Confira a entrevista com o autor Caio Paiva sobre o livro "Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro"

02/09/2016

O que o levou a escrever um livro sobre audiência de custódia?

Conforme já advirto o leitor no início do livro, falo sobre a prisão na condição de defensor público que atua na área criminal. Não sou um "observador imparcial" do encarceramento. Em diversos casos que atuei, quando visitava a pessoa encarcerada na unidade prisional, voltava com uma impressão tão simples quanto desafiadora: se o Ministério Público e o juiz vissem essa pessoa, conversassem alguns minutos com ela, acreditariam em mim quando postulo a sua liberdade. O que me motivou a escrever um livro sobre a audiência de custódia, portanto, foi contribuir para superarmos a "fronteira do papel", esse sistema puramente cartorial, para caminharmos rumo à humanização da jurisdição penal.

Qual a importância da audiência de custódia para evitar prisões desnecessárias?

No livro chego à conclusão de que a audiência de custódia, sozinha, não irá evitar prisões ilegais, desnecessárias ou arbitrárias, mas ela representa, sem dúvida, a tentativa mais ambiciosa de frear o grande encarceramento que assistimos no Brasil. Os discursos criminológicos não conseguiram atingir esse objetivo. A lei das medidas cautelares (12403/2011) também não. Chega a vez do Direito Internacional dos Direitos Humanos ter a sua chance, o que pode ser feito pelo cumprimento da garantia prevista no art. 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): "Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade (...)". A importância da audiência de custódia para atingir esse objetivo, porém, requer uma nova mentalidade por parte dos juízes.

Qual a importância da jurisprudência da corte interamericana no contexto nacional?

A Corte Interamericana é a intérprete mais autêntica e máxima da Convenção Americana de Direitos Humanos. Tendo o Brasil aderido à CADH e se submetido à jurisdição contenciosa da Corte, temos que admitir - de vez - que a Constituição Federal não é mais a nossa "Carta Magna", porquanto os direitos humanos devem ser interpretados não a partir da hierarquia da norma, e sim levando em conta a máxima efetividade extraída para a vítima da violação dos direitos humanos. Temos que admitir, também, que o Supremo Tribunal Federal não é mais a nossa "jurisdição máxima", eis que a internacionalização dos direitos humanos provocou igualmente uma internacionalização da jurisdição, com inevitável recuo da soberania nacional. A violação de direitos humanos deixou de ser um problema exclusivo do Direito doméstico, reclamando dos juristas, dos profissionais do Direito e dos sujeitos processuais a utilização constante do denominado "controle de convencionalidade", que nada mais é do que a verificação da compatibilidade da legislação nacional com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

Muito se discute sobre o prazo de apresentação do preso à autoridade judicial, quais os parâmetros indicados pela corte?

Analiso no livro esse tema a partir não apenas da jurisprudência da Corte Interamericana, mas também do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e Comitê de Direitos Humanos da ONU. Há um consenso na jurisprudência internacional de que o primeiro parâmetro para se verificar se o preso foi apresentado "sem demora" à autoridade judicial é o caso concreto e as suas peculiaridades. No entanto, os referidos Tribunais Internacionais trabalham com um prazo bastante restrito, algo em torno de no máximo três, quatro dias após a prisão e um prazo ainda mais célere quando se tratar de prisão de jovens/adolescentes. No Brasil, o Projeto de Lei nº 554/2011 fixa o prazo de 24 horas, o que me parece adequado à CADH, sendo que casos excepcionais poderão ensejar uma relativização da regra, desde que se devidamente justificada a demora.

A autoridade policial supre a exigência da convenção americana?

Definitivamente, não. A audiência de custódia surge num contexto de contenção do abuso policial, tanto é que uma das suas finalidades é a prevenção da tortura ou dos maus tratos. Isso não significa uma suspeita generalizada do trabalho da polícia, mas apenas que não se deve confiar ao fiscalizado o poder para fiscalizar-se. Quando a Convenção Americana utiliza a expressão "um juiz ou outra autoridade judicial", o que temos é uma preocupação do legislador interamericano de ajustar e ampliar o texto da CADH para que todos os países membros pudessem respeitá-lo, evitando, assim, qualquer negativa de cumprimento com base noutra estrutura dos órgãos judiciais internos. Por outro lado, a Corte Interamericana já decidiu - reiteradamente - que a audiência de custódia requer um "controle judicial" da prisão, o que não pode ser feito por delegados, por membros do Ministério Público ou por defensores públicos. A autoridade que preside a audiência de custódia deve ter poderes para (i) relaxar uma prisão ilegal, (ii) revogar uma prisão desnecessária, (iii) aplicar qualquer das medidas cautelares diversas da prisão independentemente do crime em investigação, (iv) converter o encarceramento em unidade prisional para prisão domiciliar, (v) fazer cessar atos de tortura ou maus tratos etc. A autoridade policial, no Brasil, somente tem poderes liberatórios para não ratificar um flagrante, o que poderia se equiparar ao relaxamento de prisão ilegal, e para conceder fiança para casos de crimes com pena máxima não superior a quatro anos. Quisesse a CADH confiar aos delegados a presidência da audiência de custódia, assim o teria feito expressamente, inserindo a expressão "autoridade policial" no art. 7.5. O delegado exerce importantíssima função na proteção dos direitos humanos do investigado, mas é uma autoridade policial, e não judicial.

Como analisas os primeiros resultados da audiência de custódia nos Estados em que está sendo implementada?

Ainda é cedo para avaliar os resultados da implementação da audiência de custódia nos Estados de SP, MG, ES, MA, entre outros. Me parece mais seguro aguardarmos esse período inicial de superação do preconceito contra a medida, assim como de estabilização das condições materiais dos Tribunais para colocarem em prática a audiência de custódia. De qualquer modo, os registros estatísticos têm apontado para uma diminuição do encarceramento provisório após a implementação da medida naqueles Estados.

Quais os aspectos a se destacar no livro publicado?

Embora o objeto do livro seja a audiência de custódia, precisei abordar algumas questões sobre a prisão, os direitos humanos e uma teoria do processo penal que situei como equilibrada pela teoria e a prática, mas sustentada pela ideologia. Defendo que o processo penal, para além de ser o caminho necessário para a aplicação da pena, também é um instrumento de proteção dos direitos humanos e de contenção do poder punitivo, que sempre - do contrário, não seria um "poder" - flertará com o abuso.

A audiência de custódia é uma prática sem volta?

Tudo está a indicar que sim, e assim espero. A implementação da audiência de custódia no Brasil, embora tardia, é uma vitória dos Direitos Humanos, um raro momento de sensatez político-criminal do nosso país.

Algumas outras considerações que julgar pertinente.

O livro reflete as minhas conclusões provisórias sobre o tema, que serão amadurecidas e novamente repensadas nas futuras edições deste trabalho, notadamente a partir das discussões em torno da dinâmica procedimental da audiência de custódia. Finalmente, gostaria de registrar o meu agradecimento a algumas pessoas com as quais tive a satisfação de dialogar sobre o tema, o que foi fundamental para que eu concluísse esse trabalho. Recebam, portanto, o meu sincero agradecimento: colegas do Grupo de Trabalho (GT) da Defensoria Pública da União sobre Presos; Augusto Botelho e Hugo Leonardo (IDDD); Isadora Figermann (ITTC); Pastoral Carcerária (Pe. Valdir); Thimotie Heemann (meu coautor no livro Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos) Gustavo Badaró; Aury Lopes Jr; Rubens Casara; Simone Schreiber; e Alexandre Morais da Rosa.


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