O procedimento e o Sistema de Garantia de Direitos: dissonâncias?

08/02/2015

Por José César Coimbra - 08/02/2015

Conforme a Resolução Conanda nº 113 (2006) entende-se o Sistema de Garantia de Direitos (SGD) como uma ampla articulação e integração das instâncias públicas governamentais e não governamentais em prol da garantia de direitos de crianças e adolescentes. Depreende-se daí que para a efetividade dos regimes de proteção e responsabilização é preciso que se reconheçam os limites que cercam a intervenção de cada um dos agentes envolvidos e os efeitos de cada ação sobre os demais, daí a postulação de um sistema (Ramos, 2010).

Não é por outro motivo que o rol de sugestões e recomendações oriundas do I Encontro Nacional de Experiências de Tomada de Depoimento realizado em Brasília, em 2011, ultrapassa o poder judiciário (Childhood, 2011). Dentre os diversos itens mencionados nesse Encontro, temos: “formar juízes, promotores de justiça e defensores públicos para participar, quando necessário, da coleta do depoimento especial”. Tão importante quanto o item anterior, segundo as recomendações e sugestões do Encontro, é também “formar juízes para proceder à entrevista de crianças e adolescentes vitimizados que manifestem interesse em serem ouvidas [sic] pelo próprio magistrado” (Childhood, 2011).

A despeito de todas as dificuldades imagináveis para a realização de investigação policial no contexto de violência sexual contra crianças, não se pode deixar de investir nessa forma de atuação (United Nations Office on Drugs and Crime, 2009). O argumento de que casos de violência sexual não deixam marcas materiais deveria, por si mesmo, significar que exatamente nesses casos tornam-se necessários modos aprimorados de investigação e não o contrário. Esses modos aprimorados podem ser observados em algumas unidades especializadas, tais como: Sexual Offences and Child Abuse Investigation Teams, de Vitória, Austrália, e The Sexual Assault & Child Abuse Section, de Ottawa, Canadá. De outra forma, como o sistema judicial poderá proceder efetivamente à garantia e à responsabilização necessárias em cada caso concreto?

O Brasil, em geral, possui taxas extremamente baixas de resolução de crimes, independentemente deles estarem ligados à integridade sexual das vítimas, conforme aponta o Conselho Nacional do Ministério Público (2012). Dessa forma, os argumentos de que os processos judiciais referentes à violência sexual contra crianças possuem baixa taxa de condenação deveriam ser compreendidos também segundo essa realidade.

Essa perspectiva sistêmica sobre a análise do procedimento é inescapável. Do não funcionamento da rede decorre a falta de efetividade das medidas protetivas e de responsabilização. Não por acaso, em seminário realizado no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro - MPRJ (2012), a promotora do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), Flávia Malmann, ao relatar a experiência de Porto Alegre, salientou, ainda que de modo cauteloso, maior eficácia no fluxo de atendimento de crianças supostamente vítimas de violência depois da implantação do procedimento de depoimento especial naquela cidade. Ou seja, tentou-se ali estabelecer o papel e a função de cada agente da rede de atendimento de modo a não haver repetição de procedimentos, sendo o depoimento de responsabilidade exclusiva do juiz, com o auxílio do intermediário.

A cautela a que nos referimos diz respeito à manifestação da promotora de que esse equilíbrio tem instabilidades relativas a mudanças de profissionais na rede mencionada, bem como do entendimento que cada um dos envolvidos possui de sua inserção nesse sistema. Ou seja, não se trata de algo que uma vez acordado permaneceria funcional para sempre. Esse sistema necessita de ajustes periódicos e pressupõe, por consequência, algum grau de proximidade e coordenação entre os atores envolvidos.

O procedimento e suas referências normativas

A diretriz, sem dúvida, da inserção de cada ator no SGD e, por conseguinte, no depoimento especial de crianças e adolescentes no que se refere ao sistema judicial, deveria ser a prevista na Convenção Internacional de Direitos da Criança (1989). Em seu artigo 12, podemos ler que:

Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.

Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional.

Observa-se, na citação acima, que não há uma oposição a que a criança seja ouvida diretamente. Quanto a isso, cabe ainda mencionar que no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei nº 8.069, de 1990), as referências à oitiva de criança e adolescente estão associadas, basicamente, a três circunstâncias: perda ou suspensão do poder familiar (art. 161); colocação em família substituta (art. 168) e ato infracional, com relação ao qual especificamente é mencionada a possibilidade de que a oitiva do adolescente possa ser acompanhada de opinião de profissional qualificado (art. 186).  As medidas de proteção também implicam a oitiva de criança ou adolescente, podendo haver ou não presença de adulto (art. 100).

A análise do Código de Processo de Penal - CPP (Decreto-Lei nº 3.689, de 1941) revela a importância da prova testemunhal, uma vez que ela supre a inexistência do exame de corpo de delito (art. 167), bem como a falta de exame complementar (art. 168). Ali, ainda, está definido que a testemunha assume a obrigação de falar a verdade em audiência (art. 203), derivando daí seu valor. Todavia, os menores de 14 anos não assumem esse compromisso (art. 208). Ou seja, formalmente não há o compromisso de menores de 14 anos falarem a verdade em juízo.

Existem algumas condições nas quais qualquer um poderá eximir-se da obrigação de depor, segundo o CPP. Uma delas quando a testemunha é ascendente ou descendente do acusado, “salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias” (art. 206). Considerando-se que boa parte dos episódios de violência sexual contra crianças ocorre no âmbito doméstico (Ramalho, 2012), tendo por destaque pais e padrastos (Waiselfisz, 2012), nota-se que o CPP lista algumas circunstâncias nas quais haveria argumentos para que a testemunha pudesse tentar eximir-se desse papel. Sobre a prevalência de tipos de violência entre crianças e adolescentes, observa-se que aqueles relativos à negligência/abandono e física possuem maior prevalência nos levantamentos realizados (Krug, 2002; Ramalho, 2012).

A criança e o adolescente no depoimento especial encerram em si, potencialmente, duas faces, a de vítima e a de testemunha. Ao mesmo tempo, vimos que, no que tange aos menores de 14 anos, conforme o CPP, não repousaria sobre o discurso dessas personagens o compromisso de que a verdade a ser assimilada pelo aparato judicial fosse dita. Nesse cenário, de que modo a memória seria expressa? O que seria uma memória que não tem um referente necessário, a verdade, e que, ao mesmo tempo, pode buscar um destinatário para expressar-se?

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José César Coimbra é Doutor em Memória Social – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro / UniRio e Psicólogo no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. __________________________________________________________________________________________________________________ Terceiro texto da série de cinco que serão postados até terça-feira, sempre no final do dia. Acompanhe! __________________________________________________________________________________________________________________ Imagem ilustrativo do post: Child Foto de: Jay Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jryde/8528401729 Sem alteração Licença para uso: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode

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