O Game of Thrones do Processo Penal - episódio 2: o usurpador do Alto Pardal e a criação do crime de tráfico de drogas “não hediondo”

26/08/2016

Por Bianca Bez - 26/08/2016

Ao julgar a ação de Habeas Corpus n. 118.533, impetrada pela Defensoria Pública da União, o Supremo Tribunal Federal, ora chamado de Alto Septão, vulgo Alto Pardal, chefe da Fé dos Sete na série Game of Thrones, concedeu a ordem para afastar, por maioria, “a natureza hedionda do tráfico privilegiado de drogas”, vencidos os Septões - avatares dos deuses - Luiz Fux, Dias Toffoli e Marco Aurélio.

De início, faz-se necessário um esclarecimento terminológico. Privilégio contrapõe-se à circunstância qualificadora. Aquilo que os tribunais insistem em chamar de tráfico “privilegiado” trata-se, em verdade, da aplicação, na terceira fase da dosimetria da sanção penal, da causa específica de diminuição prevista no parágrafo 4o do artigo 33 da Lei de Drogas. E qual a relevância disso? Explica-se.

Uma simples causa específica de diminuição, assim como todas as demais circunstâncias de um crime, não tem o condão de modificar a natureza de um delito. A palavra circunstância deriva de circum, ou seja, tudo aquilo que está ao redor de algo, que gira em torno de, como as órbitas dos planetas ao redor do Sol.

Imaginem, portanto, que o Sol é o crime de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes e que os planetas são todas as circunstâncias ou dados acidentais que podem influir na aplicação da pena, como a quantidade e a natureza da droga apreendida.

Diz o parágrafo 4o do artigo 33 da Lei n. 11.343/2006 que, “nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”. Vejam, portanto, que aquilo que o nosso Alto Septão denomina de tráfico “privilegiado” nada mais é do que a incidência, na terceira fase dosimétrica, de uma causa específica de diminuição de pena.

Em sendo assim, a nossa Corte Suprema, à la High Sparrow, o Alto Pardal da última temporada de Game of Thrones, reputou por bem afastar a natureza equiparada aos delitos hediondos do tráfico de drogas “privilegiado”, usurpando a função do Rei Tommen Baratheon, leia-se, do nosso Poder Legislativo, ao promover um discrímen e criar uma nova espécie delitiva - em um caso, vale mencionar, que envolvia nada mais nada menos que a apreensão de 772 quilogramas de maconha!

Obviamente por razões de política criminal, visando ao esvaziamento das prisões, cujas celas estão abarrotadas de pessoas que respondem pelo cometimento do crime de tráfico de drogas, o Supremo Tribunal Federal afastou a natureza equiparada aos crimes hediondos deste delito quando presente a causa específica de diminuição do parágrafo 4o do artigo 33 da Lei n. 11.343/2006.

Todavia, muito embora o legislador tenha previsto a redução da sanção penal ao “traficante de primeira viagem”, fato é que os motivos que levaram o constituinte a qualificar o narcotráfico como um crime equiparado a hediondo subsistem em sua integralidade. Ora, os requisitos autorizadores da diminuição da pena, previstos no aludido dispositivo legal, nem de longe poderiam inverter o juízo de reprovação que incide sobre a conduta delituosa em si mesma - tráfico é tráfico, apesar de existirem “tráfico e tráfico”.

Parece-me, porém, que os fins justificam os meios - e quem poderá controlar o controlador? Quem dera houvesse uma Cersei Lennister para dar um “jeitinho” nos deuses que habitam a nossa Corte Suprema. Por ora, basta agradecermos aos Sete o fato de que a decisão proferida pelo Alto Pardal não poderá gerar efeitos erga omnes, já que não houve julgamento em caso relativo a controle concentrado de constitucionalidade.


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Bianca Bez. Bianca Bez é graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós-graduanda em Direito Público pela Damásio Educacional. Assistente de Procuradoria de Justiça Criminal no Ministério Público do Estado de Santa Catarina. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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