O adolescente e o dispositivo da socioeducação: uma análise dos significantes  

21/09/2021

  Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

O presente artigo objetiva descrever e analisar a adolescência e o ato infracional, de modo a problematizar o dispositivo da socioeducação e seu impacto biopolítico em adolescentes que comprem medida socioeducativas. A proposta tem por objetivo elencar e problematizar as técnicas de saber e poder voltadas aos adolescentes autores de ato infracional no Brasil. Portanto, partindo da premissa foucaultiana de que dispositivos são estratégias de assujeitamento e normalização das relações de poder, pensar as formas pelas quais repousam as dinâmicas sociais condicionantes para a constituição do discurso que compõem os significantes que sustentam a construção de esteriotipia útil, faz-se necessário. Os discursos sobre socioeducação comparecem, então, como um dispositivo que passa a ser instrumentalizado como práticas de subjetivação na constituição dos sujeitos em suas relações de poder. Neste caso, o sujeito do adolescente, jovem e infrator.

Antes de adentrar nos significantes que compõem a visão do adolescente que adentra as estruturas da instituição socioeducativa em regime de internação, faz-se necessário trabalhar com o conceito dentro do ambiente das medidas socioeducativas em regime de internação permanente.

É evidente que o significado da socioeducação reflete uma visão homogênea se aplicada aos adolescentes que praticaram um ato infracional e, em específico, aos adolescentes que se encontram submetidos a um regime normativo diferenciado de proteção integral e de atuação conjunta com vários eixos de estímulo aos possíveis processos de ressocialização implementados que contribuiriam para a fomentação de uma nova forma de percepção da realidade a qual se encontravam inseridos em seu contexto familiar e social, sendo pois, a socioeducação, também, um veículo de atualização do adolescente pela criação de novos modelos de subjetivação, novas formas de condução da existência desses corpos no ambiente em que seriam inseridos após cumprir a medida socioeducativa em regime de internação.

Vemos que o ato infracional tem sido representado como um fluxo decodificado que escapou ao controle do Estado e deve ser extirpado a fim de que seja possibilitado o bom convívio em sociedade, cuja normalização do sujeito torna-se viável apenas se a sociedade axiomatizar todos os fluxos decodificantes, de modo que a ameaça encontrada à concretização do estado neoliberal se coloque a serviço do mecanismo de gestão do Estado, em forma da reorganização de todos os processos de subjetivação, que irão produzir desejos, modos de se perceber e de viver que interessam aos empreendedores morais para o fortalecimento do mercado interno.

Estes corpos desejantes serão submetidos a um modelo de trabalho capaz de promover a mudança da realidade, de forma a serem gerenciados no tempo e espaço em contraposição ao modelo primitivo de trabalho.  O dispositivo da socioeducação representa pois, um modo de subjetivação orientado por práticas operadoras de processualidade e utilidade ao sistema, impondo aos adolescentes em conflito com a lei, a condição ambivalente da estrutura da sacratio e da soberania, a partir da perspectiva política.

Nessa relação, os eixos temáticos disponibilizados pela política do Sinase, representam um ponto importante de observância para o discurso analisado, bem como retratam um momento histórico de construção de uma política voltada para a infância e juventude, cuja família é fundamental para a propulsão da ressocialização no adolescente em conflito com a lei. Aqui o retorno à importância da família na manutenção da ordem da sociedade é inegável, e, principalmente, extrai-se dos discursos a latência da família na manutenção do processo de aprendizagem de novos comportamentos vivenciados no espaço do regime de internação e do próprio adolescente como principal responsável no seu processo de ressocialização. É mais processo de subjetivação, do que progresso, ou processo para além do progresso observado no relatório interno circunstanciado.

Por outro lado, a aparente abertura que a medida socioeducativa aplicada em regime de internação tende a oferecer para o desenvolvimento dos adolescentes, enuncia, a potencialização do processo de socioeducação. É como se, dependesse exclusivamente do adolescente o florescimento de uma nova vida destituída da prática de ato infracional após o ambiente de internação, e não, obrigatoriamente, caberia ao Estado fornecer elementos capazes de amenizar o risco que a ausência de condições mínimas para a não replicação do ato infracional fora do ambiente de internação. É o adolescente quem tem que dar continuidade ao processo de escolarização, e não o Estado que deve oferecer condições para que essa adolescente possa desenvolver essa habilidade. É o adolescente que tem que pensar em si e na família, e não o Estado que tem que desenvolver as condicionantes necessárias para que o adolescente possa ter a possibilidade de transformar o seu núcleo familiar, a partir de uma tecnologia disciplinar construída para um padrão de indivíduo e direcionada a um corpo individual no intuito de aumentar-lhes a força útil pelo treinamento, exercício e trabalho desempenhado pelos aplicadores de medidas socioeducativas.

Todas essas questões são encontradas nos discursivos como o simbólico da socioeducação. Entretanto, há que se ressaltar um outro viés também levantado como simbólico da socioeducação no espaço do ambiente de internação, que parece contraditar com os significantes outrora analisados. Neste aspecto há um redirecionamento do discurso da socioeducação como “transformar”, “oportunizar”, “motivação” e “remodelar” de modo a colocar o dispositivo não como um ato teleológico do Estado para a boa convivência da sociedade civil, mas como um meio pelo qual podem ser desenvolvidas as potencialidades do adolescente pelo seu próprio relato de si.

Não por acaso, Foucault (1995) nos incita a reflexão para a biopolítica, cujo principal objetivo é promover estratégias desse poder sobre a vida, de maneira a produzir o assujeitamento desses indivíduos sobre esse poder. Tal controle da população que não é mais orientado para a morte, mas para atender a uma certa demanda da ordem do Estado. Vê-se claramente a dimensão extra-individual do dispositivo, no qual os efeitos do poder operam em relação ao socioeducando em caráter individual ou ao grupo de socioeducandos que compõem a instituição, além da observância da dimensão intra-individual que serve ao dispositivo para estruturar os conflitos da ordem individual que se transfiguram em pluralidades. Desta forma, a força sutil do dispositivo, opera conforme exposto por Deleuze (2014) na latência das identidades.

As representações sobre o ideal de sujeito privado, não se limitam ao visível e a subjetividade, mas as relações de poder que levam a identificação do sujeito com o eu ideal. A sombra dessa relação entre um eu e um outro há uma textura ontológica que se articula a uma ordem normativa cujo sujeito coletivo é visto como organizador específico do dispositivo de ressocialização. É como se houvesse um regresso ao estágio do espelho especificado por Lacan, em que o sujeito ainda não se reconhece como o reflexo apresentado no espelho, apesar de já inserido no universo da linguagem. A inserção em novos contextos de adaptação geram no indivíduo uma ruptura do equilíbrio outrora vivenciado promovendo uma relação de violência, experienciada pelo corpo em sua forma atual, que nos estremece e nos impõe a expectativa de criarmos um novo corpo, organizado pela existência, modo de se relacionar, de pensar, de agir e que venha a introjetar o estado inédito que se fez em nós, “a diferença que reverbera à espera de um corpo que a traga para o visível” (ROLNIK, 1995, p. 04).

Neste diálogo, o poder disciplinar que atua sobre os corpos individuais (louco, mulher, o infrator) cede lugar à biopolítica e se expande para os corpos políticos, no intuito de promover o governo do outro, cuja assimetria destas relações de poder é identificada pela díade liberdade-igualdade que traduzem a possibilidade de resistência. Na ausência de um ou outro haverá uma relação de violência. Como dirá Foucault (1995, p. 243-244):

Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro polo senão aquele da passividade; e, se encontra uma resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder , ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que “o outro” (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim da ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis. (...) O poder só se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto “livres” - entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer. Não há relação de poder onde as determinações estão saturadas - a escravidão não é uma relação de poder.

A forma, pois, de garantir o poder soberano do Estado para sustentar a morte da vida nua, se constrói na criação de um racismo de Estado que promove a cisão e estabelece relações de desigualdade - um dos pontos abordados por Foucault - inviabilizam a relação da simetria de poder. Neste ponto, podemos observar o racismo biológico cujos comportamentos humanos são classificados pela biologia, ou melhor, pelos fenótipos que os indivíduos apresentam, cujo exemplo aqui adotado será o do sexismo, cujos comportamentos humanos são determinados por critérios biológicos propulsionando a naturalização dos corpos. Assim sendo, haverá a tecnologia regulamentadora da vida no dispositivo da socioeducação, uma vez que a mesma associada à tecnologia disciplinar do corpo produz efeitos individualizantes pela manipulação do corpo como foco de forças a fim de torná-lo útil e dócil.

A partir destas premissas, o adolescente que praticou ato infracional é como qualquer outro adolescente inserido nesta fase de construção da subjetividade, mas que desviou de conduta, de modo que o ato infracional cometido surge como referência de uma trajetória de vida que o levou a prática do ato infracional, seja pela ausência de oportunidades, pela ausência de conhecimento, pela ausência de estrutura familiar ou pelo uso de drogas.

É fato que a alocação do termo “adolescente que cometeu ato infracional” alivia a organização da subjetividade diante do mal-estar oriundo da prática que levou à condenação a medida de internação permanente em regime fechado. O que constitui, como bem fala Rolnik (1995, p. 10) uma subjetividade-sentinela, que se coloca em vigilância sem trégua na finalidade de se evitar o mal-estar provocado por este indivíduo privado no corpo político e social. A não problematização deste mal-estar - ou seja, “quando não é acolhido como sinal de uma diferença que pede escuta e a criação de um corpo que a encarne” - instaura um incômodo latente que pressiona o Estado a produzir uma resposta a este “desvio de conduta”.

Desta forma, como observado por Foucault (1995), a acomodação dos mecanismos de poder sobre o corpo individual, com vigilância e treinamento, gera a disciplina orientada para o domínio do corpo do adolescente com reflexos no organismo que instaura, por meio das instituições, uma subjetividade reificada pautada em relações de poder que criam condições para a possibilidade do enraizamento de comportamentos, nos corpos, modelados por processos biológicos e mecanismos regulamentares com a miragem de uma suposta unidade. 

No entanto, é possível notar um avanço quando da percepção dos adolescentes como seres com potencialidade para o crescimento e que prescindem de mecanismos próprios para o seu desenvolvimento em sociedade. A não taxação dos adolescentes em números, apelidos ou atos infracionais é, sem sombra de dúvidas, uma forma de pôr os adolescentes como parte do processo de ressocialização, apesar de estar limitada em sua liberdade.

Há que se pôr ressalvas quanto aos aplicadores das medidas socioeducativas, que se colocam, como agentes vigilantes e aptos a modificar qualquer comportamento que revele qualquer movimento de criação que possa boicotar a aplicação da medida socioeducativa, conforme os padrões definidos pelo Plano Individual de Acolhimento – PIA. Nessa contenção as saídas de criatividade, cria-se um micro campo no qual a corpo sob o efeito da medida fica acuado, e aí, cabem duas opções: a adequação ao sistema e aos eixos de aplicação do planejamento organizado pelos aplicadores e pelo modelo neoliberal de produção de sentidos, ou a revolta contra o sistema de forma a clamar uma autonomia particular dentro do campo social, já que, resgatando Lahire (2013, p. 16), não há para os indivíduos nenhuma existência possível fora do tecido social.

Conclui-se, portanto, que dispomos de elementos minimamente suficientes para problematizar as medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes que cometeram ato infracional e destacar os pontos intra e interdiscursivos que complementam a percepção da socioeducação como um ato de remodelar, reinserir, resgatar os adolescentes que se encontram em processo de aprendizagem de uma subjetividade. Esses indivíduos serão demarcados por práticas normalizadoras de conduta estruturas sob o eixo família-indivíduo-sociedade, cuja implicação se percebe tanto na percepção da biopolítica, quanto do dispositivo da socioeducação enquanto agente de assujeitamento do outro que poderá encerrar ou não numa relação de violência a  depender das técnicas utilizadas pelos agentes aplicadores de medidas socioeducativas de internação que nos dizem sobre os processos de subjetivação estigmatizados em torno destes adolescentes em processo de formação.

É nesse encontro a nosso ver que se encontra a maior dificuldade, às vezes, da ordem do intransponível. Saltar a naturalização do discurso da cultura dominante como titular de patrimônios subjetivos, de que o foco para a ressocialização não é o adolescente que comete o ato infracional, mas o Estado que deveria dispor de mecanismos de ação para gerenciar políticas públicas que permitissem a existência de um indivíduo que sofre violências desde a sua concepção. Assim, não há como socioeducar nos padrões de comportamento do Estado neoliberal, aquele a quem nunca foi dada a oportunidade de se inserir na sociedade, quando observados os padrões de comportamento do Estado neoliberal.

O desafio que essa travessia de “transformar”, “oportunizar”, “motivar” e “remodelar” encontra barreiras nas relações de saber, poder e subjetivação que atuam diretamente no corpo desse adolescente e constituem cicatrizes de relações de poder que lhe provocam um assujeitamento à prática política de poder e de padronização nacional das medidas socioeducativas, apoiada em um suporte institucional. E ainda, podemos recolher os efeitos pelos quais esses adolescentes se manifestam dentro deste ambiente socioeducativo, que entre a docilização e a resistência à primeira vista, oferecem sinais de circunscrição simbólica no contexto ao qual estão situadas. É um adolescente em seu processo peculiar de pessoa em desenvolvimento que encontra um caminho a seguir pela vindicância da sua liberdade, da construção de direitos de igualdade e de existência para além dos processos de subjetivação. Personagens de sua própria história, dentro da experimentação do devir.

 

Notas e Referências

ALVES, Alanna Caroline Gadelha.  Dispositivos jurídicos e percepção de processos de subjetivação em adolescentes que cumprem medidas socioeducativas no centro socioeducativo feminino (CESEF): Um olhar institucional. 2019. Dissertação (Mestrado em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional) – Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Disponível em: <https://www.cesupa.br/MestradoDireito/dissertacoes/2019/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20%20%20ALANNA%20CAROLINE%20GADELHA.pdf>.Acesso em: 20 de setembro de 2021.

DELEUZE, Gilles. El poder:curso sobre Foucault II. 1ª de. Buenos Aires: Cactus, 2014.

ROLNIK, Suely. À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia. Em: Magalhães, M. C. R. (org.). Na sombra da cidade (pp. 141-170). São Paulo: Escuta. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=000120&pid=S0103-5665200800020000300016&lng=pt>. Acesso em: 27 de janeiro de 2019.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão – 37 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1995.

LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: disposição e variações individuais. São Paulo: Artmed, 2013.

 

 

 

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