O FÉTIDO ODOR TOTALITÁRIO ADVINDO DA DECOMPOSIÇÃO DA DEMOCRACIA LIBERAL  

07/03/2021

Coluna Stasis

Numa de suas inúmeras lições, o filósofo e político italiano Norberto Bobbio (1909-2004) argumentava que a democracia liberal surgiu e se afirmou lenta, sistemática e arduamente a partir de quatro percepções de liberdade, consideradas como liberdades básicas a que todo indivíduo e cidadão devem ter acesso.  A primeira delas foi à conquista e afirmação das liberdades individuais que se referem ao direito de não ser perseguido e preso injustamente. Porém, caso tal condição ocorra, de ser julgado nos foros adequados e, a partir de regras penais e jurídicas suficientemente definidas na letra da lei. A segunda liberdade alcançada foi a de impressa e de expressão. Ou seja, afirmou-se o direito à livre circulação de informações e ideias por meio de jornais, revistas, folhetins, mesmo que contrárias aos interesses políticos e econômicos no exercício do poder. Os indivíduos e cidadão teriam assegurado à liberdade de expressar seus posicionamentos políticos no espaço público. A terceira liberdade alcançada foi a de reunião, o que possibilita aos indivíduos compartilharem suas ideias e intensificarem o debate em torno das questões públicas. E, por fim, a liberdade de associação, que viabilizou o surgimento dos sindicados, dos partidos políticos e demais formas de associação características das sociedades pluralistas em que a liberdade política se apresenta como condição sine qua non da democracia liberal.

O que estamos assistindo na atualidade é a decomposição destes princípios basilares da democracia liberal. Paradoxalmente, ou ironicamente o desmantelamento das liberdades básicas se dá no seio das próprias democracias liberais. Não é obra de governos de esquerda, de governos comunistas, ou socialistas. É resultado do liberalismo em sua matriz econômica. Ou seja, se por um lado o liberalismo político se caracteriza por um movimento gradual de afirmação de liberdades individuais, de direitos sociais, o liberalismo econômico se apresenta em determinados contextos avesso à ampliação de liberdades, de direitos individuais e sociais.  Porém, se o argumento acima apresentado possui em determinados aspectos validade é preciso considerar sua estrutura dicotômica e os possíveis equívocos analíticos que dele podem derivar.  Assim, noutra perspectiva, trata-se de considerar a contradição constitutiva do liberalismo, que se apresenta na promessa da burguesia de afirmação da liberdade e da igualdade em contraposição aos privilégios da nobreza aristocrática feudal e de seu controle do Estado absolutista. Ou dito de outra forma, há na gênese do liberalismo a impossibilidade de cumprir efetivamente com sua promessa na medida em que incorpora, ou mesmo acomoda variáveis aristocráticas, que se constituem em práticas oligárquicas e plutocráticas na condução dos interesses do Estado.

O liberalismo como projeto e promessa moderna de afirmação da liberdade e da igualdade apresenta-se como utopia na mesma medida da utopia de uma sociedade comunista gestada pelos socialistas utópicos e, refletida sistematicamente pelos socialistas científicos ao longo de todo o século XIX e, boa parte do século XX.  Ou seja, nestas primeiras décadas do século XXI convivemos com a ressaca advinda da derrocada das utopias.  Mas, o mal-estar, a dor de cabeça se intensifica diante da evidente e cotidiana decomposição das promessas liberais. Não que isto seja uma novidade. Os conflitos nas sociedades europeias ocidentais do final do século XIX desdobrando-se nos dramáticos eventos da Primeira Guerra Mundial, da crise econômica de 1929 e, da Segunda Guerra Mundial haviam demonstrado de forma clarividente que a decomposição da utopia liberal (democracia liberal) conduziu invariavelmente às experiências fascistas e totalitárias. Porém, naquele contexto e, ao longo do pós-guerra, a concorrência da utopia comunista permitiu suplantar do horizonte de compreensão a contradição fundamental do liberalismo, manifestada na fragilidade e, novamente na decomposição atual da democracia liberal.

Na atualidade diante da implementação das políticas neoliberais gestadas (o “laboratório” foi o Chile, durante o governo Pinochet nos países centrais do capitalismo no pós-segunda guerra e, anos 80 e 90 nos países da periferia do capitalismo, conformando a afirmação da hegemonia do capital financeiro global sobre a soberania dos povos, deparamo-nos novamente com o odor da decomposição da promessa liberal expressa na agressividade das políticas neoliberais.  Dos quatro pilares da democracia liberal apontados por Norberto Bobbio no inicio deste texto nenhum sobrevive de forma suficiente. Mas, o que se constata de forma sinistra cotidianamente é a multiplicação vertiginosa de práticas políticas características das experiências fascistas e totalitárias da primeira metade do século XX. Entre elas, a convivência com regimes políticos indiferentes ao reconhecimento da verdade dos fatos, dos acontecimentos, ao impacto de seus posicionamentos e decisões na esfera pública. Governos que sobrevivem a partir da promoção cotidiana da desinformação, de fake news, da mentira e, que são mantidos no poder de forma imoral - a despeito de atos genocidas, de lesa pátria, de desprezo pelos direitos humanos e pela preservação do interesse público e comum - por grupos econômicos locais e globais que se locupletam com o desmonte dos serviços públicos, com a entrega do patrimônio público, entre outras práticas.  Literalmente são governos ilegítimos mantidos legalmente no poder em função da obediência que prestam a interesses de rentistas e, especuladores a serviço da financeirização global.

O estágio de decomposição da democracia liberal e o insuportável fedor do fascismo e de suas práticas governamentais totalitárias se expressa no esfacelamento das instituições burguesas constitutivas do estado moderno. A ação dos poderes executivo, legislativo e judiciário se manifesta descomprometida de conferir a ela legitimidade. A legalidade é torcida e retorcida cotidianamente para viabilizar a violência dos interesses privados que se circunscrevem na representatividade parlamentar, na decisão judicial e na implementação de portarias, medidas provisórias, decretos por parte do poder executivo.  As experiências totalitárias do século XX e as que estamos presenciando na atualidade implicam no esvaziamento da política, do debate público, do exercício da cidadania. Promovem o insulamento dos indivíduos, massificam e manipulam a desinformação conspurcando a opinião pública em agressões discursivas em redes sociais.  Nas portas do inferno totalitário em curso promovem-se a misoginia, o racismo, o feminicídio, a barbárie.

Repita-se! As experiências fascistas e totalitárias derivam da decomposição das promessas do liberalismo e, nestes contextos é recorrente a estratégia de eleição de supostos inimigos, de conspirações dos comunistas, dos socialistas, dos fundamentalistas religiosos, dos professores de história, de sociologia, de antropologia. Em alguns momentos as práticas totalitárias sugerem que o movimento conspiratório vem do interior do próprio sistema, do poder judiciário, dos governadores, dos prefeitos, das máscaras, ou de qualquer outra variável, cadáver ou entidade que possa ser utilizada para alimentar robôs e algoritmos produtores e disseminadores de fake news.

Diante deste pavoroso cenário de nuances totalitários, de intensidade do vírus, de voracidade do capital financeiro global, da destruição desenfreada do meio ambiente e da crescente substituição de humanos por máquinas é preciso (re)construir a política, o debate político, a ampliação do espaço público e, preservação dos bens comuns necessários a manutenção da vida em sua totalidade. É urgente retomar a democracia, afinal esta forma de governo não pertence ao liberalismo, ou a qualquer outro “ismo”, mas única exclusivamente aos seres humanos que compreendem que sem a preservação e ampliação do espaço e do debate público não há condições suficientes à vida e à condição humana.  Desprovidos do espaço para o intenso debate público estamos à mercê da sanha e dos arroubos totalitários cujo resultado final é invariavelmente a tragédia.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Justice sends mixed messages // Foto de: Dan4th Nicholas // Sem alterações

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