O PROCESSO ESTRUTURAL E A DESVINCULAÇÃO DO DETRAN DA POLÍCIA CIVIL DE MINAS GERAIS À LUZ DA ADI N. 6773

21/04/2021

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron, Gina Muniz e Eduardo Januário 

 

No dia 23 de março de 2021, o Procurador-Geral da República interpôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6773 com o escopo de invalidar normas que atribuíram à Polícia Civil do Estado de Minas Gerais o exercício de atividades de trânsito.

Foi objeto de questionamento o artigo 139, inciso III da Constituição do Estado de Minas Gerais que estipulou caber à referida instituição o “registro e licenciamento de veículo automotor e habilitação de condutor”. E ainda, o artigo 37 da Lei Complementar Estadual nº 129/13, Lei Orgânica da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais, que estruturou o DETRAN no âmbito desta última.

No que tange aos fundamentos jurídicos, foi arguido que o artigo 144, §4º da CF/88 preceitua incumbirem à polícia civil as "funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais”, não deixando qualquer margem para desvio de sua atividade finalística.

Não obstante, também foi levantado que o artigo 7º do Código de Trânsito Brasileiro expressamente excluiu a Polícia Civil dos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Trânsito (SNT) e, por isso, o Estado de Minas Gerais teria usurpado a competência privativa da União ao legislar sobre trânsito (artigo 22, XI da CF/88)[1].

Ressalte-se, em uma perspectiva processual, que a referida ação pode ser considerada um processo estrutural (structural injunctions), que pretende promover profunda reestruturação na organização da Polícia Judiciária e do Departamento de Trânsito.

Sobre o tema, Edilson Santana Filho esclarece que há um programa constitucional traçado pelo ordenamento jurídico, um quadro constitucional do qual o gestor não pode fugir e fica a ele vinculado, devendo dar efetividade ao que foi definido pelo constituinte. Assim, o processo estrutural

envolve a implementação de um ‘estado ideal’ de coisas, substituindo o ‘estado de desconformidade’ que caracteriza o problema (problema estrutural). (...). A decisão estrutural adotada visará, portanto, a realização de uma ‘reforma estrutural’, ou seja, reorganização ou reconstrução (de certa organização ou instituição). Assim, é possível, dentro desta perspectiva estrutural, determinar reformas amplas em estruturas institucionais burocráticas[2].

O paradigmático “Brown x Board of Education of Topeka” (1954) é apontado como o percursor do processo estrutural – e uma grande vitória contra o racismo. A Suprema Corte norte-americana entendeu ser inconstitucional a admissão de estudantes em escolas públicas com base num sistema de segregação racial, dando início a uma ampla mudança no sistema público de educação naquele país.

Para Francisco de Barros e Silva Neto, a força simbólica do caso “é tão significativa que suas características foram utilizadas para descrever um novo modelo de processo[3].

O tema não é novo no âmbito do Supremo Tribunal Federal, podendo ser considerados processos estruturais, dentre outros, a Ação Popular n. 3.388/PR (Raposa Serra do Sol) e o Mandado de Injunção n. 708/DF (direito de greve pelos servidores público civis).

Edilson Santana Gonçalves Filho aponta para duas fases do processo estrutural: “a primeira se volta para a constatação e a certificação do estado de desconformidade, fixando-se o novo estado de coisas (...) A segunda etapa se dirige à implementação do novo estado de coisas (...) que foi fixada na decisão[4].

Partindo deste critério bifásico, a ADI 6773 veicula pedido de constatação e certificação típicas da primeira fase, consistente no reconhecimento da impossibilidade do exercício de atividade de trânsito pela polícia judiciária. O que, em razão das características do processo estrutural, não impede que o STF avance para a segunda fase, estipulando também as medidas de implementação.

O afastamento da Polícia Civil do exercício de atividades de trânsito exigirá do Estado a adoção de um modelo administrativo completamente diverso, implicando em reorganização de receita e patrimônio, estrutura e quadro de pessoal, inclusive porque “há notório enfraquecimento da capacidade institucional de investigação da polícia com o destacamento de policiais para exercerem atividades como vistorias e licenciamento veiculares”[5].

O MPF fora acionado para o ajuizamento da ADI, em razão de que a legitimidade para o controle direto pela Defensoria Pública no STF ainda reclama alteração constitucional nesse sentido, a fim de que se reconheça seu papel em temas sensíveis aos vulnerabilizados[6].

Todos os demais DETRANs do país são desvinculados às Polícia Civil. São, na maioria, vinculados à Secretarias de Segurança Pública[7], com apenas uma única exceção, que é no Estado de Santa Catarina, em que configura órgão superior da Administração Direta[8].

Já em termos práticos, é possível – ou melhor, provável – que tais reformas estruturantes ocorram antes da apreciação do mérito da ADI (não houve pedido cautelar), partindo do próprio Poder Executivo e Legislativo Estadual.

É que, após a divulgação da interposição da ação[9], o Governo de Minas Gerais comunicou que já estava preparando um projeto para efetivar a desvinculação por meio do Plano Diretor de Modernização da Polícia Civil de Minas Gerais[10].

Em todo caso, certo é que a ADI 6773 fornece relevantes subsídios jurídicos a serem agregados ao debate político que será travado na Assembleia Legislativa, que deve promover a descentralização administrativa das atividades de trânsito em prol da especialização e eficiência do serviço público.

 

Notas e Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Diário Oficial da União, Brasília, DF.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6773. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=6138863

DAYRELL, Gustavo. A Inconstitucionalidade Do Exercício De Atividades De Trânsito Pela Polícia Civil De Minas Gerais e a Desvinculação Do Detran. In Empoório do Direito. Disponível em <https://emporiododireito.com.br/leitura/a-inconstitucionalidade-do-exercicio-de-atividades-de-transito-pela-policia-civil-de-minas-gerais-e-a-desvinculacao-do-detran>. Acesso em 10/04/2021

DIDIER JR, Fredie, ZANETI JR, Hermes e OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Notas sobre as decisões estruturantes. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marcos Félix; (Orgs.). Processos Estruturais. Salvador: Editora JusPodivm.

GONÇALVES FILHO, Edilson Santana. Defensoria Pública e a tutela coletiva de direitos – teoria e prática. 2a. ed. Salvador: JusPodivm, 2020.  

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; ROCHA, Jorge Bheron.  Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 22 | n. 43 | Jan./Jun. 2020

MINAS GERAIS (Estado). Constituição (1989). Constituição do Estado de Minas Gerais. Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG.

SANTA CATARINA (Estado). Constituição (1989). Constituição do Estado de Santa Catarina. Diário Oficial do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC.

 

[1]                 Para maiores considerações remete-se ao seguinte texto: DAYRELL, Gustavo; A inconstitucionalidade do exercício de atividades de trânsito pela Polícia Civil de Minas Gerais e a desvinculação do DETRAN. In: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-inconstitucionalidade-do-exercicio-de-atividades-de-transito-pela-policia-civil-de-minas-gerais-e-a-desvinculacao-do-detran.

[2]                 GONÇALVES FILHO, Edilson Santana. Defensoria Pública e a tutela coletiva de direitos – teoria e prática. 2a. ed. Salvador: JusPodivm, 2020. Pág: em atualização.  

[3]                 SILVA NETO, Francisco de Barros e. Breves considerações sobre os processos estruturais. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marcos Félix; (Orgs.). Processos Estruturais. Salvador: Editora Juspodivm, p. 326, 2019.

[4]                 GONÇALVES FILHO, Edilson Santana. Defensoria Pública e a tutela coletiva de direitos – teoria e prática. 2a. ed. Salvador: JusPodivm, 2020. Pág: em atualização.   

[5]             DAYRELL, Gustavo. A Inconstitucionalidade Do Exercício De Atividades De Trânsito Pela Polícia Civil De Minas Gerais e a Desvinculação Do Detran. In Empório do Direito. Disponível em <https://emporiododireito.com.br/leitura/a-inconstitucionalidade-do-exercicio-de-atividades-de-transito-pela-policia-civil-de-minas-gerais-e-a-desvinculacao-do-detran>. Acesso em 10/04/2021

[6]             MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; ROCHA, Jorge Bheron.  Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 22 | n. 43 | Jan./Jun. 2020, p. 24.

[7]                  Em 17 Estados são vinculadas à Secretarias de Segurança Pública: Acre, Alagoas, Amazonas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Roraima, Sergipe e Tocantins). São 3 as vinculadas à Secretarias de Estado das Cidades (Pernambuco, Goiás e Piauí), 2 à Secretarias de Infraestrutura (Amapá e Rondônia), 1 de Administração (Bahia) e 1 de Planejamento (São Paulo).

[8]                  Integra o Gabinete da Chefia do Executivo (GCE), e este faz parte do Gabinete do Governador do Estado, conforme artigo 5º da Lei Complementar n. 741/19. Na Constituição do Estado há previsão de cabe à Polícia Civil a “execução de serviços administrativos de trânsito” (artigo 106, III). Tal disposto é objeto da ADI n. 4472 proposta em 15.10.2010 pela Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais.

[9] https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/03/30/interna_politica,1252211/pgr-entra-com-acao-no-supremo-para-desvincular-detran-mg-da-policia-civil.shtml;

https://noticias.r7.com/minas-gerais/pgr-vai-ao-stf-para-desvincular-detran-de-minas-da-policia-civil-30032021;

https://www.otempo.com.br/politica/aras-entra-com-acao-para-tirar-o-detran-da-policia-civil-de-minas-1.2466178

[10]  https://noticias.r7.com/minas-gerais/zema-prepara-projeto-para-desvincular-detran-da-policia-civil-31032021

 

 

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