O namoro qualificado e a desqualificação da mulher no direito de família

24/06/2016

Por Helena Martinez Faria Bastos Régis - 24/06/2016

A opressão é um véu transparente e adocicado num discurso de mel

Lola Salles, in Medo.

O Direito de Família, como os demais ramos do direito, sempre foi permeado pela superioridade da figura masculina. A hierarquização entre os sexos, que era escancarada, passou ao longo do tempo a ser mais sutil, mas jamais abandonou a matéria. Dentre várias discrepâncias jurídicas, o Código Civil de 1916, em seu art. 234:

Art. 234. A obrigação de sustentar a mulher cessa, para o marido, quando ela abandona sem justo motivo a habitação conjugal, e a esta recusa voltar. Neste caso, o juiz pode, segundo as circunstâncias, ordenar, em proveito do marido e dos filhos, o sequestro temporário de parte dos rendimentos particulares da mulher.  

De exame isolado do referido artigo, percebe-se que a mulher que ousasse abandonar a habitação conjugal, por manifestação da vontade, deveria ter argumentos suficientes para convencer o judiciário que não mais queria permanecer naquela condição, cabendo ao juiz decidir seu destino.

A intenção do legislador, na redação do artigo, faz-se clara em obrigar a mulher a retornar à habitação conjugal, caso o Poder Judiciário não considerasse suficientemente justo o motivo para o "abandono do lar".  Para isso, o homem, que geralmente era quem trabalhava em funções externas às domésticas e, por conseguinte, mantinha financeiramente a família, de pronto já se encontrava livre da obrigação alimentar de sustentara mulher, caso fosse responsável pela separação de fato[1]. Não bastante, caso a mulher, mesmo que oprimida, obtivesse algum meio de sustentar-se por conta própria sem a dependência do marido, poderia ter seus rendimentos particulares sequestrados em favor daquele, tudo de maneira legal.

É importante ressaltar que, se ainda hoje é raro que uma mulher apresente disposição e coragem para deixar o relacionamento que não mais a satisfaz, naquela época era praticamente impossível que tal fato ocorresse.  Note-se que o motivo elencado pela mulher como bastante para a motivar sua saída daquela condição, mesmo sabendo dos empecilhos que enfrentaria, precisava passar pela análise do Poder Judiciário para ser considerado justo.

Em semelhante raciocínio, percebe-se que, mesmo após anos de aprendizado e de luta das mulheres pela concretização da igualdade; de terem reconhecida sua participação na construção da estrutura familiar como mais que mera contribuição "obrigatória"; que até mesmo após a vigência do Código Civil, com a exsurgência do Direito das Famílias[2], inspirado pela Constituição de 1988, remanesce um ranço ideológico que pune às mulheres que não querem permanecer na condição de coabitante conjugal.

Ainda hoje, alguns órgãos jurisdicionais mantém a reprodução de valores desarrazoados no seio familiar, na função de definir relacionamentos e de ignorar a contribuição das mulheres na construção dos bens familiares –que vão muito além da questão financeira.

Embora não se descure que a cena jurídica para a mulher dentro do Direito de Família a partir da Constituição de 1988 - que assegura a igualdade de tratamento independentemente do sexo [3]-; não se ignorando, ainda, as melhorias que trazidas pelo Código Civil de 2002; nem as mudanças obtidas a partir da Lei do Divórcio, o direito de família continua conferindo à mulher o papel de mãe, "bela, recatada e do lar".

Assim, em determinadas circunstâncias, caso destoe de tais valores de equivocada hierarquização entre homem e mulher, esta continua sendo tratada de forma desigual, de forma que seus direitos, ainda que assegurados pelo ordenamento jurídico, não são concretizados, inclusive, de modo errôneo, pelo Judiciário, conforme se percebe no exame do julgado a seguir.

Recentemente, manifestou-se a Terceira Turma do STJ ao proferir o acórdão do Recurso Especial de n º 1.454.643/RJ[4], reconhecendo o instituto do “namoro qualificado” - que não possui previsão legal na legislação brasileira. A consequência de tal reconhecimento foi a não comunicação do bem adquirido na constância da controversa união estável pelo casal, resultado que redundou na declaração de que o bem seria exclusivo do ex-companheiro.

Trata este processo de dissolução de união estável concebida em um período de dois anos que antecederam ao casamento.

Faticamente, as partes, enquanto namorados, passaram a residir longinquamente um do outro, pelo fato de o homem aceitar uma oferta de emprego, razão pela qual se mudou para a cidade de Varsóvia na Polônia. Embora distantes, o casal continuou o relacionamento. Assim, a mulher, no período de diferença de seis meses, logo que terminou a graduação, foi encontrá-lo para cursar inglês na exata mesma cidade, residindo no mesmo local que o namorado.

Destaca-se que as provas carreadas aos autos demonstram que o homem da relação morava com um amigo, que saiu de tal prédio pela alegação de que os namorados passariam a morar junto – demonstrando que a coabitação não ocorre por acaso, conforme alega o STJ, considerando que fora planejada com antecedência à chegada da estudante na cidade.

Além do equívoco judicial na afirmação de que a coabilitação deu-se por acaso, o acórdão ainda é falho por argumentar que autora haveria viajado sem nenhuma intenção de permanecer no local, já que possuía passagem de ida e volta quando embarcou. Assim, ignora-se o fato de que sem motivo bastante para aquisição de visto prolongado – como o de uma oferta de emprego -, é impossível a aquisição de passagem de ida sem que a volta já esteja comprada. Corrobora com essa análise o fato de que a mulher conquistou uma vaga em mestrado na cidade, conseguindo o referido visto prolongado e permanecendo ao lado do companheiro.

Pois bem. Os fatos comprovados demonstram que, após um ano residindo juntos, já na condição de noivos, ambos saem de férias e voltam ao Brasil, quando escolhem, ambos, um apartamento na Barra da Tijuca e o colocam a propriedade em nome do homem. Importante frisar que, marcando tal episódio, o companheiro/namorado envia ao pai um e-mail dizendo que "estamos nós dois apostando no nosso futuro, na nossa vida...".

Ambos voltam juntos a Vasórvia, onde residem por mais alguns meses, quando encerra o contrato de trabalho do companheiro e novamente ambos, juntos, retornam em definitivo para o Brasil. O casal relatou que imediatamente após sua chegada, continuaram morando juntos na casa de um familiar da noiva, até que o apartamento fosse entregue. Após, casaram-se, em comunhão parcial de bens e separam-se dois anos depois.

No entanto, o apartamento mencionado, que foi residência da família, adquirido na visita de ambos ao Brasil em nome do noivo, não foi objeto de meação, pois fora considerado bem incomunicável pelo regime do casamento. A mulher, inconformada, pede o reconhecimento e a dissolução da união estável.

Cabe esclarecer a união estável é entidade familiar reconhecida e protegida pela própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Veja-se:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Note-se que o ordenamento jurídico determina que o Estado deve facilitar a conversão da união estável em casamento. Diante disso, o que percebe da decisão aqui debatida é que, ao invés de facilitar tal transmutação da entidade, o Estado acaba por punir àquela que tenta fazê-lo.

O Código Civil de 2002 elenca, em seu art. 1.723, como requisitos para configuração da união estável, dois elementos subjetivos, quais sejam: (a) a convivência pública, contínua e duradoura e (b) o objetivo de constituição de família.

No caso em comento, a convivência era nitidamente pública, contínua e duradoura. Restou aos Julgadores decidirem se havia ou não elementos suficientes que comprovassem o objetivo de constituição de família quando no ato da compra do apartamento.

De todo aqui exposto e pelas provas incontroversas, conclui-se facilmente pela presença do objetivo da constituição de família no ato, visto que (i) O casal planejou uma vida conjugal no exterior, executando-a e permanecendo juntos durante todo o processo; (ii) ambos saíram de férias juntos e vieram ao Brasil, quando em comum acordo escolheram uma residência para que morassem quando casados; (iii) o homem – que disse não haver união estável – enviou a seu pai uma correspondência eletrônica informando sobre a aquisição do imóvel dizendo ser um investimento de ambos para o futuro comum.

Contudo, é espantoso que, frente a todos os elementos presentes nos autos, ainda se desconsidere que não houve negação por parte do companheiro de nenhum dos elementos acima citados. Sendo que em sua defesa somente disse que tudo isso era porque eram namorados, posteriormente noivos, mas nunca companheiros.

Ora, a configuração de “namoro qualificado” (repita-se, instituto não tipificado na lei civil) em muito se assemelha com o contrato de simples namoro, instrumento que era muito comum na época em que a união estável foi instituída como instituto familiar capaz de comunicar bens adquiridos na constância de sua validade. Isso porque, em geral, homens, que pretendiam resguardar seu patrimônio, temendo o reconhecimento da união estável, propunham às companheiras a assinatura de contratos, alegando que o relacionamento que as partes tinham era um simples namoro e  impossibilitando a divisão de qualquer bem adquirido na constância do relacionamento[5].

Esse foi o principal critério utilizado na época - e ainda o é - para o reconhecimento da figura da união estável: a análise fática. Segue nesse sentido, o entendimento majoritário da prática judicial[6]. Os companheiros podem, portanto, nominar o relacionamento como quiserem, pois o que valerá por fim será aquilo que as provas fáticas demonstrarem. Além disso, a assinatura de qualquer contrato com tal configuração deverá ser equiparada a escolha do regime de bens – pois, por mais que se decida o regime do casamento, não se pode abdicar da união estável.

Contudo, não é o que se extrai do entendimento firmado no julgado em exame, sendo inegável a equivalência dos objetivos do contrato de simples namoro com a decisão mencionada, que traz a figura confusa e contraditória do namoro qualificado.

Ao trazer tal categoria - namoro qualificado –, vislumbra-se a introdução de uma figura anômala ao Direito brasileiro, o qual detém o cunho de eximir a responsabilidade dos companheiros sobre a compromisso delineado pela facticidade da união estável.

Essa, inclusive é a citação utilizada pelo próprio STJ para enquadrar o relacionamento das partes como namoro qualificado e não união estável. A conclusão do Superior Tribunal de Justiça, não encontra precedente, basta uma leitura rápida em seu teor para perceber a quantidade de controvérsias que essa apresenta.

Por fim, conclui-se que, ainda que em uma primeira análise a decisão correlatada apresente-se isenta de preconceitos. No entanto, quando verificada com maior profundidade, percebe-se uma repetição do ranço hierarquizador das relações familiares, havendo a supressão dos direitos da mulher por conta de valores equivocados. E tais são fundamentados na ideia equivocada de que a mulher que (a) planeja seu encaminhamento profissional ao lado de um homem; (b) altera seu domicílio com vistas a residir com seu namorado/noivo; (c) corrobora com a aquisição de patrimônio para uma vida em comum, não faz mais que seu dever enquanto figura auxiliar do homem, para que este alcance seu próprio objetivo de vida. Esse pensamento induz à errônea conclusão de que as condutas mencionadas – e tantas outras que permeiam a temática – não dizem respeito à construção de uma vida autônoma e, por conta disso, esta acaba não recebendo a tutela jurídica adequada, visto que a proteção devida ao sujeito fálico está contemplada.

Se antes a opressão à mulher era explicitada na legislação brasileira, hoje ela se apresenta como um véu transparente, que embora adocicado, jamais permitirá a clareza da visão. Contudo, é libertador quando se observa que o discurso é doce, mas a realidade é amarga.


Notas e Referências:

[1] ACORDÃO apelação cível nº 91.03.31057-4. São Paulo. Disponível em <http://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/TRF3/IT/AC_31057_SP_05.09.1995.pdf?Signature=sJAbb0r%2Bcp4bRwBqR5kEUUmA8Ew%3D&Expires=1466641351&AWSAccessKeyId=AKIAIPM2XEMZACAXCMBA&response-content-type=application%2Fpdf&x-amz-meta-md5-hash=172bde73b6892b73a36777f90b16cf19>. Acesso em: 22 jun. 2016.

[2] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10. E d. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015

[3] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 22 jun. 2016.

[4] Acórdão do Recurso Especial de n º 1.454.643/RJ. Disponível em <http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/4/art20150410-11.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2016.

[5] A esse respeito, Marília Pedroso Xavier explana que: “Convém esclarecer que se trata de uma posição maniqueísta, a qual apregoa que sempre haverá expressiva incongruência entre o que foi avençado e a realidade. Com efeito, entre o que consta no documento e o desenvolvimento no plano fático, deve prevalecer o segundo”. In Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo. p. 95.

[6] "Para a caracterização da união estável devem-se considerar diversos elementos, tais como o ânimo de constituir família, o respeito mútuo, a comunhão de interesses, a fidelidade, a comunhão de interesses e a estabilidade da relação, não esgotando os pressupostos somente na coabitação". Decisão do Agravo Regimental dos Embargos Declaratórios do Recurso Especial de n º 805.265/AL. Disponível em < http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24119287/agravo-regimental-no-agravo-em-recurso-especial-agrg-no-aresp-179298-rs-2012-0099816-2-stj/inteiro-teor-24119288>. Acesso em: 21 jun. 2016.


Helena Martinez Faria Bastos Régis. Helena Martinez Faria Bastos Régis é Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” e Estagiária no escritório de advocacia contenciosa Kauling & Melo Advogados Associados.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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