Réplica à crítica de Mario Sergio Conti ao livro A Resistência ao Golpe de 2016 – Por Agostinho Ramalho Marques Neto

27/07/2016

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Em seu comentário intitulado “Os olhos, ah, os olhos”[2], publicado no jornal Folha de São Paulo de 5 de julho de 2016, o jornalista Mario Sergio Conti dirige uma pretensa “crítica” ao livro A Resistência ao Golpe de 2016. É difícil, com efeito, chamar de crítico um texto superficial que nada argumenta e se limita a citar esparsamente, em tom depreciativo, fragmentos dos artigos que compõem o livro, inteiramente descontextualizados e sem indicação de autoria.

Em duas linhas, sem citar o meu nome nem o título do meu trabalho “O Juiz como Protagonista do Espetáculo: a Paranoia como Metáfora para Pensar essa Posição”, ele assim pretende refutá-lo: “A caricatura aparece num ensaio que sataniza Sergio Moro. O autor tem a risível audácia de comparar o juiz paranaense ao paranoico clássico analisado por Freud, Daniel Schreber – aquele que, ao comer, jurava que engolia pedaços da língua...”.

A impressão que fica é de que o jornalista não leu com um mínimo de atenção o meu artigo – como, de resto, os outros artigos que compõem o livro, a julgar pelos comentários que tece (talvez, mais precisamente, pela ausência de comentários) –, ou, se o leu, parece ter tido uma compreensão simplória do que leu.

Caracterizar Daniel Paul Schreber como “aquele que, ao comer, jurava que engolia pedaços da língua” é desconhecer inteiramente aquilo de que se trata no caso clínico que Freud publicou em 1911 a partir do relato autobiográfico feito pelo próprio Schreber (que, aliás, Freud não conheceu pessoalmente) no seu livro Memórias de um Doente dos Nervos. O que interessa a Freud – assim como a mim, no meu artigo – são os traços estruturais da psicose paranoica, dentre os quais destaquei a “certeza absoluta e delirante; inacessibilidade à dúvida e à autocorreção; falta de acesso ao princípio de realidade e à retificação racional; missão redentora que não raro se apresenta também como sagrada” (p. 21). O âmago do delírio de Schreber consistia na firme crença de que era imperiosa sua transformação em mulher para, nessa condição, conceber filhos de Deus a fim de que uma nova raça de homens nascesse para redimir a humanidade.

O detalhe de “engolir pedaços da língua” – que em Schreber não passa de um acidente alucinatório dentre diversos outros que ele frequentemente tinha – só foi evocado por mim para ilustrar a falta de acesso ao princípio de realidade e à retificação racional. A certeza, de fundo alucinatório, de que engolia partes da língua enquanto comia era tão inabalável que de nada adiantaria mostrar-lhe ao espelho a língua íntegra: ele engolira, sim, e se agora aparecia inteira, isso decorria de um “milagre divino”. A certeza ficava, assim, preservada, e quaisquer contraprovas e contra-argumentos eram simplesmente ignorados.

Em momento algum afirmo que o juiz Moro seja um paranoico nesse sentido psicótico acima delineado. Pelo contrário, deixo bem claro que não considero que o seja. O seu “delírio” é de outra natureza. Mas também comporta uma certeza prévia, designada habitualmente como “convicção”, de que aquele “suspeito” que está sob julgamento (acusado, por exemplo, numa “delação premiada”, da prática de algum crime sem que, no mais das vezes, qualquer prova da veracidade do teor da acusação seja apresentada) é indubitavelmente culpado. O processo movido contra ele já carrega desde a origem uma presunção de culpa.

Essa certeza prévia, analogamente ao que ocorria com Schreber, não cede diante de provas nem de argumentos racionais em contrário, e a partir dela o processo é conduzido com o propósito deliberado de obter a todo custo as “provas” que pareçam corroborar aquela convicção antecipada da culpa do acusado, para isso desprezando-se os princípios democráticos e constitucionais de presunção de inocência e do devido processo legal; aceitando-se como válidas “provas” obtidas ilegalmente ou mediante o recurso a práticas que, embora legais em tese, caracterizam de fato atos e pressões semelhantes à tortura, como, por exemplo, o prolongamento indefinido da prisão provisória para pressionar o sujeito a fazer o “acordo” da delação; vazando-se, além disso, para a imprensa informações contidas em processos que correm em segredo de justiça ou tenham sido obtidas mediante escutas ilegais, para com isso induzir a opinião pública a pressionar os julgadores nas instâncias superiores a não reformarem as sentenças proferidas em primeira instância. Tudo dentro da mais estrita observância da máxima perversa de que os fins justificam os meios... Ou seja, o combate à corrupção e à impunidade (que, evidentemente, é legítimo e necessário, contanto que conduzido em conformidade com o devido processo legal) justifica o emprego de práticas abusivas e até mesmo, como uma espécie de efeito colateral, a eventual condenação de um inocente.

Foi nesse contexto que tomei alguns dos principais traços constitutivos da paranoia como metáforas para pensar a atuação não somente do juiz Moro e de outros juízes que agem de modo semelhante a ele, mas também de todo o aparato chamado de “força-tarefa” que dá sustentação à prática desses atos judicantes abusivos, e que abrange, no âmbito da midiática “Operação Lava Jato”, por exemplo, membros da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e da assim chamada grande imprensa, com destaque às versões que se sobrepõem aos fatos nos noticiários da Rede Globo de Televisão.

Se o paralelo que estabeleci é “risível”, como afirma o jornalista, isso depende do ponto de vista a partir do qual cada um o considere. Afinal de contas, todos são livres para rir (ou chorar) do que quer que seja... Se é “audacioso”, isso é uma questão de opinião. Em todo caso, assumo inteiramente a “audácia” de dirigir minhas reflexões críticas a quaisquer autoridades e sistemas de poder, contanto que as considere pertinentes e as apresente em termos sóbrios, como convém às relações de urbanidade que devem vigorar entre os cidadãos.


Notas e Referências:

[1] Uma versão reduzida deste texto foi publicada na Folha de São Paulo de 26 de julho de 2016, caderno Poder, p. 6, sob o título “Conti critica meu trabalho de maneira descontextualizada”.

Edição digital: http://m.folha.uol.com.br/poder/2016/07/1795382-conti-critica-meu-trabalho-de-maneira-descontextualizada.shtml?mobile

[2] http://m.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2016/07/1788580-os-olhos-ah-os-olhos.shtml


 

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