Juízes Partisans? Lava jato, esgotamento do conceito de juízes ativistas e revelação de conflitos de interesses no interior do Estado brasileiro

04/11/2016

Por Matheus Felipe de Castro - 04/11/2016

O ativismo judicial revela lutas por espaço de poder no interior do Estado

Um dos conceitos que mais provocou impacto na teoria jurídica contemporânea foi o de juízes ativistas, em virtude da flexibilização de fronteiras que certas práticas judiciais vinham causando na separação das funções de Estado. Um maior protagonismo do Judiciário e uma maior judicialização de questões que tradicionalmente eram definidas em esferas políticas chamou a atenção da comunidade jurídica nacional e internacional.

A divisão entre um Legislativo encarregado de produzir ordem normativa; um Executivo encarregado de gerir a coisa pública e orientar políticas táticas com a finalidade de produzir resultados estratégicos; e um Judiciário como esfera de solução de conflitos de interesse mediante a aplicação da norma definida pela vontade popular, já havia entrado em crise com os fenômenos do ativismo e da judicialização da política, demonstrando que essa separação não passava de uma divisão jurídico-formal, incapaz de apreender o fenômeno das lutas travadas por setores sociais no interior do Estado.

Esses fenômenos eram explicados através de modificações no próprio Ordenamento Jurídico contemporâneo, trazendo o debate para o terreno formal. Transformações no Direito Constitucional dos últimos 20 anos vinham aprofundando uma visão autointitulada pós-positivista (que não passa de um pré-positivismo de caráter conservador), fundada numa remoralização do direito que nada apresenta de avançado frente ao velho Direito de matrizes liberais.

Essas mesmas correntes vinham pregando certa textura aberta das normas de direito constitucional que no fundo quebravam a gaiola normativa das regras para permitir a juízes uma interpretação mais ampla do direito com base em princípios altamente permeáveis a análises subjetivas, liberando o velho decisionismo que no pós-guerra havia sido aprisionado pelos Estados de bem-estar nos limites estritos das regras jurídicas do Estado de Direito.

O fenômeno do ativismo podia ser explicado, ainda, através da própria crise do Estado Liberal, na medida em que se aprofundou a crise da representatividade do Estado perante populações inteiras, não só no Brasil, mas no mundo. Legislativo, Executivo e Judiciário, antes que instâncias separadas e autônomas constituiriam esferas de manifestação do Estado como um todo e readequações tensas no interior do aparelho de Estado estariam indicando a necessidade de reconstrução de discursos de autolegitimação diante do esgotamento de discursos antigos. O Estado trata de deslocar o exercício da sua autolegitimação internamente entre seus vários órgãos, como já o fez no passado com as Forças Armadas e agora o faz com o Judiciário.

O grave problema desse movimento de deslocamento dos instrumentais de autolegitimação para esferas alheias ao exercício do voto e, consequentemente, da soberania popular, como as Forças Armadas e o Judiciário, é que isto estaria a indicar uma tensão existente nas esferas de mediação direta entre povo e o Estado (Legislativo e Executivo) que acabam por demandar a intervenção de esferas técnicas e até mesmo violentas, como no caso das Forças Armadas, para cumprir funções que deveriam ser da política.

Embora importantes essas análises jurídicas e funcionalistas trataram o Estado e suas instâncias internas como se fossem um monobloco indiferenciado e impermeável às lutas de classes e de frações de classes. Era uma racionalização suficiente para explicar o fenômeno restrito do ativismo, mas se tornou insuficiente para explicar o salto do ativismo para o conceito que aqui estamos lançando, do surgimento de Juízes Partisans no Brasil. Então, faz-se necessário observar o fenômeno por outro viés que privilegie a própria luta interna existente no Estado para a manutenção de certas estruturas de poder que não são declaradas nem conhecidas pelas correntes aqui mencionadas.

Bem, o fenômeno já era observado, em certa medida, por Nicos Poulantzas, nos anos 1970, em seu clássico Poder Político e Classes Sociais, quando sobre a separação de poderes afirmava: “A despeito da declaração de separação dos poderes, particularmente do poder Legislativo e do poder Executivo, podemos constatar que o Estado capitalista funciona como unidade centralizada, organizada a partir da dominância de um desses poderes sobre os outros. Com efeito, essa distinção entre o Legislativo e o Executivo não constitui uma simples distinção jurídico-formal, antes corresponde a relações precisas entre forças políticas e diferenças reais no funcionamento das instituições do Estado”[1].

O autor apontava que essa especialização interna e as tensões entre elas existentes poderiam estar indiciando algo oculto, ou seja, uma tensão existente entre interesses de grupos sociais antagônicos que se embatem no interior do Estado para manter a hegemonia de suas pautas em face das pautas de outros grupos sociais. Isso somente é possível se compreendermos o Estado como uma arena de lutas políticas onde os vários estratos sociais se embatem por espaços maiores de poder.

Constatada essa correlação entre funções de Estado e forças políticas no interior do Estado, Poulantzas afirmava que “é sempre possível decifrar a dominância característica de um desses poderes, daquele que constitui a instância principal da unidade do Estado. Essa instância constitui o ponto nodal em que se concentra, no interior da organização complexa do Estado, o poder institucionalizado unitário; reflete o índice das relações internas de subordinação, por delegação de poder, dos diversos ‘poderes’ do Estado a esse ‘poder’ dominante, constituindo o princípio de unidade do poder de Estado”[2].

Ou seja, sempre haveria uma instância interna ao Estado à qual caberia, em certo espaço-tempo, deter a função política, não abertamente declarada e muitas vezes não conscientemente racionalizada, de garantir a unidade do poder de Estado em mãos das elites hegemônicas que comandam o todo. Um comitê das crises acionado em momentos onde forças antagônicas avançassem sobre interesses já cristalizados.

Mas uma segunda diferença poderia ainda ser destacada: a divisão entre funções de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) nos indica também uma maior ou menor proximidade ao sufrágio universal, havendo, portanto uma maior ou menor permeabilidade a interesses advindos das bases sociais.

Poulantzas ressaltava que “o parlamento se apresenta às classes dominantes como um lugar perigoso, dados os riscos da sua conquista pelas classes dominadas por meio do sufrágio universal. Neste sentido, a distinção Legislativo-Executivo seria uma garantia para as classes dominantes: permitiria o deslocamento do centro de gravidade da unidade do poder, no caso de uma escalada parlamentar das classes dominadas”[3].

Ora, como a ironia da história universal coloca tudo de cabeça para baixo[4], quis a contemporaneidade que o Executivo fosse ocupado, nos últimos mandatos presidenciais, não somente por forças políticas defensoras de pautas populares, como por forças políticas que defenderam uma relativa pauta nacionalista, independentista e desenvolvimentista, que fortaleceu amplas frações da burguesia nacional frente interesses estrangeiros. Já as frações de classe conservadoras, embora dominando uma parcela considerável do Legislativo nacional, não eram capazes de fazer frente ao avanço dessas pautas que fortaleciam a presença brasileira no cenário internacional.

Eis que se tornava necessário acionar outras esferas internas ao Estado que pudessem fazer valer a unidade do poder de Estado nas mãos de quem sempre o deteve no Brasil: frações da burguesia internacional e seus gerentes no país, interessados na manutenção periférica do Brasil nas relações internacionais e no bloqueio do avanço de políticas sociais internas. Isso explicaria porque certas atividades judiciais, como a Operação Lava Jato, não apenas miraram no desmonte de forças políticas populares que ocuparam o Executivo e em segundo plano o Legislativo, como também em setores do empresariado nacional que vinham sendo fortalecidos numa pauta de maior enfrentamento com interesses internacionais, inclusive por intermédio da articulação dos BRICS.

O surgimento dos Juízes Partisans no Brasil

A postura abertamente militante de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal e algumas características que podem ser destacadas na Operação Lava Jato indiciam que estaríamos diante do surgimento no Brasil de um fenômeno muito mais amplo do que aquele acima ressaltado e chamado por muitos de ativismo judicial. Na medida em que os interesses das elites que se embatem no interior do Estado foram deslocados do Executivo e que não conseguiam se articular no interior do Legislativo, foi no Judiciário que esses interesses conseguiram um verdadeiro canal de expressão.

A Operação Lava Jato predispôs o Judiciário brasileiro como um instrumento político de extermínio de uma força política nacional que se encontrava no comando do Executivo e dos empresários nacionais que se articulavam em torno dessa força. Havia indícios de que o partido deslocado da presidência pudesse vencer mais uma eleição em 2018, o que movimentou as forças políticas adversárias a um ataque sem precedentes, que tem sido identificado por muitos teóricos como uma tática deliberada de lawfare, ou seja, como utilização do direito como arma de guerra para exterminar um inimigo. E, para isso, foram acionados dispositivos de “Estado de Exceção”, visto que a legalidade tradicional se tornou um obstáculo a essas intenções.

Carl Schmitt foi o teórico maior do Estado de Exceção. Seu pensamento se concentrava na constatação de que a decisão é o problema central de todo o Direito. Por isso, este autor afirmava, em sua Teologia Política, que “soberano é quem decide sobre o estado de exceção”[5]. Decidir sobre o estado de exceção é decidir, fundamentalmente, quando será aplicado o programa normativo do Ordenamento Jurídico ou quando esse programa normativo será suspenso e aplicada a violência pura e simples.

Por isso, em O conceito do político, Schmitt afirmava que “o conceito de Estado pressupõe o conceito do Político”. Mas, “o conceito do político só pode ser obtido pela identificação e verificação das categorias especificamente políticas”. E então, mais adiante, afirmava que “a diferenciação especificamente política, à qual podem ser relacionadas as ações e os motivos políticos, é a diferenciação entre amigo e inimigo[6].

Ora, se o Estado é um fenômeno político e o político se fundamenta na oposição binária amigo/inimigo, o teorema de Clausewitz da guerra como continuação da política e o seu complemento necessário, a política como continuação da guerra ficam reforçados[7]. O combate se torna essencial ao direito, não uma mera situação circunstancial ou passageira.

Nesse sentido, o soberano, entendido como a pessoa que concentra, em certo momento histórico o poder soberano, é aquele que pode decidir. Mas não qualquer decisão, mas a decisão por excelência, que é: 1) a definição de quem ostentará a qualidade de amigo e quem ostentará o rótulo de inimigo; 2) com base nessa escolha anterior, a definição de que as garantias do Estado de Direito sejam aplicadas sobre os amigos e que os instrumentais repressivos sejam aplicados sobre os inimigos.

A recente manifestação do TRF da 4ª Região, de que “as investigações e processos criminais da chamada ‘Operação Lava-Jato’ constituem caso inédito, trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas. Em tal contexto, não se pode censurar o magistrado, ao adotar medidas preventivas da obstrução das investigações da Operação”[8], escancara a janela de interpretação que aqui estamos desenvolvendo.

Por outro lado e talvez mais grave é que o TRF da 4ª Região, acabou por outorgar ao magistrado representado o poder de decidir quando as normas jurídicas deverão ser aplicadas ou não aos casos concretos da situação considerada excepcional que está submetida à sua jurisdição, o que, nos dizeres de Carl Schmitt, seria tarefa do próprio soberano.

E como a Operação Lava Jato ficou conhecida por ser escancaradamente seletiva, se torna necessário debater, inclusive, o conceito de Juízes Partisans, já que os conceitos de judicialização da política e de juízes ativistas já não dão mais conta do fenômeno verificado.

Foi o próprio Schmitt quem fixou os limites do conceito em seu trabalho Teoria do Partisan. Para ele, o partisan é o combatente. Mas não qualquer combatente, porque “o partisan combate de forma irregular”[9], ou seja, fora das regras estabelecidas para a própria guerra porque ele não é um simples soldado, mas um partidário, um militante, um guerrilheiro tomado por uma ideologia ou meta política que o diferencia de um soldado regular[10].

A lógica do combate regular é a lógica que os partidos políticos adversários travam entre si em momentos de normalidade democrática, dentro das regras do jogo. Já a lógica partisan é diferente. O partisan não espera do inimigo “nem direito nem misericórdia. Ele abandonou a inimizade convencional da guerra domesticada e cerceada, entrando numa outra, a da inimizade real, que se intensifica através do terror e da luta contra ao terror até chegar ao extermínio”[11].

O partisan é o partidário. Ele possui interesse direto no combate e “o soldado inimigo portador de um uniforme é o verdadeiro alvo do partisan moderno”[12]. O seu intenso engajamento político o distingue de outros tipos de combatentes regulares: “deve-se perseverar nesse caráter intensamente político do partisan[13]. E, ainda: “o partisan combate em uma frente política e é precisamente o caráter político de sua ação que novamente confere validade ao sentido original do termo partisan. A palavra deriva de partido e remete ao vínculo com um partido ou grupo beligerante, politicamente ativo ou de alguma forma em combate”[14].

Como se observa, o conceito de partisans, guardadas as devidas proporções, se adéqua de maneira muito mais concreta aos agentes públicos que dirigem a Operação Lava Jato do que o conceito simples e ultrapassado de ativismo judicial. A Operação Lava Jato sai do terreno de combate regular e avança como uma tropa irregular, guerrilheira, sobre um terreno que não deveria ser o seu de origem, utilizando o discurso do direito penal como arma de legitimação através da técnica e do procedimento.

Considerações Finais

O presente artigo teve por objetivo: 1) demonstrar a limitação das teorias tradicionais, jurídico-formais e funcionalistas para descrever o salto do fenômeno do ativismo judicial para o da militância aberta e escancarada que o Judiciário brasileiro vem realizando a partir do STF e da Operação Lava Jato; 2) a necessidade de revelar quais os interesses sociais, políticos, econômicos e internacionais que estão em jogo nessa aparente disputa entre Executivo, Legislativo e Judiciário; 3) demonstrar como essas medidas só poderiam ser adotadas com rompimento da legalidade ordinária, mediante instauração de uma verdadeira situação de exceção no país; 4) traçar as linhas gerais do conceito de Juízes Partisans como forma de compreensão do fenômeno aqui mencionado.


Notas e Referências:

[1] POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977, p. 300.

[2] POULANTZAS, Nicos. Op. cit., loc. cit.

[3] POULANTZAS, Nicos. Op. cit., pp. 309-310.

[4] ENGELS, Friedrich. Prefácio [ao As lutas de classe na França de 1848 a 1850, de Karl Marx (1895)]. In: As lutas de classe na França. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 24.

[5] SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 07.

[6] SCHMITT, Carl. O conceito do político e teoria do partisan. Belo Horizonte Del Rey, 2008, pp. 19 e 27.

[7] CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 27.

[8] BRASIL, TRF4. Relatório e Voto. Autos 0003021­32.2016.4.04.8000. Relator Desembargador Federal Rômulo Pizzolatti. Porto Alegre: TRF4, 2016.

[9] SCHMITT, Carl. Op. cit., p. 151.

[10] SCHMITT, Carl. Op. cit., p. 157.

[11] SCHMITT, Carl. Op. cit., p. 158.

[12] SCHMITT, Carl. Op. cit., p. 162.

[13] SCHMITT, Carl. Op. cit., loc. cit.

[14] SCHMITT, Carl. Op. cit., loc. cit.

BRASIL, TRF4. Relatório e Voto. Autos 0003021­32.2016.4.04.8000. Relator Desembargador Federal Rômulo Pizzolatti. Porto Alegre: TRF4, 2016.

CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 27.

ENGELS, Friedrich. Prefácio [ao As lutas de classe na França de 1848 a 1850, de Karl Marx (1895)]. In: As lutas de classe na França. São Paulo: Boitempo, 2012.

POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

SCHMITT, Carl. O conceito do político e teoria do partisan. Belo Horizonte Del Rey, 2008.

SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.


matheus-felipe-de-castro. . Matheus Felipe de Castro é Doutor em Direito pela UFSC, Professor de Direito Constitucional na mesma instituição e Professor Titular do Mestrado em Direitos Fundamentais da UNOESC.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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