Pequeno estilhaço de experiência

14/03/2015

Por Augusto Jobim do Amaral - 14/03/2015

 

Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra as peças do patrimônio humano, tivemos de empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do “atual”.

Walter Benjamin, “Experiência e Pobreza

 

Algo que diga respeito àquilo que se chamou sociedade de consumo ou mesmo à sociedade de espetáculo necessita frisar fundamentalmente aquilo que possa dar sentido a estas afirmações cotidianas. Para além do simplismo em dizer que isto tudo se resume à voracidade com que nos deparamos com as mercadorias (consumismo), importante pinçar nestas práticas exatamente a crença das pessoas em se valorarem pelo que elas podem consumir, noutros termos corriqueiros, mensurar o sentido da vida, por assim dizer, pelo que podem adquirir. O valor de cada um e dos demais, assim, passa a ser circunscrito por esta crença no consumo.

Walter Benjamin, num curto, porém lapidar texto de 1933, chamado “Experiência e Pobreza”, vislumbra uma nova forma de miséria derivada do monstruoso desenvolvimento da técnica. Este profeta de nossa época aduzia que, ao contrário da riqueza de idéias que o XX pôde nos oferecer, é a nova barbárie da pobreza de experiências que toma assento privilegiado. Nossa experiência foi sorrateiramente subtraída pela hipocrisia vigente e hoje em dia é prova de honradez confessar nossa pobreza. Somos de fato aquele contemporâneo nu, que o autor descreveu, deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas da época. Não mais desejamos a procura por alguma experiência, aspiramos, sim, livrarmo-nos dela. Sermos tocado pela realidade é um insuportável trauma radical que uma vivência pura e decente não pode tolerar. Uma existência transparente que basta a si mesma é a nossa condição socialmente adequada a uma cultura do vidro que vivenciamos. Escreve Benjamim, desde Scheerbart, que nada melhor, para modelar indivíduos a sua imagem que, em nossa época, a presença do vidro: material tão duro e liso que nada a ele se fixa, despe qualquer coisa de sua aura, de todo o mistério.

Estamos às voltas com isto. Dar alguma contribuição pontual para tal reflexão passa por vasculhar mais detidamente aspectos importantes quando do trato com a estrutura social, e seus movimentos hoje investidos pelo mercado. Agonicamente uma velocidade irreversível nos atravessa as entranhas, e os fatos da vida passam a não mais serem vividos, acontecem meramente sem qualquer traço na experiência – tal quais os combatentes silenciosos dos campos de batalha que voltavam mais pobres em experiências comunicáveis, pois não traziam nada transmissível de boca em boca, tamanha a radicalidade das experiências desmoralizadas que viveram.

A perda da experiência melancolicamente não cessa de dar as cartas numa existência depressiva. A propósito, Lacan dava um nome a uma opção conformista que negocia permanentemente com as representações coesas da realidade, e que dispersa, a qualquer preço na estabilidade da representação, a experiência do encontro: chamava canalhice. Mas isto é abertura para outro momento...


O texto traz a profunda provocação já desenvolvida alhures em AMARAL, Augusto Jobim do. “O Zahir de Borges e a Fantasia Ideológica do Mercado: um Estudo de Antropologia Dogmática”. In: Direitos Fundamentais, Economia e Estado: reflexões em tempo de crise. MARCELINO Jr., Julio Cesar et. al. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, pp. 37-85.


Sem título-23Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (POR); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS; Pesquisador-convidado do Ius Gentium Conimbrigae (Centro de Direitos Humanos) da Universidade de Coimbra e Professor da PUCRS.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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