O Mal do Século: a prisão como forma de estigmatização do preso  

19/03/2021

Estar encarcerado, privado de sua liberdade pode trazer diversos traumas ao detento, tendo em vista como se encontra o sistema penitenciário brasileiro, pois ao mesmo tempo que o estigmatiza, acaba por trazer diversas consequências para a vida pós-cárcere.

Para melhor compreensão do que seriam estigmas, Goffman[1] menciona que tal palavra surgiu através dos gregos que conceituavam como sendo os “[...] sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava”. Em outras palavras, o autor caracteriza estigmas como uma característica depreciativa que é intitulada a alguém que se conheça ou a algum estranho interligada à identidade social de cada um.

Dessa maneira, através das denominações apresentadas por Goffman, salienta-se que a sociedade, de modo geral, é a maior excludente dos detentos, dos infratores, dos estigmatizados. Dos detentos por tentarem garantir a segurança de seus entes e amigos próximos, haja vista que houve ou haverá condenação por algum crime cometido; dos infratores, porque acreditam que a infração seja algum indício de que futuramente ocorrerá algum crime gravíssimo por parte destes; e dos estigmatizados, porque estes possuem uma característica pejorativa que é contra a opinião de quem o estigmatiza.

De modo a comprovar que o estigma dado ao preso vai muito além do momento em que está dentro da prisão, conforme definem Cifali e Azevedo[2]:

vale lembrar, ainda, que os males do encarceramento estendem-se para além da privação da liberdade do condenado. Depois de cumprir uma pena, dificilmente a pessoa poderá livrar-se dos estigmas projetados pela sociedade sobre um ex-recluso, encontrando ainda mais obstáculos para conseguir um emprego e chances de desenvolver seu potencial, para além de todos os tormentos psicológicos impostos pelo confinamento. Seus familiares também são atingidos pelos efeitos negativos da pena, vivenciando humilhações e situações vexatórias ao passarem pelas revistas dos presídios.

Ocorre que, no Brasil, por mais que superada, a teoria do labelling approach, também conhecida como teoria do etiquetamento, tem grande influência, mesmo que a sociedade leiga no assunto não conheça tal teoria, a simples discriminação auferida ao preso já interfere relativamente no seu processo de reintegração.

Conforme Sell[3], a teoria do labbeling approach surgiu na década de 1960 nos Estados Unidos e sofreu grande influência pelo fato de acreditar que a realidade humana não é feita somente de fatos, mas sim da compreensão que a sociedade tem desses fatos.

Sell[4], ainda, se questiona sobre como é um criminoso perante a sociedade e indaga quanto à questão da marginalização que sofrerá o sujeito de acordo com suas características, conforme diz:

Criminoso é aquele a quem, por sua conduta e algo mais, a sociedade conseguiu atribuir com sucesso o rótulo de criminoso. Pode ter havido a conduta contrária ao Direito penal, mas é apenas com esse "algo mais" que seu praticante se tornará efetivamente criminoso. Em geral, esse algo mais é composto por uma espécie de índice de marginalização do sujeito: quanto maior o índice de marginalização, maior a probabilidade de ele ser dito criminoso. Tal índice cresce proporcionalmente ao número de posições estigmatizadas que o sujeito acumula. Assim, se ele é negro, pobre, desempregado, homossexual, de aspecto lombrosiano e imigrante paraguaio, seu índice de marginalização será altíssimo e, qualquer deslize, fará com que seja rotulado de marginal. Em compensação, se o indivíduo é rico, turista norte-americano em férias, casado e branco, seu índice de marginalização será tendente à zero. O rótulo de vítima lhe cairá fácil, mas o de marginal só com um espetáculo investigativo sem precedentes.

Ainda, para melhor explicitar a questão da marginalização, Baratta[5] considera existentes dois tipos desta, chamados de marginalização primária e secundária. Considera-se primária aquela que a pessoa sofre no decorrer de sua vida, anteriormente ao ingresso no cárcere; a secundária, ocorrida com o ingresso no cárcere, e dependerá da sociedade como um todo diminuir a estigmatização do detento, de modo a evitar o seu retorno ao cárcere.

Por essas razões, o preso após o cumprimento de sua pena não conseguirá reintegrar-se à sociedade se esta não estiver preparada para recebê-lo, haja vista que a reinserção não depende apenas das vontades dos presos, mas sim de todos que os cercam, ou seja, a sociedade de modo geral.

No que tange à explanação acima, Valois[6] diz que “depois da pena aplicada o condenado não deveria ser considerado um objeto, um não-cidadão sem qualquer direito, mas, muito pelo contrário, deveria manter todos os direitos não atingidos pela sentença”.

Pela razão antes exposta, conta-se com as ideias de Sell[7], de que “a etiqueta penal lhes aderirá à pele, e dela jamais sairá”. Em outras palavras, a marginalização criada pela própria sociedade fará com que o ex-detento não consiga livrar-se dos tempos em que viveu encarcerado, sequer o deixará reintegrar-se à comunidade em que vive.

Ainda, Wacquant[8] explica como se delimita a prisão e de que maneira ela em si deixa entranhado ao preso o estigma de ter feito parte do sistema carcerário, conforme descreve:

máquina varredora de precariedade, a instituição carcerária não se contenta em recolher e armazenas os (sub)proletários tidos como inúteis, indesejáveis ou perigosos, e, assim, ocultar a miséria e neutralizar seus efeitos mais disruptivos: esquece-se frequentemente que ela própria contribui ativamente para estender e perenizar a insegurança e o desamparo sociais que a alimentam e lhe servem de caução. Instituição total concebida para os pobres, meio criminógeno e desculturalizante moldado pelo imperativo (e o fantasma) da segurança, a prisão não pode senão empobrecer aqueles que lhe são confiados e seus próximos, despojando-os um pouco mais dos magros recursos de que dispõem quando nela ingressam, obliterando sob a etiqueta infamante de “penitenciário” todos os atributos suscetíveis de lhes conferir uma identidade social reconhecida [...].

Portanto, para diminuir o elevado índice de marginalização, de encarceramento em massa, deverá a sociedade como maior excludente dos estigmatizados, em especial dos presos, acabar com a ideia de que apenas a prisão serve como forma de punição para algum crime cometido, pois, como diz Baratta[9], “[...] antes de querer modificar os excluídos, é preciso modificar a sociedade excludente, atingindo, assim, a raiz do mecanismo de exclusão”.

 

Notas e Referências

BARATTA, Alessandro. Ressocialização ou controle social: Uma abordagem crítica da “reintegração social” do sentenciado. [20--?]. [Alemanha; S.n]. Disponível em: http://danielafeli.dominiotemporario.com/doc/ALESSANDRO%20BARATTA%20Ressocializacao%20ou%20controle%20social.pdf. Acesso em: 10 de março de 2021.

CIFALI, Ana Claudia; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de.  Medo, descaso e violência no Brasil: como romper esse ciclo?. In: MARQUES, J.; RIGON, B. S.; SILVEIRA, LAZZARI, F. D. Cárcere em Imagem e Texto. (org). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.

GOFFMAN, Erving Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução: Mathias Lambert. 4 ed. [S.L]: LTC. 1891.

SELL, Sandro César. A etiqueta do crime: considerações sobre o "labelling approach"Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 12n. 150717 ago. 2007. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/10290>. Acesso em: 10 de março de 2021.

VALOIS, Luís Carlos. Processo de execução penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019.

WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. trad por: André Telles 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 15

[1] GOFFMAN, Erving Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução: Mathias Lambert. 4 ed. [S.L]: LTC. 1891. p. 5-7

[2] CIFALI, Ana Claudia; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de.  Medo, descaso e violência no Brasil: como romper esse ciclo?. In: MARQUES, J.; RIGON, B. S.; SILVEIRA, LAZZARI, F. D. Cárcere em Imagem e Texto. (org). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016. p. 50

[3] SELL, Sandro César. A etiqueta do crime: considerações sobre o "labelling approach"Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 12n. 150717 ago. 2007. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/10290>. Acesso em: 10 de março de 2021. Páginas não enumeradas.

[4] SELL, 2007.

[5] BARATTA, Alessandro. Ressocialização ou controle social: Uma abordagem crítica da “reintegração social” do sentenciado. [20--?]. [Alemanha; S.n]. Disponível em: http://danielafeli.dominiotemporario.com/doc/ALESSANDRO%20BARATTA%20Ressocializacao%20ou%20controle%20social.pdf. Acesso em: 10 de março de 2021. Páginas não enumeradas.

[6] VALOIS, Luís Carlos. Processo de execução penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019. p. 69

[7] SELL, 2007.

[8] WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. trad por: André Telles 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 151

[9] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos e Instituto Carioca de Criminologia, 1999. p. 186

 

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