PESSOAS HIPERCONECTADAS NAS REDES SOCIAIS E SHARENTING

15/05/2024

A exposição infantil na internet e o abuso de direitos de crianças e adolescentes[i]

A sociedade conectada vive um conflito significativo. A tecnologia, simultaneamente, inclui e destrói. De um lado, amplia a produtividade e a criatividade, contribuindo para a realização humana. Por outro, gera isolamento por meio da internet, compromete a privacidade, estimula o anonimato, facilita a criminalidade e, em alguns casos, fomenta a exclusão social (CASTELLS, 2005).

A era digital trouxe consigo uma nova dinâmica social, na qual a linha entre a vida online e a offline se entrelaçam e se fundem de modo a tornar-se quase impossível dissocia-las. Nesse contexto, surge o chamado fenômeno das “pessoas hiperconectadas”, que vivem em constante interação nas redes sociais.

A partir de uma perspectiva sociocultural, a convergência digital redefine não apenas como se consome conteúdo, mas também como as pessoas tem participado do seu processo de criação e distribuição. O foco agora, no entanto, está no fluxo contínuo de informações e na capacidade dos usuários de se envolverem diretamente com o conteúdo, moldando assim, uma ideia de narrativa digital (OLIVEIRA; BALDI, 2014). Com a popularização das tecnologias móveis, os dispositivos digitais agora não apenas estão ao alcance dos usuários em qualquer lugar, mas se tornaram extensões de suas vidas, facilitando não apenas a comunicação e o acesso à informação, mas também a maneira como se interage com o mundo ao redor.

No entanto, é crucial considerar os efeitos desse uso contínuo dos dispositivos digitais sobre as subjetividades humanas. A constante conexão e imersão nesse universo digital pode moldar a própria percepção de tempo, espaço e identidade. O equilíbrio entre o mundo digital e o mundo real torna-se uma questão crucial para preservação da saúde mental, bem-estar e, sobretudo, de direitos e garantias fundamentais.

Diante dessa nova realidade, vê-se que há também a exposição de crianças nas redes sociais, por seus próprios pais e/ou tutores, tem suscitado questionamentos sobre os limites dessa prática. Nitidamente, há um conflito entre a liberdade de expressão e o poder familiar dos pais, compreendido como um poder-dever; e com o direito à imagem e à privacidade dos menores. E, segundo Anunciação (2023, p. 16),

[...] trata-se de fenômeno, cada vez mais comum na atualidade, tem nome em inglês e repercussões graves para os direitos daqueles que estão entre os mais vulneráveis na nossa sociedade: sharenting. A expressão, que consiste na junção das palavras share (compartilhar) e parenting (parentalidade), define o hábito de compartilhar, na internet, vídeos e fotos do dia a dia dos filhos.

Muitas vezes, o anseio dos pais em compartilhar, na rede mundial de computadores, fotos, vídeos e as rotinas dos filhos menores, se associa com a ideia de eternizar os momentos numa espécie de álbum digital armazenado em sistema de nuvem e fica disponível a qualquer tempo, com fácil e ilimitado acesso. Já outros pais, não se limitam a expor os filhos e acabam investindo para que eles se tornem verdadeiras “celebridades” nesse novo cenário de influenciadores digitais, almejando ganhos financeiros.

Desta feita, vê-se que a internet criou uma maneira nova de guardar fotos, textos, notícias e informações, substituindo-se cadernos e diários, por memórias digitais, sempre disponíveis para comentários, curtidas e críticas (BRANCO, 2017).

Mesmo que a autoridade e o controle dos pais sobre o destino dos filhos tenham diminuído nos últimos anos, hoje em dia ainda se percebe sua habilidade de interferir e cobrar dos filhos para tomarem decisões que, frequentemente, só satisfazem os desejos desses pais (MONAQUEZI; SARTORI, 2021).

Não obstante isto, a superexposição de crianças e adolescentes na internet é uma prática que pode trazer vários riscos e danos para o seu desenvolvimento físico, mental e social. Algumas das consequências negativas como aumento da vulnerabilidade a crimes como pedofilia, cyberbullying, roubo de identidade, chantagem e extorsão; alteração da autoimagem e autoestima; depressão, ansiedade, isolamento; além de dificuldades na interação social.

Diante disso, Monaquezi e Sartori (2021, p. 219) explanam que,

Por conta de tais exageros, surge uma geração que é cobrada por sucesso desde a mais tenra idade, expostos a opiniões, palpites e muitas vezes comentários maldosos, feitos com o simples objetivo de incomodar os pais, mas cujas consequências acabam por respingar na formação do psiquismo de tais crianças, podendo causar danos por toda a vida.

Para além da superexposição, há de se considerar o fato de que tudo que é postado na internet fica fadado à eternidade, já que o direito ao esquecimento tem sido alvo de denegação na jurisprudência brasileira (WAGNER, 2022).

Segundo o que preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente, nenhuma criança ou adolescente pode ser objeto de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais e, além disso, sempre deve-se considerar a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Os pais, ao exporem toda a vida e intimidade dos filhos menores, acabam por suprimir o protagonismo do desenvolvimento dos filhos, na medida que suas memórias são criadas e manipuladas pela vontade dos genitores, como já dito, em busca de mostrar para a sociedade uma perfeição inexistente no plano da vida real. Assim confirma Pickler (2021, p. 42), ao indicar que,

[...] ao realizar o sharenting, os pais estão praticando a extimidade de forma compulsória, retirando o protagonismo da criança no desenvolver de sua identidade e criando uma história contada com os olhos de genitores. Este é um momento onde a balança imaginária entre o melhor interesse da criança, sua dignidade e privacidade costuma pesar menos que o poder parental e suas escolhas.

Além disso, há de se considerar que todo esse cenário de exposição teria ainda que ser objeto de estudo sob a ótica do trabalho infantil, que, ainda que seja realizado na internet, é uma forma de exploração e violação dos direitos das crianças e adolescentes, por tratar-se de atividade laboral, remunerada ou não, por meio de plataformas digitais.

Por fim, a questão da “hiperconexão” e do sharenting representam desafios complexos para o direito contemporâneo brasileiro. É necessário um esforço conjunto entre legisladores, educadores, pais e demais membros da sociedade civil para criar um ambiente virtual seguro e que não transcenda limites éticos, respeitando os direitos fundamentais, especialmente no que diz respeito à proteção das crianças e adolescentes. Logo, a conscientização sobre os perigos da exposição nas redes sociais e a implementação de políticas de proteção são passos essenciais para garantir este ambiente digital saudável e seguro para as gerações futuras.

 

Notas e referências

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2017.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso: 20 dez. 2022.

CASTELLS, M.; CARDOSO, G. A sociedade em rede: do conhecimento à acção política. Conferência. Belém (Por): Imprensa Nacional, 2005.

GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Manual de direito civil: volume único. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.

HALEY, Keltie. Sharenting and the (Potential) Right to Be Forgotten. Indiana Law Journal, Indiana, v. 95, n. 3, p. 1005-1020, maio 2020. Disponível em: <https://www.repository.law.indiana.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=11383&context=ilj>. Acesso em: 09 fev. 2024.

MONAQUEZI, Ricardo Manes; SARTORI, Cássia Maria Tasca Duarte. Exposição exagerada de crianças em redes sociais: possíveis causas para excessos cometidos pelos pais. CADERNOS DE PSICOLOGIA, Juiz de Fora, v. 3, n. 5, p. 218-233. Disponível: <https://seer.uniacademia.edu.br/ index.php/ cadernospsicologia/ article/ view/3145/2145>. Acesso em 07 fev. 2024.

OLIVEIRA, L.; BALDI, V. A insustentável leveza da web: Retóricas, dissonâncias e práticas na sociedade em rede. Salvador: Edufba, 2014. Acesso em: 10 mai. 2024.

PICKLER, Carolina de Moraes. Sharenting e a violação de direitos fundamentais da criança e do adolescente: entre a liberdade de expressão e o direito à privacidade. Orientadora: Luciana Faisca Nahas. 2021. 67 f. TCC (Graduação) – Curso de Graduação em Direito, Universidade do Sul de Santa Catarina, Florianópolis, 2021. Disponível em: https://repositorio.animaeducacao.com.br/bitstream/ANIMA/19623/1/TCC%20CAROLINA %20DE%20MORAES%20PICKLER.pdf. Acesso em: dia, mês e ano. Acesso em 6 abr. 2024.

WAGNER, Bianca Louise. O fenômeno do shareting em face à denegação do direito ao esquecimento pela jurisprudência brasileira. Trabalho Conclusão do Curso. Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/233083/TCC%20Bianca%20Louise%20Wagner%20-%20Reposito%cc%81rio.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 06 fev. 2024.

[i] Pesquisa de IC realizada com apoio do Edital 16/2023 PAPq/UEMG.

 

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