Plataforma “Solução Direta”: incentivo à autocomposição ou novo obstáculo aos consumidores?    

27/05/2022

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

De um lado temos o acesso à justiça garantido como direito fundamental pelo artigo 5º, XXXV da Constituição Federal. De outro, o volume gigantesco de demandas movidas no judiciário brasileiro (1) que afeta a prestação jurisdicional em sua celeridade e qualidade.

Neste cenário, surge uma iniciativa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul chamada “Solução Direta - Consumidor”. Trata-se de uma parceria entre o Poder Judiciário estadual e a Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça. (2)

O projeto incentiva que os consumidores acessem o site consumidor.gov.br e realizem reclamações diretamente a fornecedores e prestadores de serviço. A plataforma visa estabelecer um meio de contato para solução administrativa de conflitos envolvendo direito consumerista.

É natural, e, a meu ver, louvável, o incentivo à composição e o incentivo à chamada justiça multiportas. São vários os benefícios trazidos pela autocomposição. Além da redução no número de demandas judiciais, a resolução não litigiosa de conflitos traz maior autonomia aos cidadãos, diminui o tempo de espera e permite, inclusive, que os comerciantes e fornecedores possam reparar eventuais falhas com diligência e manter o cliente fidelizado.

Acontece que a relação de consumo não é simétrica e, portanto, não pode ser tratada como tal pelos Poderes Públicos. Até mesmo em razão disso, o Código de Defesa do Consumidor determinou que o direito ao acesso à justiça, nestes casos, seja facilitado, conforme artigo 6º, VIII.

Tendo isso em mente, me parece natural que a busca por soluções administrativas através do projeto “Solução Direta” seja mais uma ferramenta à disposição da população. Com educação da sociedade sobre direitos do consumidor, e alguma mudança cultural, esta plataforma tem potencial para que de fato exista solução de conflitos de consumo fora do judiciário.

No entanto, nos últimos anos, o cadastramento de reclamações no site do consumidor.gov.br passou a ser exigido como pré-requisito para o processamento de ações judiciais.

Embora as Turmas Recursais e as Câmaras do Tribunal de Justiça pareçam ter formado maioria no sentido da impossibilidade de criação de limitações ao acesso à justiça, as decisões de 1º grau determinando a suspensão ou extinção do feito quando não houver processamento da reclamação pelo site consumidor.gov.br continuam sendo tomadas.

Há, aí, diversos problemas, tanto em níveis teóricos quanto práticos. Inicialmente, como reconhecido pela maior parte (definitivamente não pela unanimidade) da segunda instância, o Poder Judiciário não tem competência para criar limitações à direito fundamental quando a própria Constituição não elenca restrições ao mesmo. Pelo contrário, como visto, no âmbito das relações de consumo o acesso à justiça é ampliado pelo CDC.

Entretanto, quando decisões de Magistrados de 1º grau determinam tal diligência, há ainda desafios processuais. Como se sabe, decisões interlocutórias no sistema dos Juizados Especiais Cíveis são irrecorríveis. Já na Justiça Comum, existe a impossibilidade de a apreciação de agravos de instrumento fora das hipóteses do rol taxativo do artigo 1.015 do CPC.

Temos, portanto, a criação de um ônus para o consumidor que vai de encontro com o texto legal e que, muitas vezes, sequer chega a ser apreciado em 2º grau. Isso sem adentrar nos gastos monetários e temporais que envolvem um recurso judicial.

E não se trata de alguns poucos casos isolados. Em busca das expressões “consumidor”, “acesso”, “justiça”, “solução” e “direta” no acervo de jurisprudência do TJRS, localizam-se 653 julgamentos. Ou seja, são vários os Magistrados que vêm exigindo a comprovação da tentativa de resolução prévia dos litígios na plataforma consumidor.gov.br. (3)

É possível concluir, assim, que a criação da plataforma virtual que pretendia servir como ferramenta auxiliar na defesa dos direitos dos consumidores acabou criando um requisito que a própria lei não traz.

Mas, se poderia perguntar se de fato há um grande prejuízo em determinar o uso da plataforma. Não seria mais simples registrar a reclamação e aguardar o prazo estabelecido?

Ora, talvez o manejo do site feito por advogados não traga maiores complicações. No entanto, como registrei no início deste texto – a relação de consumo não é simétrica; envolve vulneráveis e hipervulneráveis, e envolve também um grande número de cidadãos sem assessoria jurídica, pelos mais diversos motivos. A obrigatoriedade do uso de uma plataforma virtual pode, literalmente, impedir que parte da população exerça seus direitos neste caso.

Além disso, não há antecipação de tutela na “Solução Direta”. Casos com urgência que envolvem, por exemplo, eminente corte de energia elétrica, água ou inclusão de restrição de crédito precisam de acesso imediato à tutela judicial.

E, passando ao funcionamento do site em si, é interessante analisar que o intuito deste é de aproximar consumidores e fornecedores e de registrar suas interações de uma maneira formal, mas não de impor soluções – até mesmo porque para isto a instituição competente é o Poder Judiciário.

Ocorre que tal sistemática tem alguns problemas. Conforme indicadores disponibilizados pela própria plataforma, alguns segmentos possuem taxas bastante elevadas de “não-solução”. A área de “transporte aéreo” tem por volta de 30% dos casos não solucionados, enquanto “viagens, turismo e hospedagem” gira em torno de 33% de demandas sem resolução.

O índice de satisfação com o atendimento atual também não é dos melhores. Atualmente atinge 3 pontos em uma escala que vai de 1 a 5. Há empresas, ainda, que mesmo cadastradas não chegam nem mesmo a responder as reclamações. Desta forma, é possível perceber que a plataforma ainda tem algum caminho para oferecer maior qualidade aos usuários. (4)

Finalmente, há ainda uma reflexão que, a meu ver, traz a crítica mais grave a situação aqui debatida. Estabelecer como requisito para o ingresso de consumidores na esfera judicial acaba por gerar um ônus para este grupo, e tão somente para ele. Note-se que os fornecedores e prestadores de serviço não possuem qualquer obrigação de participar do projeto.

Segundo informação do site:

"A participação no Consumidor.gov.br somente é permitida às empresas que se comprometem a analisar e responder as reclamações registradas pelos consumidores. Para isso, é necessário que a empresa tenha interesse em participar e concorde com as regras previstas no Termo de Adesão e Compromisso.” (5)

Constrói-se, assim, uma barreira a um público já vulnerável – uma barreira que somente poderá ser transposta – diga-se de passagem – com acesso à internet e conhecimentos de informática. Um ônus que inexiste para fornecedores e prestadores de serviço. Um ônus que acaba por desequilibrar ainda mais uma relação já assimétrica.

É justamente por isto tudo que penso que a iniciativa da “Solução Direta – Consumidor” é nobre e detém grande potencial, mas que deve ser, como inicialmente idealizado, uma opção do consumidor.

Talvez um debate interessante seria o de como reequilibrar o sistema.

E se reclamações realizadas pela plataforma e ignoradas pelas empresas, ou casos em que há evidentes falhas e são respondidas com negativas de reparação injustificadas gerassem repercussão em futuras ações judiciais? Poderia se imaginar uma penalidade para empresas que agissem com inércia ou protelassem a solução em casos de notória falha na prestação de serviços? Talvez essa fosse uma maneira de onerar os fornecedores na mesma medida em que se oneram os consumidores, mas estes são questionamentos para outras reflexões.

 

 Notas e Referências

1 – Segundo o Relatório Justiça em Número do Conselho Nacional de Justiça do ano de 2021, somente em 2020 foram distribuído 25,8 milhões de novos casos no Judiciário brasileiro. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf. Acesso em 25 de maio de 2022.

2 – Informações sobre a parceria disponíveis no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em https://www.tjrs.jus.br/novo/projeto-solucao-direta-consumidor/ e https://www.tjrs.jus.br/novo/noticia/solucao-direta-consumidor-auxilia-clientes-a-resolver-conflitos-de-forma-rapida-5/, ambas com acesso em 25 de maio de 2022.

3 – A exemplificar, podem ser consultadas as ementas dos julgamentos da Apelação Cível, Nº 50076009120218210033; Agravo de Instrumento, Nº 50814717420228217000; Apelação Cível, Nº 50004053320218210008; Apelação Cível, Nº 50064291920178210008 e Apelação Cível, Nº 50070015520218210033.

4 - Informações disponíveis em https://www.consumidor.gov.br/pages/indicador/geral/abrir. Acesso em 23 de maio de 2022.

5 – Informação disponível em https://www.consumidor.gov.br/pages/principal/sugerir-empresa. Acesso em 23 de maio de 2022.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Lady Justice // Foto de: Dun.can // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/duncanh1/23620669668/

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