A eficiência como código da matriz neoliberal e sua dimensão ideológica: o câmbio entre meios e fins

30/03/2015

Por Julio Cesar Marcellino Junior - 30/03/2015

Com Hayek e Friedman, foram conhecidos os principais pontos-base do pensamento capitalista pós-liberal, bem como foram compreendidos a dimensão e o alcance daquele projeto acadêmico-político que forjou os fundamentos do regime econômico prevalente em sociedade desde então, mesmo consideradas as mudanças das últimas décadas.

A partir da leitura dos referidos autores, percebe-se um ponto em comum e que em muito explica a face operacional do modelo político vigente. Refere-se à ideia da ação eficiente, tão bem descrita e desenvolvida pela dupla Hayek-Friedman.

A ação eficiente foi erigida à condição de código lógico-linguístico e ofereceu sentido e legitimidade ideológica a todo arcabouço teórico desenvolvido para o projeto neoliberal. A partir de então, a relação entre meios e fins passou a ser redimensionada e, até certo ponto, potencializada no âmbito ético.

A eficiência representa muito mais que um simples significante para a lógica economicista. A expressão eficiência, tal qual a expressão liberdade, tem sido utilizada, há muito tempo, como meio de persuasão por aqueles que creem que a sociedade deva ser pautada pelas diretrizes da economia. A eficiência chegou a um grau de parâmetro ético-vinculador em sociedade, atravessando não somente o pensamento jurídico, mas também outras áreas do saber.

No Brasil, o marco importante foi a inserção do princípio da eficiência como princípio diretriz da administração pública. Isso ocorreu por meio da reforma gerencial de Estado, materializada pela Emenda Constitucional nº. 19/1998, que alterou substancialmente a lógica de governança pública no Estado brasileiro. O que se percebe, desde o início, é que há uma dimensão ideológica que subjaz a proposta de inserção do princípio da eficiência à ordem constitucional vigente.

Provocando o que Coutinho[1] denominou como câmbio epistemológico, os neoliberais conseguiram, agora constitucionalmente, substituir a histórica relação causa-efeito − que desde os gregos antigos se apresentava como parâmetro epistêmico −, pela ação eficiente, confundindo, não por acaso, efetividade (que visa fins) com eficiência (que está atrelada a meios).

Como bem ressalta Rosa, foi atribuído o mesmo significado aos vocábulos efetividade e eficiência, equiparando falsamente tais significantes.[2] A gênese desse câmbio epistemológico, em que se substitui o paradigma de causa-efeito pela ação eficiente, é tributada a Hayek, que assim justifica a necessidade de tal substituição:

[...] simplesmente não é verdade que nossas ações devem sua eficácia apenas ou, sobretudo, ao conhecimento que somos capazes de verbalizar e que pode, portanto, constituir as premissas explícitas de um silogismo. Muitas instituições da sociedade que são condições indispensáveis para a consecução de nossos objetivos conscientes resultaram, na verdade, de costumes, hábitos ou práticas que não foram inventados nem são observados com vistas a qualquer propósito semelhante. Vivemos numa sociedade em que podemos orientar-nos com êxito, e em que nossas ações têm boas probabilidades de atingir seu objetivo, não só porque nossos semelhantes são norteados por objetivos conhecidos ou por relações conhecidas entre meios e fins, mas porque eles são também limitados por normas cujo propósito ou origem muitas vezes desconhecemos e das quais, frequentemente, ignoramos a própria existência.[3]

Segundo Hayek, a ação eficiente significa toda a ação humana pautada por meios, e não por propósitos analíticos pretensamente voltados à realização das potencialidades humanas. Como decorrência de uma ordem espontânea, as ações individuais têm por base o método tentativa e erro, de modo tal que as práticas mais eficientes e exitosas serão adotadas e reiteradas pelos sujeitos independentemente de qualquer planejamento racional-construtivista.

O objetivo do mencionado câmbio era o de – abandonando o princípio de falibilidade humana na previsão dos fins, próprio da relação causa-efeito – combater fortemente o construtivismo, isto é, as instituições criadas deliberadamente por meio da razão.[4] Tudo deveria ser pautado por ordens naturais espontâneas sem as ingerências de atos e decisões volitivas que pudessem gerar desordem, inclusive o Direito. Com o giro provocado, deixa-se de se ater aos fins, passando-se a importar única e exclusivamente com os meios.[5] Isso porque, como explica Coutinho, “os holofotes voltaram-se às ações, que devem ser eficientes, tudo de modo a projetar os melhores fins.”[6] Veja-se:

[...] É sem dúvida uma guinada sem precedentes, pela qual se pode compreender a desenfreada competitividade, assim como a deificação do mercado que, pelo eficientismo, rende glórias ao consumidor (objeto de disputa) transformado em cliente, homo economicus, acabando por deslocar o eixo da disputa capital/trabalho. Quando em questão está a eficiência (dos meios), não é que o trabalho não importe, mas ele ganha um lugar secundário quando, estrategicamente, tem-se um exército de reserva laboral e digladiam-se todos pelos postos de trabalho que sobram. A velha concepção de homo faber perde, como tal, o seu sentido; e o direito, que antes de tudo o protege, passa a ser um obstáculo, acusado de burocrático, ou melhor, burocratizante.[7]

É justamente neste sentido que o câmbio se revela peculiar: o instrumentalista homo faber[8], aquele sujeito criativo, fazedor, fabricador por meio do trabalho, sempre com suas ações voltadas aos fins, ao para quê[9], cede lugar à figura do homo economicus, sujeito privilegiado na análise econômica.

O parâmetro da ação eficiente incorporado ao ordenamento pátrio instalou no imaginário social[10] a ideia de que a eficiência consistia em panaceia para os problemas da administração pública. Sempre carreado pelas queixas de moralização da máquina pública, o discurso da eficiência foi rapidamente introduzido aos pronunciamentos de parte dos agentes políticos.

Tornando-se verdadeiro paradigma a partir do qual toda a atuação estatal deve estar pautada, a eficiência, ao lado da concorrência, produtividade e competitividade, reveste-se de caráter ético-universal. Naturaliza-se no imaginário coletivo a ideia desenvolvimentista que, desde a modernidade, tem por base uma racionalidade dominadora, excludente e que encobre a diferença e a alteridade.[11]

Outro aspecto a ser considerado é a alienação[12]. Nunca se viu na história recente esvaziamento político e ideológico de tamanhas proporções[13] – o que leva Castoriadis a afirmar que a sociedade contemporânea encontra-se à deriva.[14] Chama a atenção, por outro lado, que também nunca se viveu numa fase de tanta disponibilidade de informações, e a internet é um bom exemplo disso. Todavia, isso ocorre em um ritmo diferente, talvez pouco percebido ou pensado.

Aliás, não somente a internet, mas todo o aparato cibernético existente hoje em dia oferece infinitas possibilidades de acesso à informação.[15] Segundo Virilio, os indivíduos estão sendo dia a dia cada vez mais enredados pelo que se chama de economia da velocidade.[16] Há um descompasso engendrado entre o tempo real e o tempo histórico – no qual a ideia linear passado-presente-futuro parece não mais ter sentido.[17] É a velocidade, explica Virilio, quem tiraniza as relações em sociedade, tentando submeter a todos à visão de mundo que ela mesma forja. Velocidade, em suas palavras, “é poder”, “é meio” a serviço da acumulação de riquezas.[18]

O novo paradigma da ação eficiente se volta com foco e atenção para dois alvos privilegiados. Primeiro, os membros da máquina estatal, ou seja, os funcionários públicos. Estes funcionam, em lembrança a Arendt, como dentes de engrenagem.[19] Imaginando-se excelentes e exemplares servidores públicos, juízes, advogados, promotores, técnicos judiciários, assistentes administrativos cumprem suas funções e ordens administrativas, muitas vezes, de modo irrefletido, acrítico e, inconscientemente, vilipendiam Direitos Fundamentais.[20]

A eficiência torna a relação de trabalho no serviço público uma atividade matematizada. O que importa não são os fins que um serviço público efetivo poderia alcançar, mas sim a produtividade numérica e estatística que se poderia verificar, voltada, é claro, para otimização de gastos. Como lembra Rosa, pela eficiência, busca-se um padrão de qualidade total em nome da melhor satisfação não mais do cidadão, mas sim do consumidor-cliente, transformando as unidades administrativas e jurisdicionais muitas vezes “em objeto de ‘ISOs’, ‘5ss’ e outros mecanismos articulados para dar rapidez às demandas.”[21]

Nessa perspectiva, enquadram-se os servidores e funcionários num modelo de inspiração taylorista, em que prevalece o eficienticismo técnico-produtivo calcado na celeridade e na produtividade. Trabalho producente e lucrativo era aquele obtido com o menor custo e atingido com os melhores resultados possíveis. Em outras palavras, realizar com “140 homens o trabalho que antes necessitava de 400 a 600”.[22] O que importa é, de fato, “o aproveitamento dos homens de modo mais eficiente”.[23] Aqui, o sujeito é somente encarado, segundo dizia Arendt, como mais um dente da grande engrenagem.

Segundo Taylor, para aumentar a produtividade vale tudo: sobrecarga de trabalho, baixos salários, condições insalubres, etc.[24] Os indivíduos que não se enquadram nesse formato são considerados “vadios”[25], cuja “indolência natural”[26] deveria ser sempre combatida. O autor explica que o mencionado eficienticismo laboral não estaria restrito ao âmbito privado. Pelo contrário, tal eficienticismo poderia e deveria ser estendido a qualquer atividade social, ou seja, poderia ser praticado “na direção de nossos lares, [...] na administração de igrejas, de institutos filantrópicos, de universidades e de serviços públicos”.[27]

Percebe-se que há uma relação especial entre a lógica eficientista e o conjunto doutrinal neoliberal. Subjaz a este projeto inegável dimensão ideológica que se ofusca no discurso opaco da neutralidade científica. A ideia de ação eficiente foi apropriada como código renovador e relegitimador do ideário da novel liberdade mercadológica que se pretendeu propagar em sociedade.

A eficiência, como codificação que potencializa e redimensiona a relação entre meios e fins, apresenta-se como elo de reconexão entre a liberdade e a prosperidade. Com ar de neutralidade, oferece parâmetro balizador racional e objetivo, que foi medida recepcionada pelo Direito. No positivismo jurídico, especialmente após o reconhecimento constitucional do princípio da eficiência (Emenda Constitucional n.º 19/1998), o instituto da ação eficiente encontrou terreno fértil para avançar, mormente quando se pensa em hermenêutica e em interpretação da regra jurídica.

A universalidade é também um aspecto que contribuiu na difusão deste instituto como matriz ética. Não obstante, o processo de globalização, sobretudo a globalização financeira, exerceu papel preponderante. Compreender o fenômeno torna-se fundamental para entender as conexões entre Economia, Política e Direito.


Notas e Referências:

[1] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel da jurisdição constitucional na realização do Estado Social. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, n. 10, p. 54. 2003.

[2] ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal: a bricolagem de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 214.

[3] HAYEK, op. cit., v. I, p. 5-6.

[4] Ibidem, p. 24.

[5] Ibidem, p. 40 e ss.

[6] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do processo penal e golpe de cena: um problema às reformas processuais. JURISPOIESES – Revista Jurídica dos Cursos de Direito da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, ano. 4, n. 5, p. 34. 2002.

[7] Ibidem, p. 34.

[8] Explica Arendt: “a palavra latina faber, que provavelmente se relaciona com facere (‘fazer alguma coisa’, no sentido de produção), aplicava-se originariamente ao fabricante e artista que trabalhava com materiais duros, como pedra ou madeira; era também usada como tradução do grego tekton, que tem a mesma conotação. A palavra fabri, muitas vezes seguida de tignarii, designava especialmente operários de construção e carpinteiros. Não pude determinar onde e quando a expressão homo faber, certamente de origem moderna e pós-medieval, surgiu pela primeira vez. Jean Leclercq [...] sugere que foi Bérgson quem ‘lançou o conceito de homo faber na circulação das ideias’.” ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 149.

[9] Ibidem, p. 167.

[10] Castoriadis afirma que “falamos de ‘imaginário’ quando queremos falar de alguma coisa ‘inventada’ − quer se trate de uma invenção ‘absoluta’ (‘uma história imaginada em todas as suas partes’), ou de um deslizamento, de um descolamento de sentido, onde (sic) símbolos já disponíveis são investidos de outras significações que não suas significações ‘normais’ ou ‘canônicas’ (‘o que você está imaginando’, diz a mulher ao homem que recrimina um sorriso trocado por ela com um terceiro). Nos dois casos, é evidente que o imaginário se separa do real, que pretende colocar-se em seu lugar (uma mentira) ou que não pretende fazê-lo (um romance).” CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Tradução de Guy Reynaud. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

[11] DUSSEL, Enrique. 1942. O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 17 e ss.

[12] Castoriadis explica: “A alienação não é nem a inerência à história, nem a existência da instituição como tal. Mas a alienação surge como uma modalidade da relação com a instituição e, por seu intermédio, da relação com a história. [...] Tudo que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. [...] Uma organização dada da economia, um sistema de direito, um poder instituído, uma religião existem socialmente como sistemas simbólicos sancionados.” E mais adiante: “A alienação é a autonomização e a dominância do momento imaginário na instituição que propicia a autonomização e a dominância da instituição relativamente à sociedade.” CASTORIADIS, op. cit., p. 139,142 e 159.

[13] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 60.

[14] CASTORIADIS, Cornelius. Una sociedade a la deriva: entrevistas y debates. Tradução de Sandra Garzonio. Buenos Aires: Katz, 2006. p. 281 e ss.

[15] VIRILIO, Paul. La bomba informática. Tradução de Mónica Poole. Madrid: Cátedra, 1999. p. 74

[16] VIRILIO, Paul. Velocidad y política. Tradução de Víctor Goldstein. Buenos Aires: La Marca, 2006. p. 120.

[17] VIRILIO, Paul. El cibermundo, la política de lo peor. Tradução de Mónica Poole. Madrid: Cátedra, 1999. p. 14-15.

[18] Afirma o autor: “La velocidad es una cuestión primordial que forma parte del problema de la economía. La velocidad es, a su vez, una amenaza tiránica, según el grado de importancia que se le dé, y, al mismo tiempo, ella es la vida misma. No se puede separar la velocidad de la riqueza. […] Se puede incluso llegar más lejos y decir que la velocidad es un medio.” VIRILIO, op. cit., p.16-17.

[19] ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 91-93.

[20] Nesse sentido, tais servidores atuam de maneira similar aos oficiais nazistas que cumpriam irrefletidamente suas ordens, achando que estavam procedendo de modo correto e fazendo um grande bem para a pátria. Isso foi o que se observou em Eichmann, um militar nazista que simplesmente não tinha a real noção do que fazia. ARENDT, op. cit., p. 60.

[21] Rosa ainda lembra que a “Reforma do Judiciário foi perigosamente na linha consumidor-eficiência.”/ROSA, op. cit., p. 213. Em outra obra, afirma que “[...] a situação brasileira segue o vácuo do modelo americano de exclusão, bastando que se veja a dimensão do Bolsa-Escola, cadastramento de famílias, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, dentre outras iniciativas – mesmo de governo que se dizem democráticos – que escondem para os incautos os mesmos mecanismos americanos de ‘normatização’ [...].” ROSA, Alexandre Morais da. Direito infracional: garantismo, psicanálise e movimento antiterror. Florianópolis: Habitus, 2005. p. 33-34.

[22] TAYLOR, Frederick Winslow. Princípios de administração científica. Tradução de Arlindo Vieira Ramos. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1990. p. 15.

[23] Ibidem, p. 24.

[24] Em suas palavras: “Tenho grande simpatia por aqueles que trabalham em excesso, mas, maior ainda, por aqueles que são mal pagos.” TAYLOR, op. cit. p. 29.

[25] Taylor demonstra preocupação com “esse assunto tão amplo e importante da vadiagem no trabalho, que diretamente afeta o salário, a prosperidade e a vida de quase todos os trabalhadores, bem como a prosperidade das indústrias nacionais”. TAYLOR, op. cit. p. 27.

[26] Ibidem, p. 30.

[27] Ibidem, p. 23.


Sem título-20  

Julio Cesar Marcellino Jr. é Especialista em Direito Econômico pela FGV/RJ e Especialista em Gestão Pública pela UNISUL, Mestre em Ciência Jurídica pela UNIVALI e  Doutor em Direito pela UFSC. Atualmente Secretário da Casa Civil do Município de Florianópolis.


Imagem Ilustrativa do Post: Big Smile! // Foto de: JD Hancock // Sem alterações Disponível em: http://photos.jdhancock.com/photo/2012-08-13-053933-big-smile.html

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