OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA E A RECUSA DO MÉDICO PARA A PRESCRIÇÃO DE CLOROQUINA OU HIDROXICLOROQUINA EM ASSOCIAÇÃO COM AZITROMICINA NO TRATAMENTO DA COVID-19  

17/06/2020

Coluna Direito Civil em Pauta / Coordenadores Daniel Andrade, David Hosni, Henry Colombi e Lucas Oliveira

O cenário pandêmico da COVID-19, cujo agente etiológico é o novo Coronavírus, mais propriamente chamado de SARS-CoV-2, desafia a comunidade científica ao encontro de terapias específicas, seguras e eficazes.

Inicialmente, o Ministério da Saúde (MS),[1] no Brasil, em nota técnica, atualizou informações sobre o uso da cloroquina como terapia adjuvante no tratamento de formas graves do COVID-19. Para tanto, naquela oportunidade, considerou a inexistência de terapias farmacológicas e imunobiológicos específicos para COVID-19, o seu baixo custo, o acesso e forma de administração fáceis, a capacidade nacional de produção pelos laboratórios públicos brasileiros em larga escala, além da capacidade de abastecimento.

Significa que tais medicamentos não se destinam ou foram testados, originária e satisfatoriamente, para o tratamento específico da COVID-19. O MS destaca que a cloroquina e o seu análogo hidroxicloroquina são fármacos indicados para o tratamento de artrite reumatoide e artrite reumatoide juvenil (inflamação crônica das articulações), lúpus eritematoso sistêmico e discoide, condições dermatológicas provocadas ou agravadas pela luz solar e malária.

Por outro lado, são de conhecimento geral que os estudos realizados com esses medicamentos têm sido polêmicos em razão dos resultados pouco animadores em relação à eficácia e por causa de outras questões de fragilidade metodológica de algumas investigações, o que compromete as evidências científicas que delas decorrem. Esse mesmo documento registra que o MS disponibilizará o uso, em casos confirmados e a critério médico, no tratamento de formas graves, em pacientes hospitalizados, sem que outras medidas de suporte sejam preteridas em seu favor. Fica evidente, portanto, que a prescrição se submete ao critério médico.

O Conselho Federal de Medicina (CFM),[2] na oportunidade do parecer firmado no Processo-consulta CFM no 8/2020,  após considerar que não há até então estudos clínicos de boa qualidade que comprovem a eficácia em pacientes com COVID-19, decidiu considerar o uso em pacientes com sintomas leves, com sintomas importantes ou uso compassivo em pacientes críticos, mantendo a sujeição da prescrição ao critério do médico, em decisão compartilhada com o paciente (na maior medida possível), que deve ser esclarecido da circunstância da inexistência de trabalhos que comprovem o benefício do uso da droga para a doença e dos efeitos colaterais sabidos. Assim, é de relevo o fato de o parecer destacar que o tratamento do paciente portador da COVID-19 deve se basear na autonomia do médico e na valorização da relação médico-paciente.

Recentemente, o MS,[3] em outra nota técnica, ampliou as orientações para manuseio medicamentoso de pacientes com diagnóstico da COVID-19. A novidade é a diretriz de manejo precoce. Mesmo sem evidências científicas robustas que possibilitem a indicação de terapia farmacológica específica para a COVID-19, o MS reconheceu a necessidade de orientação do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no âmbito do Sistema Único de Saúde pelos profissionais médicos. Isso torna mais polêmica a possibilidade de objeção de consciência do médico e, portanto, de recusa da prescrição de cloroquina e da hidroxicloroquina para tal desiderato. De toda sorte, a nota reforça que o uso das medicações está condicionado à avaliação médica, com realização de anamnese, exame físico e exames complementares; e que o tratamento do paciente portador de COVID-19 deve ser baseado na autonomia do médico e na valorização da relação com o paciente.

Afinal, o médico pode apresentar objeção de consciência e recusar-se a prescrever a medicação em comento para o tratamento da COVID-19?

A resposta a essa indagação, que se busca no presente ensaio, é oriunda da revisão e retomada de reflexão teórica já iniciada,[4] que, nesse mister, pode ser adequada, no contexto do Grupo de Apoio Jurídico à Gestão de Crise Pandêmica da COVID-19 (PPGD-UFOP), ao debate acerca da objeção lícita de consciência do médico, para identificar os parâmetros de licitude da recusa de prescrição de cloroquina ou hidroxicloroquina em associação com azitromicina para a COVID-19.

O Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina (CFM) parece trazer elementos normativos deontológicos que reconhecem espaços de liberdade mais amplos. Afinal, o CFM demarca a prerrogativa de o médico não realizar procedimentos contrários à sua consciência. O Código de Ética Médica[5] privilegia a autonomia do profissional no exercício da medicina, dando-lhe, como regra, o direito de atuar conforme sua consciência. A atividade médica, por sua vez, não pode, segundo a normativa, assumir viés comercial.

No Capítulo II, o Código de Ética reitera as prerrogativas de liberdade e autonomia do médico, de não sofrer discriminação em virtude de suas concepções pessoais de vida boa, bem como, novamente, o direito de não exercer a atividade de forma contrária à sua consciência, mesmo que a lei permita o procedimento. Logo, é direito do médico exercer a medicina de modo a recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.

Fato é que, mesmo tendo natureza deontológica, tais normas orientam a prática médica de modo determinante, haja vista que o descumprimento de normas éticas de conduta pode revelar posturas negligentes ou imprudentes, além de atos ilícitos em decorrência da inobservância de deveres jurídicos de cuidado, lealdade e colaboração. Assim, a deontologia médica ganha matizes jurídicas tanto pela comunicação multidisciplinar e pela transversalidade das quais o Direito é participante, quanto pela eventual lacuna no regime jurídico (por vezes preenchidas por via da colaboração de tais normativas).

As controvérsias não se exaurem nas normas do Código de Ética do Conselho competente para a fiscalização do exercício da medicina. Para a finalidade presente, vale confrontar normas deontológicas com as ressalvas das próprias diretrizes do MS.

Para a análise da objeção de consciência exercida para a negativa de terapêutica com cloroquina ou hidroxicloroquina em associação com azitromicina no tratamento da COVID-19, destaca-se que a própria nota técnica do MS[6] admite filtros para a prescrição desses medicamentos. Para firmar sua convicção em critérios não discriminatórios e de forma tecnicamente embasada, o médico deve observar, além das evidências científicas existentes e as peculiaridades do interesse de cada paciente, que há contraindicação absoluta ao uso da hidroxicloroquina nos casos de gravidez, retinopatia/maculopatia secundária ao uso do fármaco já diagnosticada, hipersensibilidade ao fármaco e miastenia grave. Há, do mesmo modo, orientação de não coadministrar hidroxicloroquina com amiodarona e flecainida. No caso de crianças, deve ser privilegiado o uso de hidroxicloroquina, diante do risco de toxicidade da cloroquina. Cuidados adicionais devem ser tomados com relação a portadores de doenças cardíacas, hepáticas ou renais, hematoporfiria e doenças mentais.

O estado da técnica traz, então, a possibilidade de a liberdade de escolha à prescrição a tais tratamentos ter potencial para ser exercida de modo igualitário. As regras de segurança podem revestir-se do condão de representação de regras mínimas para a realização do manuseio da medicação. Vale dizer, a incorporação desses medicamentos e a sua disponibilização ao paciente, ainda que questionáveis em termos de qualidade das evidências que lastreiam a posição do MS rumo à adoção da política pública, devem ser lidas como estratégias de busca de facilitação de projetos plurais de vida.

Fato é que, independentemente disso, os profissionais de saúde envolvidos trazem consigo concepções de ordem técnica, bem como convicções de adequada aplicação das medicações tratadas, eis que lhes cabem fazer juízo de razoabilidade entre beneficência e maleficência, ainda que conduzido pela autonomia privada do paciente.

Logo, parece viável afirmar que a objeção lícita de consciência e, por conseguinte, a recusa lícita de prescrição de cloroquina ou hidroxicloroquina em associação com azitromicina no tratamento da COVID-19, acontecem desde que o médico tenha em mente que os pacientes possuem concepções diversas de vida boa; que a indicação de tratamentos deve ser feita em atenção a diversos elementos de subjetividade; que tais medicações possuem um conjunto mínimo de elementos subjetivos para a sua análise de custo-efetividade; que cada paciente deve ser apresentado aos devidos esclarecimentos para protagonizar a abordagem sobre sua saúde e, portanto, para exercer sua autonomia rumo à autodeterminação terapêutica, mesmo que sob os cuidados de outro médico.

Não se trata, portanto, da prevalência das concepções de vida boa dos médicos em detrimento das concepções de vida boa dos pacientes, mas sim do exercício efetivo de objeção lícita de consciência, que deve se fundamentar em aspectos científicos do estado da técnica. A objeção de consciência pode ser licitamente exercida quando, a exemplo da maioria dos procedimentos, o tratamento se revelar, conforme convicção particular, desaconselhada em razão de elementos técnicos, aferidos nos moldes de sua análise subjetiva, livre de vieses discriminatórios.

Certamente, o paciente pode buscar a assistência de outros profissionais, se for o caso. Devem ser propiciados meios de encaminhamento e de assistência àqueles que não concordam com a recusa de prescrição da medicação em questão.

 

Notas e Referências

[1] BRASIL. Ministério da Saúde. Nota Informativa n. 6/2020-DAF/SCTIE/MS. Atualiza informações sobre o Uso da Cloroquina como terapia adjuvante no tratamento de formas graves do COVID-19. Brasília: Ministério da saúde, 31 mar. 2020. Disponível em: <https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/01/MS---0014223901---Nota-Informativa-n---6-2020-DAF-SCTIE-MS.pdf>. Acesso em: 08 jun. 2020.

[2] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Processo-consulta CFM n. 8/2020 – Parecer CFM no 4/2020. A Tratamento de pacientes portadores de COVID-19 com cloroquina e hidroxicloroquina. Rel. Cons. Mauro Luiz de Britto Ribeiro. Brasília: 16 abr. 2020. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2020/4>. Acesso em: 10 jun. 2020.

[3] BRASIL. Ministério da Saúde. Nota Informativa n. 9/2020- -SE/GAB/SE/MS. Orientações para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da COVID-19. Brasília: Ministério da saúde, 20 maio 2020. Disponível em: <https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/May/21/Nota-informativa---Orienta----es-para-manuseio-medicamentoso-precoce-de-pacientes-com-diagn--stico-da-COVID-19.pdf>. Acesso em: 08 jun. 2020.  

[4] NOGUEIRA, Roberto Henrique Pôrto; GODOI, Nayder Rommel de Araújo. Objeção de consciência e a recusa do médico para a realização do tratamento de reprodução humana assistida. Revista de biodireito e direito dos animais, v. 5, p. 56-72, 2019.

[5] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 1 de novembro 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Conselho Federal de Medicina, Brasília: 2018. Diário Oficial da União: 01 no. 2018. Seção I, p. 179. Disponível em: <https://www.anamt.org.br/portal/wp-content/uploads/2018/11/resolucao_cfm_n_22172018.pdf>. Acesso em: 9 jun. 2020.

[6] BRASIL. Ministério da Saúde. Nota Informativa n. 9/2020- -SE/GAB/SE/MS. Orientações para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da COVID-19. Brasília: Ministério da saúde, 20 maio 2020. Disponível em: <https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/May/21/Nota-informativa---Orienta----es-para-manuseio-medicamentoso-precoce-de-pacientes-com-diagn--stico-da-COVID-19.pdf>. Acesso em: 08 jun. 2020.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Coronavírus - COVID-19 // Foto de: Senado Federal // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agenciasenado/49623710098

Licença de uso: https://pixabay.com/en/service/terms/#usage

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura