É nulo o interrogatório de algemado sem fundamento idôneo. No STF o acusado ganha, mas não leva

31/12/2015

Por  Rômulo de Andrade Moreira e Alexandre Morais da Rosa – 31/12/2015

O Ministro Luiz Edson Fachin anulou uma sentença condenatória, em razão do acusado ter sido interrogado algemado. Na decisão, o Ministro entendeu que o Juiz não observou a Súmula Vinculante 11 que diz: “Só é licito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e da nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere”. (A decisão foi do dia 14 de dezembro).

Na audiência para a realização do interrogatório, o advogado do acusado requereu ao Juiz da 1ª. Vara Criminal da Comarca de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, que fosse retirada a algema de seu cliente antes do início do interrogatório, mas o pedido não foi atendido. Ao justificar-se, o Juiz afirmou que o art. 251 do Código de Processo Penal autoriza ao Magistrado manter a ordem e a segurança dos atos processuais realizados sob a sua presidência. E que diante do delito imputado ao acusado, apesar de não haver relato de violência ou grave ameaça, “cumpre salientar que a eventual pratica de crimes desta natureza não implica em conclusão, no mínimo precipitada, de que a personalidade do réu não seja violenta ou que não possa ensejar perigo aos presentes ao ato”. Com efeito, o réu se encontra preso e, por tal razão, deverá permanecer algemado, tendo em vista que o fato de o crime que lhe é imputado não ter sido praticado com violência e/ou grave ameaça, por si só, não tem o condão de conferir ao réu o direito de responder aos atos do processo em liberdade.”

A defesa, então, protocolou uma Reclamação no Supremo Tribunal Federal e o Ministro Edson Fachin afirmou que a decisão desvirtuava a lógica da Súmula Vinculante: “A partir da leitura do verbete sumular, depreende-se que a retirada de algemas é a regra. O uso constitui exceção que desafia fundamento idôneo devidamente justificado na forma escrita. Como se vê, a decisão desvirtua a lógica da súmula. Compreende que a infração que motiva a acusação não afasta a periculosidade do agente, partindo da inconfessada premissa de que o uso de algemas configura regra não afastada pelo caso concreto. Mas a ótica da súmula é inversa. E ótica vinculante”. Não é dado ao juiz divergir da posição consolidada da Suprema Corte”. Segundo o ministro, a orientação respeita “o poder de polícia do presidente do ato processual. É certo que as impressões do juiz da causa merecem prestígio e podem sustentar, legitimamente, o uso de algemas. Não se admite, contudo, que mediante mero jogo de palavras, calcado no singelo argumento de que não se comprovou a inexistência de exceção, seja afastada a imperatividade da súmula vinculante. Se a exceção não se confirmou, a regra merece aplicação, de modo que, a teor do verbete, o ato judicial é nulo, com prejuízo dos posteriores.[1]

Louve-se, parcialmente, a decisão do Supremo Tribunal Federal e que ela sirva de parâmetro para que outras sentenças sejam anuladas sempre que houver o descumprimento da Súmula Vinculante, pois a utilização de algemas não pode ser feita indiscriminadamente e sem critérios. Não pode ser banalizada em detrimento da dignidade. Cuida-se de exceção que deve ser motivada de maneira idônea.

Aliás, no Brasil, esta preocupação é antiga, pois o Decreto nº. 4.824, de 22 de novembro de 1871, já determinava no seu art. 28 que “o preso não será conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo condutor”.

Por sua vez, dispõe o art. 284 do Código de Processo Penal que “não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”. Esse dispositivo vem complementado pelo art. 292, que tem a seguinte redação: “Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas”.

Ainda em nosso ordenamento jurídico, podemos lembrar do art. 234, § 1º. do Código de Processo Penal Militar: “O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas. § 1º. - O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242.” (grifo nosso).

Com a Lei de Execução Penal (Lei nº. 7.210/84), a matéria voltou a ser disciplinada, especificamente no art. 199, ao estabelecer que “o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal” (Este decreto federal, no entanto, nunca foi editado).

Há, ainda, a Lei nº. 9.537/97, que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional, estabelecendo o seguinte: “O Comandante, no exercício de suas funções e para garantia da segurança das pessoas, da embarcação e da carga transportada” pode, dentre outras medidas de segurança, “ordenar a detenção de pessoa em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga” (art. 10, III).

Vê-se, assim, que a utilização de algemas deve sempre se restringir a casos excepcionais, quando haja, efetivamente, perigo de fuga ou resistência por parte do preso; fora daí, o uso desnecessário deste instrumento fere a dignidade da pessoa humana, representando uma ilegal restrição a direito fundamental, razão pela qual Gilberto Thums anota que “a violência simbólica se maximiza quando o réu é apresentado ao juiz precedido de aparato de segurança do Estado, algemado, e com ordens de olhar para o chão.”[2]

Logo, conclui-se que o uso abusivo e desproporcional de algemas é conduta (mais do que ilegal) inconstitucional e, como veremos adiante, criminosa. Na verdade, mesmo que nada dispusesse a legislação ordinária, o certo é que o texto constitucional vedaria a utilização deste meio de força, sem que houvesse necessidade e indispensabilidade da medida.

A Constituição da República é clara ao estabelecer como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e como princípio a prevalência dos direitos humanos (arts. 1º., III e 4º., II). Mais adiante, no art. 5º., ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, assegura “aos presos o respeito à integridade física e moral” e “que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (incisos III e XLIX).

Ora, “quando o direito interno inclui a dignidade entre os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito, estabelece a dignidade da pessoa como fonte ética para os direitos, as liberdades e as garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais”.[3]

Para José Afonso da Silva, “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.”[4]

Segundo Étienne Vergès, “le principe de dignité de la personne humaine domine de três nombreux domaines du droit. Il a fait son apparition à l´issue de la seconde guerre mondiale dans les textes internationaux.”[5]

Já no plano internacional, podemos citar as “Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos”, documento adotado pelo 1º. Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, realizado em Genebra em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas através das suas resoluções 663 C (XXIV), de 31 de julho de 1957 e 2076 (LXII), de 13 de maio de 1977.Resolução 663 C (XXIV) do Conselho Econômico e Social. No item 33, recomenda-se, dentre outras coisas, que “a sujeição a instrumentos tais como algemas, correntes, ferros e coletes de força nunca deve ser aplicada como sanção. Mais ainda, correntes e ferros não devem ser usados como instrumentos de coação. Quaisquer outros instrumentos de coação só podem ser utilizados nas seguintes circunstâncias: a) Como medida de precaução contra uma evasão durante uma transferência, desde que sejam retirados logo que o recluso compareça perante uma autoridade judicial ou administrativa; b) Por razões médicas sob indicação do médico; c) Por ordem do diretor, depois de se terem esgotado todos os outros meios de dominar o recluso, a fim de o impedir de causar prejuízo a si próprio ou a outros ou de causar estragos materiais; nestes casos o diretor deve consultar o médico com urgência e apresentar relatório à autoridade administrativa superior.” (grifo nosso).

Devem ainda ser indicados os dois Pactos Internacionais que também proclamam o respeito à integridade física e moral dos presos, o que impede a utilização indiscriminada de algemas: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

A propósito, Perez Luño afirma que “este processo de afirmação internacional dos direitos humanos (...) abre – apesar de tudo – uma esperança em uma humanidade definitivamente livre do temor em ver constantemente violados seus direitos mais essenciais.” [6]

Pergunta-se? Caso haja abuso na utilização deste instrumento de força, qual a consequência para a sua utilização desnecessária e abusiva? Sem dúvidas, incorre o servidor público responsável no crime previsto na Lei nº. 4.898/65 (arts. 3º, “i” e 4º., “a”, “b” e “h”), delitos de ação penal pública incondicionada, com pena máxima de seis meses de detenção, além de multa, perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo até três anos (art. 6º., §§ 3º., 4º. e 5º.). Por sua vez, o art. 4º., “h” da Lei nº. 4.898/65 estabelece ser crime de abuso de autoridade “o ato lesivo da honra, ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal.” Deve, portanto, qualquer cidadão noticiar o fato delituoso ao Ministério Público que tem o dever de apurar o fato e, se houver justa causa, oferecer denúncia, conforme o art. 129, I da Constituição da República. Se não o fizer, tem a vítima o direito fundamentar de deduzir em juízo a ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública, nos termos do art. 5º., LIX da Constituição da República. Portanto, não se trata apenas de uma nulidade processual, mas também de se responsabilizar criminalmente quem agiu com abuso de autoridade.

Faltou, todavia, reconhecer a ilegalidade por inteiro. Para além de se declarar nulo o ato, por manifesto excesso de prazo, deveria ter soltado o acusado. Isso porque a alegação de que a defesa demorou para interpor a Reclamação não serve de escudo para nulidade reconhecida. Há um equívoco lógico na maneira como foi proferida a decisão: quem violou a regra foi o Estado e não o advogado do acusado. Processo Penal não é Processo Civil, nem Direito de Família, em que pode se invocar uma possível equivalência tática. O ato e, por via de consequência, os subsequentes, deveriam implicar no reconhecimento de excesso de prazo. O acusado teve reconhecido o direito de ser interrogado sem algemas, mas permanece preso. E o advogado protestou quando do ato judicial. O Estado pratica ato ilegal, o Estado reconhece, mas mantém a ilegalidade da prisão, dado que já está preso, pelo menos, desde 21.09.2015, em franco excesso de prazo. Uma decisão aparentemente garantista, mas no fundo performática: ganha, mas não leva.


[1] http://www.conjur.com.br/2015-dez-23/condenacao-anulada-porque-reu-estava-algemado-interrogatorio

[2] Sistemas Processuais Penais, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 182.

[3] Célia Rosenthal Zisman, Estudos de Direito Constitucional – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, São Paulo: Thomson IOB, 2005, p. 23.

[4] Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 10ª. ed., 1995, p. 106.

[5] Procédure Pénale, Paris: LexisNexis Litec, 2005, p. 55.

[6] Los Derechos Fundamentales, Madrid: Editorial Tecnos, 1984, p. 42 – tradução livre).


 

Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.

 

Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui         

 


Imagem Ilustrativa do Post: Michael Ta'Bon recreates the prison cell, Philadelphia, PA // Foto de:  Bread for the World // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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