Direitos humanos linguísticos: o idioma como identificação cultural e a manutenção da dignidade humana do imigrante

29/04/2017

Por Thais Silveira Pertille e Marcelo Pertille – 29/04/2017

O tema dos direitos linguísticos adquire força no contexto das transformações que permeiam o mundo. Nessa contemporaneidade caleidoscópica, fruto de diversas realidades em um mesmo contexto social e político, vê-se um aumento de movimentos de crescente diversidade cultural e, por consequência, de oportunidades de interação linguística. Desde os colonialismos até a globalização, a caracterizar-se pela revolução tecnológica e pela ausência de barreiras à circulação do capital e das mercadorias de consumo, é possível diagnosticar movimentos de subordinação política, econômica e social que implicam na imposição direta de uma língua estrangeira sobre a local, ou em distorções de valores dessa natureza. Isso, por consequência, promove uma espécie de hierarquia linguística que afeta a cultura dos falantes a ponto de perpetuar substituições linguísticas mesmo quando povos colonizados ascedem à soberania.

Essas questões reforçam a necessidade de se pensar o papel do Direito como instrumento apto a assegurar que os desenvolvimentos econômico e tecnológico não impliquem esquecimento das características inerentes aos diversos contextos da dignidade humana, dentre eles, a possibilidade de manutenção de raízes culturais (línguas).

Pensar o que é regional, nacional e global passa a ser pauta para que se dê com efetividade a proteção desses interesses que ocupam importante papel na instrumentalidade da igualdade enquanto valor apto a estruturar direitos individuais.

É de se se recordar as palavras do poeta mexicano Octavio Paz, quem lembra que “A extinção de cada sociedade marginal e de cada diferença étnica e cultural significa a extinção de uma possibilidade de sobrevivência da espécie inteira. Com cada sociedade que desaparece, destruída ou devorada pela civilização industrial, desaparece uma possibilidade do homem – não só de um passado e um presente, mas um futuro.” (apud, LIMA, 2017)

Apesar desse contexto, importa ressaltar que não é comum encontrar trabalhos que abordem os direitos linguísticos, sendo ainda mais curioso que aqueles a que se tem acesso, em regra, não são oriundos de pesquisadores das ciências jurídicas.

Com isso em vista, esta análise reflete a busca pela compreensão dos direitos linguísticos no cenário de efetivação dos direitos humanos e a implicância que o tema possui no contemporâneo processo migratório.

Para tanto, parte-se da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos que, pode-se dizer, além de baseada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, vem suprir enorme lacuna no intuito de efetivação dessa.

O lapso encontra-se na abstração do ser humano idealizado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em sua falta de concretude, que nas palavras de Costas Douzinas, mostra que o sujeito da declaração é muito abstrato para ser real, ou muito concreto para ser universal (2009, p.113).

De encontro a essa abstratividade do ser, os direitos linguísticos asseguram que os problemas de cada sociedade em particular sejam tratados de acordo com sua especificidade cultural. Pois, para que seja preservada a dignidade das pessoas não se pode desconsiderar que a cultura é integrante indissociável da existência, de como ele se reflete e se identifica com a vida que se concretiza.

Tal percepção é indispensável para que se trate da questão dos migrantes à luz dos direitos humanos em sua perspectiva moderna, haja vista que essas pessoas deixam seus locais de origem, mas levam consigo a linguagem que, enquanto preservada, lhes servirá de referência histórica, cultural e edificante de sua dignidade.

A Segunda Guerra Mundial deixou uma marca de horror, evidenciando a capacidade humana de se autodestruir e a necessidade de encontrar um meio de se garantir, para além da sobrevivência, a dignidade a todos os povos. Em 10 de dezembro de 1948 foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos pelas Nações Unidas. Na interpretação de Jayme de Altavila constitui ela “a página mais brilhante do pensamento jurídico da humanidade e, em tese, o diploma de sua maior conquista.” (2001, p. 243)

Sem dúvida a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi a responsável pela internacionalização do objetivo de que todos os seres humanos, exclusivamente pela condição nata de humano, tenham a possibilidade de usufruir de uma vida digna. Contudo, os desejos expressados por ela encontram inúmeras dificuldades, principalmente de ordem prática.

Sem negar a importância e a intenção humanitária sob a qual foi redigido o mencionado dispositivo, porém, ao declarar que todos os homens nascem iguais, parte a Declaração de uma incoerência, pois as diferenças entre os seres humanos são facilmente detectadas quando analisados contextos concretos. Nas palavras de Joaquin Herrera Flores, a igualdade posta-se “como se nos dissessem que todos têm os instrumentos e meios para construir seu palácio de cristal (2009, p. 37). Costas Douzinas, corroborando a crítica em relação a característica da igualdade dos direitos humanos, afirma que quando “o menor material empírico ou histórico é introduzido na natureza humana abstrata, assim que passamos de declarações a pessoas corporificadas concretas, com gênero, raça, classe e idade, a natureza humana com sua igualdade e dignidade sai de cena rapidamente” (2009, p. 110).

Dessa forma, reconhecendo a importância da linguagem como transmissora e mantenedora da cultura dos povos é que emergem os Direitos Linguísticos por meio da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, redigida em 6 de Junho de 1996, na cidade de Barcelona, expressando princípios que ancoram a sua aplicação em diferentes esferas: administração pública e organismos oficiais, ensino, onomástica, meios de comunicação e novas tecnologias, cultura e as estruturas socioeconômicas.

Acerca da importância dignificante do ser humano, a própria Declaração dos Direitos Linguísticos dispõe em seu artigo 7º que “Todas as línguas são a expressão de uma identidade coletiva e de uma maneira distinta de apreender e descrever a realidade, pelo que devem poder beneficiar-se das condições necessárias ao seu desenvolvimento em todas as funções”, ressaltando-se, na esteira do artigo 10 do mesmo documento que “Todas as línguas são iguais em direito” (BARCELONA, 1996).

Além dos direitos assegurados em seu bojo, a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos traz esclarecimentos sobre seus destinatários e conceitos, como é o caso do artigo 1º que designa grupo linguístico como “qualquer grupo de pessoas que compartilham o mesmo idioma instalado no espaço territorial de outra comunidade linguística, mas não com antecedentes históricos semelhantes, como é o caso dos migrantes, refugiados, pessoas deslocadas e membros das diásporas.” (BARCELONA, 1996).

A questão sobre os migrantes e os impasses que seu tratamento político gera no âmbito da proteção da dignidade humana pode ser vista não apenas sob a óptica da contenção desse direito, que também é humano, mas também com olhares tendentes a definir meios de recepção aptos a permitir que as pessoas tidas como refugiadas, migrantes, pessoas deslocadas e apátridas possam, de fato, recomeçar suas vidas em outros locais.

Essa perspectiva ética de reflexão pela qual a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos leva a comunidade a refletir sobre sua atuação, indicando meios de tratamento e atitudes que, antes de uma determinação legal, tratam-se de uma tentativa de esculpir a moral social em pró da alteridade, como se vê do artigo 2º, quando declara que “Quando diferentes comunidades e grupos linguísticos coabitam num mesmo território, o exercício dos direitos deve reger-se pelo respeito entre todos e dentro das máximas garantias democráticas” (BARCELONA, 1996). Vale lembrar que, nas palavras de Amartya Sen, democracia é o governo onde todos tem voz, e que para uma sociedade possa evoluir ela deve ser capaz de superar os paroquialismos, ou seja, superar seus preconceitos territoriais através da abertura para opinião daqueles que vem de fora (2011, p. 15).

Salientando o escopo democrático que os direitos linguísticos desempenham, o artigo 6º exclui que uma língua possa ser considerada própria de um território “unicamente por ser a língua oficial do Estado ou ser tradicionalmente utilizada nesse território como língua de administração ou de certas atividades culturais” (BARCELONA, 1996). Denota-se que a língua oficial deveria contemplar de forma muito mais ampla os viventes de determinado Estado ou país.

De encontro a esse ideal democrático mostra-se o caso da Suíça em que os estrangeiros constituem cerca de um quarto dos oito milhões de habitantes do país. Provenientes de países da União Europeia, como a Alemanha ou ainda dos Bálcãs e da África, esses estrangeiros não só não tem direito ao voto em decisões que os afetam diretamente, mas também não são levados em conta para determinação oficial linguística, o que os exclui do exercício da cidadania e da fruição de sua dignidade quando são expressamente ignorados pela lei. (DEUTSCHE WELLE, 2016).

Não tão longe, mesmo no Brasil, a história noticia casos de atentados severos contra os direitos humanos cometidos contra os imigrantes alemães na primeira metade do século passado, quando, em razão do governo de Getúlio Vargas, tentava-se implantar o Estado Novo com um nacionalismo de intensa valorização da cultura brasileira e supressão das influências externas, proibiu o ensino do alemão nas escolas e mesmo sua fala em público. O italiano e o japonês também foram proibidos, os três idiomas ainda mais severamente por sua posição de inimigos brasileiros na Segunda Guerra Mundial. Em 1939 proibiram-se os jornais e revistas em outros idiomas, chegando ao ponto de queimarem-se livros e documentos escritos em língua diferente do português (SEYFERTH, 1999, p. 345).

É importante que casos como esse ganhem reconhecimento e que a existência de uma Declaração que protege as pessoas nesse sentido torne-se fato notório para que se dê a valorização dos direitos humanos para aqueles que sofrem, como uma razão para manter neles a esperança. A simbologia pode não ter concretude em si, mas atua intermediando o ideal e o real; “os direitos humanos, assim como o princípio esperança, funcionam no abismo entre a natureza ideal e a lei, ou entre as pessoas reais e as abstrações universais” (DOUZINAS, 2009, p. 157).

Registra-se que o caso supracitado diz respeito a um verdadeiro atentado a dignidade humana, visto que, por meio da repressão do idioma foram reprimidos a cultura e o modo como viviam e identificavam-se aqueles povos no Brasil alojados, as consequências foram terríveis em termos individuais e coletivos, privando pessoas de sua própria identificação e toda uma geração seguinte de se desenvolver conforme a cultura de seu país.

Seja na Suíça ou no Brasil, a prática demonstra que pessoas ao cruzarem determinada linha imaginária, identificada pelo direito como fronteira, passam a ter suas humanidades relativizadas. Tal situação expõe os efeitos negativos do nacionalismo, mostrando que é o direito que acaba por excluir milhares de pessoas.

Portanto, as ficções da sociedade atual consubstanciadas em soberania e nacionalidade, criadas com intuito de proteger as pessoas de determinados locais, chegaram ao absurdo da racionalidade quando acabaram por legalizar um modo de tirar a condição humana daqueles tidos como estrangeiros, os não nacionais.

Destarte, é nesta perspectiva que textos como a Declaração universal dos Direitos Linguísticos têm sua importância declarada, principalmente quando esclarecem e vedam práticas como a aculturação, segundo José Passini “sempre que uma pessoa for compelida ao estudo da língua nacional de outro povo – a não ser com o objetivo de ampliar sua cultura – estará sofrendo restrição no seu direito linguístico” (2006, p.01).

A aculturação constitui um problema bastante comum ocasionado pelas diásporas e pela falta de receptividade dos países de destino dos migrantes que, quando não os impedem de ingressar em seu território, muitas vezes não acolhem suas diferentes culturas, fazendo com que fique para trás na história dessas pessoas não somente bens materiais e a vida que conheciam, mas parte de sua identidade e, consequentemente, de sua dignidade.

Portanto, desenvolver a igualdade almejada pela contemporânea racionalidade humana refere-se à concretização da dignidade por meio do respeito e da possibilidade de se viver a diferença.

Aqui, enfatiza-se que não se trata de propagar movimentos de desconsideração das línguas que hoje tornaram-se “oficiais” nos Estados colonizados, eis que, em uma análise histórica, tratada por Eduardo Valdés, dificilmente uma língua não terá sofrido importantes processos de transformação por conta dos expansionismos políticos. A questão é fortalecer a quebra de raciocínio que desestimula as línguas e expressões de locais pouco importantes à globalização sob os aspectos político e econômico, tornando possível a integração linguística e combatendo o preconceito. É preciso que os direitos linguísticos reconheçam a importância de se poder manifestar interesses das mais diferentes áreas nas mais diferentes línguas, dando-se importância e credibilidade às mensagens e seus conteúdos.

É nessa perspectiva que reside a importância de textos como a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, como fundamento ético, de aplicação cogente, para o desenvolvimento de leis dentro dos Estados que recebem migrantes visando a manutenção da dignidade desses mesmo que fora de suas correspondências culturais. Conclui-se, portanto, que reconhecer os mais variados idiomas como fator determinante no processo de fortalecimento e conservação das diversas culturas é reconhecer o indivíduo e a importância de suas diferenças em uma sociedade que, de fato, deve perseguir ideias de valorização do pluriculturalismo, permitindo o gozo da dignidade e instrumentalizando a cidadania.


Notas e Referências:

ALTAVILA, Jayme de. Origem dos direitos dos povos. 9ª edição. São Paulo: Ícone, 2001.

BARCELONA, Espanha. Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. 1996. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/a_pdf/dec_universal_direitos_linguisticos.pdf Acesso em 07/04/2017.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos – 10ª Edição – São Paulo: Saraiva, 2015.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. França. 1948. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Declara%C3%A7%C3%A3o-Universal-dos-Direitos-Humanos/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.html

DEUTSCHE WELLE. Caderno de notícias on line. 2016. Disponível em: http://www.dw.com/pt-br/su%C3%AD%C3%A7os-votam-sobre-expuls%C3%A3o-de-estrangeiros-por-crimes/a-19076023

DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009.

FLORES, Joaquim Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Fundação Boiteux. Florianópolis. 2009.

HAMEL, Rainer Henrique. Derechos linguísticos como direitos humanos: debates y perspectivas. Revista Alteridades, 1995, 5 (10): Págs. 11-23.

LIMA, Jorge de. Devir Índio. Revista Cult nº 222, abril de 2017. São Paulo – SP. P. 12-14

PEREIRA, Gustavo de Lima. A pátria dos sem pátria: Direitos Humanos e Alteridade. Editora UniRitter. Porto Alegre. 2011.

SEYFERTH, Giralda. Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo. In:Repensando o Estado Novo.Organizadora: Dulce Pandolfi. Rio de Janeiro: Ed.Fundação Getulio Vargas, 1999.

SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das letras, 2011.

UNESCO (2006) Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. Barcelona. Consultado a 3 de Janeiro de 2010. Disponível em:<http://documentosrtl.wikispaces.com/file/view/Declara%C3%A7%C3%A3o+Universal+dos+Direitos+Lingu%C3%ADsticos.pdf>.

PASSINI, José. Direitos Linguísticos. Liga brasileira de esperanto. 2006. Disponível em: http://www.esperanto.com.br/conheca/opiniao/direitos-linguisticos/

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Caderno de Direito Constitucional. Escola da Magistratura do tribunal Federal  da 4ª Região. 2006.

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 9ª Edição. Editora Saraiva. São Paulo. 2016.


Thais Silveira PertilleThais Silveira Pertille é Mestranda em Direito (UFSC), pós-graduanda em Filosofia e Direitos Humanos (PUCPR) e graduada em Direito (UFSC). Membro do Observatório de Justiça Ecológica (UFSC) – Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPq e membro do grupo de pesquisa Centro Brasileiro de Pesquisa sobre a Teoria da Justiça de Amartya Sen: Interfaces com direito, políticas e desenvolvimento e democracia (IMED). Pesquisa na área de Direito Internacional e Direitos Humanos. Advogada.


Marcelo Pertille. Marcelo Pertille é Mestrando em Ciências Criminais (PUCRS), especialista em Direito Processual Penal (UNIVALI) e em Direito Público (UNIVALI). Professor de Direito Penal e Direitos Humanos da UNIVALI e FASC. Professor do curso de especialização em Ciências Criminais do CESUSC. Advogado. .


Imagem Ilustrativa do Post: UDE_3156 // Foto de: udeyismail // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/udeyismail/6195769446

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura