A quem compete julgar o crime de redução à condição análoga à escravo (CP, art. 149)?

16/12/2015

Por Rômulo de Andrade Moreira e Alexandre Morais da Rosa - 16/12/2015

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, na sessão do último dia 26 de novembro, reafirmou jurisprudência da Corte no sentido de que cabe à Justiça Federal processar e julgar o crime de redução a condição análoga à de escravo (art. 149 do Código Penal).

O entendimento deu-se no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 459510, interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª. Região que havia decidido tratar-se o caso de competência da Justiça Comum Estadual.

Em sessão anterior, no dia 4 fevereiro de 2010, o relator do recurso, Ministro Cezar Peluso (aposentado), propôs alteração do entendimento do Tribunal sobre a matéria no sentido de que o delito passasse a ser julgado pela Justiça Comum Estadual. Segundo ele, "o crime de redução a condição análoga à de escravo visa a proteger a pessoa humana e não a organização do trabalho." O relator, no entanto, ao negar provimento ao recurso, ficou vencido, pois, a maioria dos Ministros seguiu a divergência do voto do Ministro Dias Toffoli. Para ele, a matéria é de competência da Justiça Comum Federal: “Esse é um tema extremamente relevante na minha óptica e isso não pode ficar junto ao Ministério Público local ou às polícias locais.” Segundo ele, "muitos desses delitos são transestaduais, uma vez que há vários casos de pessoas que são recrutadas em um estado e levadas para outros estados".

O Ministro Dias Toffoli também destacou que alguns casos podem repercutir, posteriormente, em cortes internacionais de direitos humanos, situação na qual quem responde é a União em nome dos estados. Ele acrescentou ainda que “muitas vezes as instituições locais não dão a devida atenção a tão grave situação concreta”.

Inicialmente, observa-se que os crimes contra a organização do trabalho referidos no art. 109, VI da Constituição estão tipificados nos arts. 197 a 207 do Código Penal, enquanto que o delito de redução a condição análoga à de escravo está tipificado no art. 149 do Código Penal (crimes contra a liberdade pessoal), não sendo o caso de se retirar a competência da Justiça Comum Estadual, pois não há interesse direto da União no caso penal. Parece-nos que se criou um precedente perigoso.

Observa-se, outrossim, que somente "Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente." (Súmula do antigo Tribunal Federal de Recursos, Enunciado nº. 115).

Não nos convenceu o argumento do Ministro Dias Toffoli, segundo o qual “muitos desses delitos são transestaduais, uma vez que há vários casos de pessoas que são recrutadas em um estado e levadas para outros estados", pois, se tal fato ocorrer, estaremos diante de um concurso de crimes: arts. 149 e 207 do Código Penal (aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional), este sim, delito contra a organização do trabalho, da competência da Justiça Comum Federal. Assim, por força do Enunciado 122 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça (de duvidosa constitucionalidade, aliás), e tendo em vista a conexão de crimes, ambas as infrações penais seriam julgadas pela Justiça Comum Federal. Então, correto. Não quando apenas praticada a primeira infração penal, isoladamente.

Tampouco o argumento de que "alguns casos podem repercutir, posteriormente, em cortes internacionais de direitos humanos, situação na qual quem responde é a União em nome dos estados", seria suficiente para modificar, desde logo, a competência (de natureza absoluta), retirando da Justiça Comum Estadual o julgamento do caso penal, o que é gravíssimo, pois também retira as atribuições da Polícia Civil e do Ministério Público Estadual.

Não esqueçamos que o art. 5º., XXXVII e LIII da Constituição, bem como nos arts. 8º. e 10º. da Declaração Universal dos Direitos do Homem consagram a garantia do Juiz Natural que “surgiu formulado com esse nome, ao que parece, na Carta Constitucional francesa de 1814. (...)” Ainda em França, na Carta de 1830, figurava nos arts. 53 e 54. Contudo, Faustin Hélie “mostrou que o princípio do juiz natural remonta aos primeiros textos constitucionais da revolução.” Para Bluntschli, “a origem do princípio está na regra do direito medieval de que ninguém podia ser julgado a não ser por seus pares.”[1]

Encontra como razão de ser, “segundo afirma Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, citando Ernst Beling, como limitação do poder absoluto e para aprofundar a distinção entre a administração e a justiça, cuja necessidade já se impunha desde o Iluminismo. Nesse período, frequentemente o rei, o príncipe, enfim, o chefe de Estado, intrometia-se no Judiciário, delegava suas atribuições a outras pessoas e impedia, assim, que o órgão com atribuição específica para julgar se pronunciasse em determinado processo.[2]

Ademais, para resguardar as obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, já temos o Incidente de Deslocamento de Competência, previsto no art. 109, parágrafo quinto da Constituição da República, importante instrumento "na luta pela concretização da plena eficácia universal dos direitos humanos", surgido no Brasil com a Emenda Constitucional nº. 45/2004, já "adotado em diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros, como na Alemanha, Espanha, Portugal e Argentina, entre outros."

"Esse instituto foi utilizado cinco vezes pelo Superior Tribunal de Justiça, sendo que em duas oportunidades houve o deslocamento de competência, levando-se sempre em conta a necessidade da presença de três requisitos essenciais: (a) grave violação a direitos humanos; (b) risco de responsabilização internacional pelo descumprimento de obrigações derivadas de tratados internacionais, e, (c) notória incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas. Em grave ocorrência, envolvendo homicídio de vereador, reconhecido como defensor dos Direitos Humanos e autor de inúmeras denúncias contra a atuação de grupos de extermínio na fronteira dos Estados da Paraíba e Pernambuco, o Superior Tribunal de Justiça, em 27 de outubro de 2010, a pedido do Procurador-Geral da República e nos termos da previsão constitucional trazida pela EC 45/04, deslocou a competência para apuração dos fatos para a Justiça Federal (IDC nº 02).Conforme destacado pela Ministra-relatora Laurita Vaz, presentes os requisitos, as circunstâncias exigiram “a necessidade de ações estatais firmes e eficientes, as quais, por muito tempo, as autoridades locais não foram capazes de adotar, até porque a zona limítrofe potencializa as dificuldades de coordenação entre os órgãos dos dois Estados”, o Superior Tribunal de Justiça concluiu ser “oportuno e conveniente a imediata entrega das investigações e do processamento da ação penal em tela aos órgãos federais”.Da mesma maneira, no IDC nº 05, em 13 de agosto de 2014, também envolvendo o Direito à Vida e o Pacto de São José da Costa Rica, o STJ entendeu presentes os requisitos necessários e deslocou para a Justiça Federal a investigação de grupos de extermínio que atuam no interior de Pernambuco, e na hipótese haviam assassinado um promotor de justiça. O Ministro relator, Rogério Shietti Cruz, destacou que o fato ocorrido no denominado “Triângulo da Pistolagem”, ampliou o “certo e notório conflito institucional que se instalou, inarredavelmente, entre os órgãos envolvidos com a investigação e a persecução penal dos ainda não identificados autores do crime”, bem como que “a falta de entendimento operacional entre a Polícia Civil e o Ministério Público estadual ensejou um conjunto de falhas na investigação criminal que arrisca comprometer o resultado final da persecução penal, inclusive, de gerar a impunidade dos mandantes e executores do citado crime de homicídio”.Essas alterações constitucionais e jurisprudenciais são notáveis, pois permitem ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça a intensificação da luta pela universalização dos direitos humanos, pois a edição e evolução de tratados internacionais versando sobre esse objeto, bem como a previsão constitucional de novos instrumentos protetivos de sua real efetividade reforçaram a ideia básica da constitucionalização dos direitos humanos fundamentais, qual seja, a garantia de concretização de sua eficácia, a partir da qual qualquer indivíduo poderá exigir sua ampla e efetiva tutela, sem qualquer possibilidade de discriminação." (Revista Consultor Jurídico, 10 de dezembro de 2014, 18h26).

Sobre a matéria, com muito mais razão, o Superior Tribunal de Justiça, decidiu competir “à Justiça Federal processar e julgar os crimes perpetrados contra a organização do trabalho, quando violados direitos dos trabalhadores considerados coletivamente. A infringência dos direitos individuais de trabalhadores, sem que configurada lesão ao sistema de órgãos e instituições destinadas a preservar a coletividade trabalhista, afasta a competência da Justiça Federal. Competência do Juízo Estadual da 1ª. Vara Criminal de Itabira/MG, que se declara. Agravo desprovido” (3ª. Seção – Agravo Regimental no Conflito de Competência nº. 64.067 – Relator Ministro Og Fernandes).

No mesmo sentido, outros julgados do Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS 15702/MA; Processo nº. 2004/0014999-0. Compete à Justiça Federal o julgamento dos crimes que ofendam o sistema de órgãos e instituições que preservam coletivamente os direitos do trabalho, e não os crimes que são cometidos contra determinado grupo de trabalhadores. A infringência dos direitos individuais de trabalhadores, inexistindo violação de sistema de órgãos e instituições destinadas a preservar a coletividade trabalhista, afasta a competência da Justiça Federal. Recurso provido, para reformar o acórdão impugnado, anular todos os atos decisórios eventualmente proferidos e declarar competente a Justiça Estadual maranhense, a quem será remetido o feito.”

Habeas Corpus 36230/PE; Processo nº. 2004/0085765-6. A competência é federal quando se trata de ofensa ao sistema "de órgãos e instituições que preservam coletivamente os direitos do trabalho. Na hipótese, porém, de ofensa endereçada a trabalhadores individualmente considerados, a competência é estadual. Caso de competência estadual.”

Conflito de Competência nº. 29851/SP; Processo nº. 2000/0054780-8 – Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente." (Súmula do TFR, Enunciado nº 115). 2. Em inexistindo ofensa a órgãos e instituições que preservam coletivamente o direito e deveres dos trabalhadores, nem violação da organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente, não há falar em competência da Justiça Federal. 3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 4ª Vara Criminal de São José dos Campos/SP, o suscitado.”

Conflito de Competência nº. 29454/GO; Processo nº. 2000/0039094-1 –Em se tratando de crime contra a organização do trabalho, mas sem lesão ao "sistema de órgãos e instituições destinados a preservar coletivamente o trabalho", a competência para o processo é da Justiça estadual.”

 “Conflito de Competência nº.  23514 / MG; Processo nº. 1998/0069888-4 - Compete à Justiça Federal o julgamento dos crimes que ofendam o sistema de órgãos e instituições que preservam coletivamente os direitos do trabalho, e não os crimes que são cometidos contra determinado grupo de trabalhadores. 2 - Conflito de competência conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito de Três Pontas - MG, o suscitado.”

Portanto, considerando que o Recurso Extraordinário ora analisado não teve repercussão geral reconhecida, aplicando-se, assim, apenas ao caso dos autos, devem os órgão locais continuar atentos a esta gravíssima questão social, pois, conforme afirmou o  Ministro Ricardo Lewandowski, expressando preocupação quanto ao esvaziamento da competência das autoridades judiciárias e do Ministério Público locais no que diz respeito à defesa dos direitos fundamentos da pessoa humana, “é dever de qualquer juiz, de todos os ramos, defender os direitos fundamentais da pessoa humana. Essa não é uma competência exclusiva da Justiça Federal e acho que essa competência concorrente é extremamente salutar”, acrescentando que “nós temos hoje uma Justiça estadual forte, presente, aparelhada, preparada para fazer face aos mais diversos desafios”.

Daí que nos parece equivocada a conclusão da maioria, dado que desconsidera a dimensão da Justiça Estadual – mais próxima dos casos – em detrimento da efetiva coerção da redução à condição análoga à escravo, aparentemente mais efetiva na Justiça Federal. Houve uma confusão das premissas e o uso de argumentos amplos, incapazes de justificar o resultado apresentado.


Notas e Referências: [1] MARQUES, José Frederico, Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, p. 188, São Paulo: Bookseller, 1998.

[2] BUENO, Edgar Silveira, O Direito à Defesa na Constituição, São Paulo: Saraiva, 1994, p. 33.


Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.


Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com   Facebook aqui 


Imagem Ilustrativa do Post: DSC_3348 // Foto de: Alison // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/eatgarlic/5755764534/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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