos políticos, perseguições religiosas, desastres ambientais, para tentar o refúgio em outros Estados, outras culturas, em busca de outras oportunidades.

No âmbito do Direito Internacional, desde 1954, quando entrou em vigor o Estatuto do Refugiado das Nações Unidas, redigido em 1951, fruto da Conferência de Plenipotenciários da ONU, há proteção destinada às pessoas expostas a diversas formas de violência em seus territórios e que, por isso, precisam e desejam migrar. Por conta do Protocolo de 1967 a ONU transmitiu aos Governos, não apenas aos signatários da Convenção de 1951 (Genebra), a importância de que fossem atendidas as medidas previstas quanto aos refugiados a partir de processos internos de construções legais que pudessem atender aos anseios das normas internacionais. O termo refugiado, desde então, é destinado a “qualquer pessoa que temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontre fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele”.

O Estatuto pode ser visto como uma das reações às duas grandes guerras do século passado, quando a humanidade tomou conhecimento de seu poder autodestrutivo e os Direitos Humanos foram iniciados na pauta principal das discussões da comunidade internacional. Calcula-se que a Segunda Guerra Mundial, além dos 60 milhões de mortos, provocou o deslocamento de mais de 40 milhões de pessoas. (COMPARATO, p. 225, 2015).

Por conta das estratégias da ONU na tutela dessas questões, criou-se em decorrência da Convenção de Genebra o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Com sede na mesma cidade suíça e contando com vários escritórios espalhados pelo globo, também no Brasil, sediado em Brasília, ao ACNUR cabe cobrar a efetividade das medidas tomadas em nível internacional sobre a política de proteção aos refugiados.

E são os dados do ACNUR que informam que hoje cerca de uma em cada nove crianças do planeta vive em zonas de conflito, o que equivale concluir que o número de meninas e meninos que podem estar em situação de refúgio gira em torno de cerca de 250 milhões (ACNUR, 2015). Conforme levantamento da ONU, elaborado em 2015, alertando sobre uma das diversas tragédias identificadas nesse contexto, “crianças que viviam em países e áreas afetados por conflitos tinham o dobro de chance de morrer de doenças predominantemente evitáveis antes de completar 5 anos de idade do que crianças em outros países.” (ACNUR, 2015)

Deve-se levar em conta que tais dados são estimados sem que sejam consideradas as cifras inatingíveis daquelas crianças que estão em zonas onde nenhum tipo de ajuda pode chegar, o que revela que a coleta desses números é sempre extremamente complexa, situação que pode mostrar uma realidade ainda pior.

No Brasil a Convenção de 1951 foi recepcionada pela Lei 9.474/97. Considerado pioneiro na América Latina em assuntos que versam acerca da proteção dos refugiados, o Brasil, com o início da guerra civil na Síria em 2011, tornou-se no continente um dos principais destinos para refugiados daquele país, abrigando hoje cerca de 1600 cidadãos sírios que fugiram daquilo que o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados descreveu como a “pior crise humanitária da nossa era”.

Não bastasse a vulnerabilidade material e emocional na qual se encontram as pessoas que recorrem ao instituto do refugio, obrigadas a deixarem tudo que lhes era familiar, precisam ainda enfrentar o recomeço em lugar desconhecido que, mesmo oferecendo ajuda, não consegue muitas vezes evitar movimentos sociais pouco receptivos. É de se ressaltar que por vezes, pior do que a hostilidade, a invisibilidade que recai sobre essas pessoas passa a dificultar que a proteção humanitária se efetive.

Não fossem as imagens chocantes vindas da Europa mostrando as travessias mal sucedidas dos milhares de refugiados que se lançam ao mar na esperança de atracarem em terras de novas oportunidades, como as que circularam em setembro de 2015 exibindo a morte do menino sírio Aylan Kurdi, de apenas três anos, muito pouco informaria a grande mídia sobre essas crianças em extrema situação de vulnerabilidade.

A campanha lançada pela UNICEF dá um rosto a essas pessoas, mostra-nos o semblante infantil da dor e do descaso provocados por zonas de conflitos. Permite que possamos reconhecê-las, pois na perspectiva mundial desta contemporaneidade a imagem mostra-se fundamental para que as conexões nesse sentido sejam possíveis. Não há dúvida de que ouvir sobre determinada realidade decadente é menos impactante do que vê-la, percebê-la com os próprios sentidos.

A visibilidade é essencial para o futuro dessas crianças, para que possam ter a chance de crescer amparadas pela dignidade própria de todo o ser humano. O rosto de Sofia permite que possamos nos ver na dor, nas angústias, nas incertezas quanto ao futuro que aquelas crianças demonstram ter. Sofia é importante para que confirmemos nossa própria dignidade em fraternidade, estabelecendo o ideal kantiano do ser humano como fim em si mesmo, e reafirmando as indispensáveis políticas humanitárias em busca de um futuro de igualdade em dignidade e direitos... #EuSouSofia


Notas e Referências:

ONU https://nacoesunidas.org/unicef-lanca-campanha-eu-sou-sofia-em-apoio-as-criancas-que-vivem-em-areas-de-conflito/

ACNUR http://www.acnur.org/t3/portugues/

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos – 10ª Edição – São Paulo: Editora Saraiva, 2015.

PEREIRA, Gustavo de Lima. A pátria dos sem pátria: Direitos Humanos e Alteridade. Editora UniRitter. Porto Alegre. 2011.


Thais Silveira Pertille. Thais Silveira Pertille é Acadêmica da décima fase do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e estagiária do Ministério Público Federal, Procuradoria da República em Santa Catarina. . .


Imagem Ilustrativa do Post: campanha “Eu Sou Sofia”

Disponível em: https://nacoesunidas.org/unicef-lanca-campanha-eu-sou-sofia-em-apoio-as-criancas-que-vivem-em-areas-de-conflito


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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