Por Maurilio Casas Maia e Aline Gostinski - 17/10/2015
Ainda que você talvez não goste do estilo musical, quem já ouviu a música “Meu violão e o nosso cachorro” – da dupla Simone e Simaria –, vai entender que se trata de uma crise conjugal que culmina na sentença de um dos (ex) amantes: “dessa casa eu só vou levar meu violão e o nosso cachorro” (ouça aqui). A música, inconscientemente, traz a lume tema cada dia frequente nos Tribunais: guarda de animais de estimação – sim, “guarda de ser senciente” e não posse de coisa, como, por influência “oitocentista”, têm-se tratado os animais. Trata-se do já conhecido problema de saber quem fica com pet na hora da separação do casal (ver aqui) – questão bem debatida no livro de Lívia Borges (ver aqui).
Pois bem, para superar o viés “especista” e demasiadamente “antropocêntrico” é preciso amadurecer a conhecer um pouco mais as razões da tutela jurídica do animal ou do interesse de certos animais. Não se trata, necessariamente, de atribuir a condição de sujeito de direitos aos animais, mas sim de reconhecer a tutela de certos interesses e necessidades dessa categoria de ser vivente. Nesse ponto, os animais se afiguram como “vulneráveis” às ações humanas, apresentando-se ainda como “necessitados” de proteção jurídica diferenciada.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) – em uma daquelas decisões potencialmente paradigmáticas para um movimento democrático e jurídico de tutela dos interesses dos animais sencientes no Brasil –, firmou posição no sentido de levar em consideração o interesse dos animais por ocasião do ato decisório. Eis algumas premissas: (1) O animal não pode ser equiparado às coisas inanimadas (não viventes); (2) o estado de senciência animal, coloca os interesses dos animais em um patamar de “igual consideração ética” de seus interesses; e assim, após caminhar pela doutrina, o TJ-SP concluiu que “O animal em disputa pelas partes não pode ser considerado como coisa, objeto de partilha, e ser relegado a uma decisão que divide entre as partes o patrimônio comum” (ver mais aqui).
Em primeiro plano, quem desejar se dedicar à tutela jurídica dos animais deve conhecer o termo “especismo” – um certo preconceito do ser humano, recheado por “soberba” e que ignora que pelo menos 98% dos seus genes são compartilhados, por exemplo, com chimpanzés (ARAÚJO, 2003, p. 35-36). Assim, reconhecer que o ser humano guarda essa forma de preconceito é o primeiro passo para um estudo mais consciente da temática aqui enfocada.
O segundo ponto, consiste em saber o que é um ser “senciente”, porquanto essa tem sido a justificativa para expansão da tutela jurídica dos animais. Segundo a lição de Carlos Michelon Naconecy (2006, p. 117) falar que um animal é “senciente” consiste em afirma-lo capaz de sentir e se importar com as referidas sensações.
Com efeito, a questão da “senciência animal” pode ser relacionada à existência de um sistema nervoso. Em voto no STJ, o ministro Humberto Martins ponderou: “Não há como se entender que seres, como cães e gatos, que possuem um sistema nervoso desenvolvido e que por isso sentem dor, que demonstram ter afeto, ou seja, que possuem vida biológica e psicológica, possam ser considerados como coisas, como objetos materiais desprovidos de sinais vitais. Essa característica dos animais mais desenvolvidos é a principal causa da crescente conscientização da humanidade contra a prática de atividades que possam ensejar maus tratos e crueldade contra tais seres” (trecho de voto do relator, in: REsp 1115916/MG, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª T., j. 1/9/2009, DJe 18/9/2009).
Os animais não são coisas inanimadas. São seres sencientes. Em verdade, não foi por outro motivo que a Constituição, que o “Poder Público” (em sentido amplo) deve “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (CRFB/88, art. 225, inciso VII). De certo modo, a preocupação constitucional se deve ao fato de que o texto constitucional reconhece implicitamente a senciência animal.
Em relação aos animais domésticos e de estimação ainda um “novo” princípio do direito de família que pode estar envolvido na definição do tema: O “Princípio da afetividade” – vide sobre o tema a obra de Ricardo Lucas Caldeirón. Aliás, o Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu o afeto como valor jurídico, in verbis: "(...) O reconhecimento do afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um novo paradigma que informa e inspira a formulação do próprio conceito de família. (...)” (STF, RE 477554 AgR, R. Min. CELSO DE MELLO, 2ª T., j. 16/8/2011). Desse modo, o “princípio da afetividade” – ao lado da senciência animal –, pode (e deve) ser usado como instrumento de trabalho para o jurista justificar a tutela do interesse animal.
Com efeito, até mesmo o direito à convivência pode repercutir na temática ora exposta. Nesse sentido é o voto do desembargador paulista: “Como senciente, afastado da convivência que estabeleceu, deve merecer igual e adequada consideração e nessa linha entendo deve ser reconhecido o direito da agravante, desde logo, de ter o animal em sua companhia com a atribuição da guarda alternada” (Voto do des. Carlos Alberto Garbi, 10ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP).
Pois bem. A exposição dos animais ao alvedrio humano os coloca em posição de vulnerabilidade e necessidade de proteção jurídica diferenciada, razão pela qual – à semelhança do que ocorre com outros segmentos sociais vulneráveis (ex;: crianças, idosos e pacientes) –, é preciso tutelar também o seu “melhor interesse”, na medida das semelhanças e das desigualdades.
Certamente, muito longe de consolidar temática tão bela quanto controversa no cenário jurídico atual, este pequeno texto se apresenta com o anseio de ser também um pequenino sinal de luz para os debates em meio à escuridão do “especismo” e do “antropocentrismo” – que em nada se conectam à “alteridade” com essas outras criaturas terrestres, as quais, no passado, foram chamadas por (São) Francisco de Assis simplesmente de “irmãos”.
Notas e Referências:
ARAÚJO, Fernando. A hora dos Direitos dos Animais. Coimbra (PT): Editora Almedina, 2003.
BORGES, Lívia. Guarda de Animais de Estimação Nos Casos de Dissolução Litigiosa da Conjugabilidade. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.
GALVÃO, Pedro (Org. e trad.). Os animais têm direitos? Perspectivas e argumentos. Lisbo (PT): Dinalivro, 2010.
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos Animais. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2013.
NACONECY, Carlos Michelon. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.
NOGUEIRA, Vânia Márcia Damasceno. Direito Fundamentais dos Animais: a construção jurídica de uma titularidade para além dos seres humanos. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012.
RODRIGUES, Danielle Tetü. Os Direitos dos Animais: Uma abordagem ética, Filosófica e normativa. Curitiba: Juruá, 2012 (4ª reimp.).
SINGER, Peter. Libertação animal. Tradução: Marly Winckler e Marcelo Brandão Cipolla. Revisão técnica: Rita Paixão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
Maurilio Casas Maia é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Graduado lato sensu em Direito Público: Constitucional e Administrativo; Direitos Civil e Processual Civil. Professor de carreira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Defensor Público (DPE-AM).
Email: mauriliocasasmaia@gmail.com
Aline Gostinski é formada em Direito, Pós Graduada em Direito Constitucional e Mestranda em Direito na UFSC. Professora de Criminologia e Ciência Política da Univali.
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