Sozinho ninguém vive: comentários à MP 881

05/05/2019

Quando da criação do Código Civil de 2002, foram celebradas as mudanças, ainda que tímidas, que devolviam ao Direito Civil o seu real papel, seja através da personalização, seja pelos celebrados princípios no campo patrimonial, adequados a um pretendido Estado de Bem-Estar Social. Já Miguel Reale, seu coordenador, indicou que as diretrizes norteadoras do Código foram a eticidade, a socialidade e a operabilidade.

A socialidade se encontra plasmada notadamente no princípio da função social, que encontramos previsto de modo expresso tanto no que toca ao contrato, como no que toca à propriedade. E função social, quando aparece, sempre incomoda.

 A verdade é que a palavra “social” sempre trouxe ojeriza a certos setores da sociedade, que parecem se considerar à parte dela própria. Mais do que isso, a enxergam como nada além de meio de produção para sua própria riqueza. Um mal necessário, por assim dizer, suportado pelas elites.

Já Orlando Gomes, no seu clássico livro “Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro”, ao tratar do Código de 1916, retratava o quadro da sua formação no que toca à tentativa de inserção dos direitos sociais: “Mas esse movimento não exerceu qualquer influência no Código Civil que se elaborava simultaneamente. A mentalidade dominante conservava-se fiel ao individualismo jurídico, mais consentâneo, então, com o grau de desenvolvimento das forças produtivas do país” (p,33), e continua “O autor do projeto de Código Civil faz, por fim, profissão de fé anti-socialista, ao afirmar que, se cumpre evitar do individualismo o que ele contém de exageradamente egoísta e desorganizador, não é perigo menor resvalar no socialismo absorvente e aniquilador dos estímulos individuais. Note-se que esse socialismo a que se refere era apenas o movimento que viria concretizar-se, pouco depois, no reconhecimento dos direitos sociais hoje inscritos em todas as Constituições modernas do mundo” (p,36).

Feito este preâmbulo, vamos ao tema. Foi editada, em 30/04/19, pelo Governo Federal a Medida Provisória 881, intitulada “Declaração de Direito de Liberdade Econômica”. Dentre diversas medidas, altera vários artigos do Código Civil, sendo alguns deles alvo da análise aqui realizada. De início, cabe destacar que como bem salientado pelo civilista Cristiano Chaves em texto publicado recentemente nas suas redes sociais, é flagrante o problema da inconstitucionalidade formal da MP, vez que não se encontram presentes os requisitos para o uso de tal medida. Este fato à parte, com o qual nem mesmo os defensores da medida parecem concordar, vamos ao conteúdo.

Um primeiro absurdo foi a inserção do dolo como requisito para desconsideração da personalidade jurídica. Transformou-se, assim, da teoria maior objetiva para a teoria maior subjetiva. Quiçá fosse necessário até um novo nome, subjetivíssima, subjetiva-dolosa, ou coisa que o valha, tamanha a dificuldade criada para a desconsideração! Assim, não bastasse a já contumaz dificuldade em realizar a desconsideração em virtude de sua necessidade, no mais das vezes, só vir a ser descoberta na fase de execução, agora se torna necessário que o interessado realize a prova do dolo.

Criou ainda uma taxação igualmente absurda do que constitui desvio de finalidade e confusão patrimonial, com o que também concordo com Cristiano Chaves, quando afirma que “Existem casos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial inimagináveis, sem que a norma possa antevê-los em sua totalidade. Um empresário que paga contas pessoais com verba da pessoa jurídica e vice-versa não abusa da personalidade? É demais achar que a norma limita a vida.” O uso de conceitos indeterminados no caso se mostrava como essencial para a adequada adaptação da norma às mais diversas situações fáticas.

Quanto a isso, o que se pode defender, já que não há no texto legal nada que proíba tal interpretação, é de que o rol apresentado é meramente exemplificativo, sendo igualmente possível outras hipóteses que caracterizem desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Esta, aliás, parece ser a única interpretação possível a se dar dentro do intuito de preservar a própria sistemática do Código.

Um segundo absurdo, e último que se abordará aqui, foi no que toca à função social do contrato, e aqui retornamos ao nosso preâmbulo. (Antes, um parêntese: que ninguém se engane, não se trata de movimento isolado. A próxima, talvez com mais dificuldade por se encontrar como direito fundamental na Constituição Federal, será a função social da propriedade. Anotem e aguardem.)

A função social, seja por desconhecimento, por má-fé interpretativa, seja por preconceito de classe, sempre foi mal recebida em alguns círculos. Parece incrível que se tenha que repetir o óbvio, em situação análoga, tantos anos depois de Orlando Gomes, mas vamos lá: função social não é comunismo (que pena?). Função social é tão somente a ideia de que, na persecução dos interesses individuais, que devem ser preservados, não é possível passar com um rolo compressor por cima dos interesses alheios.

Afirmar intervenção mínima do Estado no que toca à realização da função social e condicioná-la ao disposto na “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, é o mesmo que dizer que a função social do contrato não mais deveria existir.

Acontece que as medidas acima apontadas, são ruins para muito mais gente do que se pode imaginar. É que, como disse um amigo advogado, que preferiu não ser identificado, tem gente que é dono de um carrinho de pipoca e pensa que é dono do Mc Donald’s! Freud explica.

Isso porque, se por um lado a desconsideração da personalidade jurídica serve para o empregado que processa o empregador que não lhe pagou seus direitos trabalhistas (e esse ainda a pode alegar, já que a mudança não afeta o Direito do Trabalho!), por outro serve também para o empresário, credor de outro, que venha a ser vítima de situação fraudulenta!

É para abandonar a função social do contrato? Então vamos lá. Uma das aplicações dela que me parece muito clara é a proibição de realização de contratos entre empresas que criem cartéis e trustes. Porque, nestes casos, por mais que tal contrato possa ser útil aos que delem participem (lucro, lucro, lucro!) sua proibição se dá justamente porque prejudicam o ambiente concorrencial, desviando assim não só o contrato, como as empresas dele participantes, da sua função social. Deveria tal prática agora ser permitida? Intervenção mínima! Para não falar das questões ambientais (alô, tragédias ambientais!), urbanísticas e consumeristas, todas elas, felizmente, também ainda protegidas, pois regulamentadas por legislação especial.

O mundo do individualismo está batendo às nossas portas. Somente fechando os olhos para o fato de que as pessoas têm pontos de partida completamente desiguais, é que se pode sustentar a ideia de desprezo à função social, nas suas mais diversas aplicações no Direito. A solidariedade é elemento essencial para a construção de uma sociedade que pretenda ser segura e saudável. Numa disputa de todos contra todos, pode ser que o mais forte (não por mérito, mas por vantagem) vença. Mas no final ele verá que está só. E sozinho ninguém vive.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura