TELETRABALHO E LANCHE FORNECIDO PELO EMPREGADOR    

23/10/2020

Como é de conhecimento geral, a pandemia da COVID-19 obrigou milhares de empresas a colocarem seus empregados em regime de teletrabalho, a fim de cumprir com as normas de saúde e de segurança editadas pelos órgãos governamentais.

A repentina e necessária mudança do regime de trabalho presencial para teletrabalho gerou inúmeros desafios para empregadores e empregados.

Um tema que pode passar despercebido, mas que possui relevância no contexto diário do mundo do trabalho diz respeito ao lanche fornecido diariamente pelos empregadores aos empregados, benefício este que está presente em grande número de instrumentos coletivos (CCTs ou ACTs).

Com a alteração do local de trabalho das dependências da empresa para a casa de cada empregado, como fica o fornecimento do lanche? Ainda permanece obrigatório ou pode ser suprimido?

A análise meramente literal da questão conduziria à conclusão da obrigatoriedade de manutenção do fornecimento do lanche, sob pena de condenação da empresa por descumprimento de obrigação normativa.

Porém, salvo melhor juízo, entendo que essa não é a interpretação mais razoável.

Isso porque a obrigatoriedade de fornecimento do lanche foi pensada e incluída nos instrumentos coletivos considerando-se a realidade do trabalho cumprido nas dependências da empresa.

Com essa realidade em mente, o cumprimento da obrigação em questão é possível e demanda baixa complexidade e custo moderado de operacionalização. O empregador geralmente contrata empresa especializada no fornecimento do lanche, que se encarrega de entregar o produto diariamente no local designado, o que na maioria das vezes se confunde com as dependências da empresa contratante.

O fornecimento de lanche possui grande relevância no sentido de amenizar o esforço e o tempo despendidos pelos empregados no deslocamento até o local de trabalho e de fornecer-lhes condições físicas mais adequadas para a prestação de suas funções.

Porém, com o cumprimento do regime de teletrabalho, essa obrigação passa a ser de altíssima complexidade e, consequentemente, de altíssimo custo para as empresas.

A título de exemplo, imagine-se uma empresa com 200 empregados e que se comprometeu, por via de negociação coletiva, a fornecer diariamente lanche no início da jornada de trabalho.

Essa empresa firmou contrato de fornecimento de lanche com empresa especializada, que diariamente entregava os lanches na sede da companhia.

Com o advento da pandemia, suponhamos que 70% dos empregados passaram a cumprir o regime de teletrabalho, o que significa o total de 140 pessoas.

Imagine-se que tal empresa deverá cumprir a literalidade do disposto no instrumento coletivo. Além de manter o contrato com a empresa de fornecimento do lanche, o cumprimento da obrigação exigiria a contratação adicional de empresa de transporte, que fosse capaz de entregar 140 lanches em endereços distintos, diariamente.

A manutenção da obrigatoriedade do fornecimento do lanche para os empregados em teletrabalho, tão somente em razão da interpretação literal de cláusula constante de instrumento coletivo, demandaria elevadíssimo custo para a empresa, que certamente não estaria previsto em nenhum cenário orçamentário.

Lado outro, o teletrabalho exime o empregado do desgaste físico com o deslocamento até o local de trabalho, o que minimiza a necessidade de fornecimento do lanche pelo empregador.

Na prática, o custo para o fornecimento do lanche seria infinitamente superior ao benefício a ser recebido por cada um dos empregados em teletrabalho.

Some-se esse custo ao fato de que a grande maioria das empresas em atividade no país sofreu perda de arrecadação em razão da pandemia do novo coronavírus.

Ressalta-se ser desaconselhável o fornecimento do lanche em espécie, sob pena de caracterização da natureza salarial do benefício, conforme disposto no artigo 458 da CLT e a Súmula 241 do TST, em que pese o teor da Orientação Jurisprudencial 133 da SDI-1 do TST, o que oneraria ainda mais as empresas, em razão dos reflexos em várias outras verbas.

Em resumo, nesse caso fictício, a empresa, que já padecia com a redução de arrecadação, teria que suportar custo adicional (e impossível de ser previsto) para o cumprimento da obrigação normativa de fornecimento de lanche diário para os empregados em teletrabalho.

É certo que o direito civil pátrio consagra a cláusula “pacta sunt servanda”, que garante a segurança jurídica no cumprimento dos acordos pelas partes signatárias.

Entretanto, é igualmente certo que o direito civil e o direito processual civil consagram a cláusula “rebus sic stantibus”, que garante a eficácia dos acordos enquanto permanecerem inalterados os pressupostos fáticos e jurídicos existentes quando da sua assinatura.

Destacam-se abaixo os artigos 421-A, III e 478 do Código Civil e o artigo 505, I, do Código de Processo Civil:

CC, Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:

(...)

III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.

CC, Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

CPC, Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:

I - se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;

Entendo que tal princípio é perfeitamente aplicável ao caso em análise, pois a pandemia da COVID-19 impactou severamente a maioria das empresas e empregados, sendo que ambos tiveram pouco ou nenhum tempo para se adaptar à nova realidade.

Alexandre Faro, Elide B. de Lima e Luíta Maria Vieira corroboram esse entendimento:

“(...) A pandemia da Covid-19, nesse cenário, nos parece exemplo mais claro — típico de doutrina — acerca da necessidade de aplicação da Teoria da Imprevisão e da Onerosidade Excessiva aos contratos de prestação continuada vigentes nas relações civis, empresariais e, principalmente, financeiras. A situação global decorrente da pandemia vem causando um efeito avassalador nas grandes economias mundiais, tais como China, EUA e Alemanha, além de diversos países de Europa, Ásia e Américas. Diante de sua extensão global, sem precedentes e sem previsão para término, a Covid-19 traz, inevitavelmente: (I) variação de inflação em razão da crise; (II) a variação cambial sem precedentes e diretamente vinculada aos efeitos negativos da crise; e (III) a desvalorização do padrão monetário. Consequências puramente financeiras, jamais previstas nessa amplitude. (...)[1]

Carlos Alberto Moura Leite dispõe com precisão sobre o tema:

“(...) Não obstante a presunção de paridade e simetria dos contratos civis e empresariais, conforme destacado no caput do art. 421-A, a situação de pandemia e as medidas tomadas pelo Poder Executivo, caracterizam-se como eventos imprevisíveis que afastam a presunção.

Em complemento ao pacta sunt servanda, existe a regra da cláusula rebus sic stantibus, que traduz o entendimento de que o contrato faz lei entre as partes enquanto as coisas permanecerem na forma estabelecida na época do contrato.

A cláusula rebus sic stantibus levou a criação da teoria da imprevisão, que muito se discutiu a sua incidência no ordenamento jurídico brasileiro, conforme destacado nos artigos de lei já citados. (...)[2]

Neste sentido, a manutenção de cláusula normativa de fornecimento de lanche diário, que, repita-se, foi pactuada para empregados que trabalhavam nas dependências da empresa e em cenário econômico bem mais favorável do que o atual, levará, inevitavelmente, ao aumento dos custos e à necessidade de demissões para a sobrevivência empresarial.

Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani expõe com clareza a respeito da possibilidade de revisão de cláusulas tornadas excessivamente onerosas por eventos imprevisíveis à época da pactuação dos instrumentos coletivos:

“(...) Portanto, é de inferir-se que para que tenha campo de aplicação a cláusula “rebus sic stantibus”, necessária é a verificação de evento superveniente imprevisível à época da celebração do contrato, que acarrete excessiva onerosidade ao devedor e que, acresça-se, gere o injusto e injustificável enriquecimento do credor, condições essas que hão de fazer-se presentes cumulativamente.

E no que toca ao direito obreiro, atendidas as suas peculiaridades em casos de convênios coletivos, são os mesmos os pressupostos que autorizam a invocação da cláusula “rebus sic stantibus”, por meio da qual é viável a mutação de cláusula de Acordo em Dissídio Coletivo que fie critérios para majorações salariais, de vez que para usar o mesmo exemplo de Ripert suso citado, do mesmo modo que o Poder Judiciário não pode levar um indivíduo à ruína, compelindo-o a cumprir um contrato, quando ao tempo da construção contratada, os preços dos materiais e da mão-de-obra se elevaram a patamares se tal modo superiores que não podiam ser previstos ao ensejo da celebração do concerto, também não é possível o Poder Judiciário levar empresas à bancarrota como consectário de exigir-lhes o cumprimento de cláusulas contidas em instrumentos coletivos que estabelecem reajustes salariais, diante da ocorrência de sucessos posteriores que não podiam ser previstos ao ensejo das aludidas estipulações. (...)[3]

Portanto, entendo que a alteração do regime de trabalho dos empregados, de presencial para teletrabalho, por força de cumprimento das normas de saúde e de segurança em razão da pandemia da COVID-19, constitui-se fundamento para a supressão do fornecimento do lanche previsto em instrumento coletivo, por aplicação da cláusula “rebus sic stantibus”.

Não é demais dizer que o caminho mais seguro para a resolução da questão é a repactuação da obrigação junto aos signatários do instrumento coletivo (sindicatos dos empregados), sendo que os fundamentos constantes no presente trabalho servem de suporte para a análise e compreensão equilibradas da questão.

Por fim, entendo que o fornecimento do lanche deve ser objeto de negociação para os empregados que passarão a cumprir o regime de teletrabalho de forma definitiva, a fim de garantir segurança jurídica para as partes envolvidas.

 

Notas e Referências

FARO, A.; LIMA, E.B.; VIEIRA, L.M. Pandemia do coronavírus, teoria da imprevisão e revisão de contratos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-12/opiniao-pandemia-teoria-imprevisao-revisao-contratos. Acessado no dia 21 de setembro de 2020.

GIORDANI, F.A.M.P. A cláusula “rebus sic stantibus” no Direito Coletivo do Trabalho e as alterações da política salarial. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/115150/1991_giordani_francisco_clausula_rebus.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acessado no dia 22 de setembro de 2020.

LEITE, C.A.M Teoria da imprevisão - Coronavírus. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/322291/teoria-da-imprevisao---coronavirus. Acessado no dia 21 de setembro de 2020.

[1] FARO, A.; LIMA, E.B.; VIEIRA, L.M. Pandemia do coronavírus, teoria da imprevisão e revisão de contratos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-12/opiniao-pandemia-teoria-imprevisao-revisao-contratos. Acessado no dia 21 de setembro de 2020.

[2] LEITE, C.A.M Teoria da imprevisão - Coronavírus. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/322291/teoria-da-imprevisao---coronavirus. Acessado no dia 21 de setembro de 2020.

[3] GIORDANI, F.A.M.P. A cláusula “rebus sic stantibus” no Direito Coletivo do Trabalho e as alterações da política salarial. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/115150/1991_giordani_francisco_clausula_rebus.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acessado no dia 21 de setembro de 2020.

 

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