É PRECISO PROFANAR A ABSOLUTIDADE DA ECONOMIA NA PERSPECTIVA DE UMA “VIDA QUE VEM...”  

04/07/2021

Coluna Stasis

Os gregos antigos concebiam a economia intimamente vinculada à manutenção da vida biológica. Tal concepção se manifesta na própria constituição etimológica da palavra “oikonomia”  que se constitui a partir de dois radicais:  “oikos = casa” + “nomos = lei”.  Ou seja, a oikonomia dizia respeito à multiplicidade de relações que se estabeleciam no âmbito da casa, da propriedade, entre os membros da família e, em relação aos servos na organização cotidiana das atividades produtivas e, de consumo que garantiam a adequada manutenção e reprodução da vida biológica dos habitantes da “oikos”.

Desta concepção de oikonomia (de onde deriva a palavra economia que utilizamos na língua portuguesa), presente entre gregos Antigos, desdobram-se as seguintes consequências: 1ª A oikonomia implica numa forma de conceber a vida em sua dimensão meramente biológica. Presa ao reino da necessidade, a vida em sua forma biológica requer uma oikonomia cotidiana para sua manutenção. Sob os imperativos da necessidade não há liberdade. É preciso fazer, administrar, encaminhar, superar as afrontas da fome, da sede, do cansaço, da higiene que afligem o corpo, a vida biológica. 2º A oikonomia é uma atividade rotineira. Requer trabalho, produção e consumo e, como tal há dispêndio de vida como forma de manutenção da própria vida biológica. 3ª A oikonomia como ação derivada dos imperativos da necessidade não promove a qualificação da vida, senão sua mera manutenção biológica. 4ª Sob tais condições a oikonomia é atividade exclusivamente privada, realizada no espaço das sombras, no conjunto das relações de produção que envolve os habitantes da casa.

A esta forma de vida, vinculada às exigências de manutenção da vida biológica, os gregos Antigos atribuíam o termo Zoé. A Zoé é a forma de vida que habita a casa, o espaço das sombras, submetida aos imperativos cotidianos da necessidade. A Zoé é a forma de vida que apenas faz a manutenção biológica da vida. Ela não qualifica a vida. E, apesar de todos os esforços dispendidos na manutenção da condição biológica da vida, não há garantias de que a vida biológica prospere com segurança. Qualquer evento adverso pode consumir a vida, seja de um recém-nascido, seja de um indivíduo jovem, ou mesmo adulto na plenitude de suas energias vitais. Em relação à vida senil, a decrepitude das forças vitais demonstra de forma inconteste a vitória dos imperativos da necessidade contra os quais se despenderam os esforços de uma vida.

Assim, novamente para os gregos Antigos, a vida que alcança qualificação é a Bios. É a vida cujas energias vitais são empregadas em torno da construção e manutenção da polis, da cidade-comunidade. É a vida que habita o espaço público, locus par excellence do debate político em que os cidadãos se reconhecem partícipes de um mundo comum. Trata-se para os cidadãos de estabelecer a partir da diversidade de concepções, de ideias, de opiniões, de interesses de constituir práticas políticas de alcance da justa medida no governo da polis, cuja condição primordial é a afirmação do espaço público e, sobretudo, dos bens públicos fundamentais para o reconhecimento da isonomia (igualdade perante a lei), da isegoria (do direito à palavra) e, da parrhesia (da coragem de falar o bem, de falar a verdade no espaço público).

A vida qualificada (Bíos) é a vida que alcança o reconhecimento dos cidadãos, dos pares que coabitam o espaço público em função do comprometimento ético, político e estético com a polis no tempo presente, mas também como expressão de uma vida em curso que compreende suas responsabilidades com as futuras gerações. Trata-se do empenho de uma vida na constituição de um mundo suficientemente acolhedor e respeitoso com a vida em suas múltiplas dimensões. É o empenho político de manter-se presente na memória das futuras gerações que transcorrem no tempo a partir dos feitos realizados na potencialização da polis.

Nas sociedades modernas e contemporâneas em que estamos inseridos convivemos com uma inversão destes pressupostos a partir dos quais os gregos Antigos concebiam a forma-de-vida suficiente e adequada a condição humana. A economia ocupou, ou talvez tenha colonizado a ágora pública. Com o esvaziamento da ágora pública perde-se gradativamente a importância da defesa do espaço público como locus do reconhecimento de indivíduos que com os demais indivíduos compartilham o mundo. Esvai-se com o espaço público a noção de bens públicos e, sobretudo, a compreensão dos esforços sociais necessários à sua preservação pública. A emergência e afirmação das sociedades individualizadas caracterizam-se pelos imperativos dos puros meios destituídos de finalidade. Ou dito de outra forma, estamos inseridos em sociedades que transformaram os puros meios em fins em si mesmos.

Talvez sob tais perspectivas, podemos avançar na compreensão do fato de que a economia alcançou tamanha importância nos tempos em que vivemos. Nesta direção, é sintomático o fato de que tenhamos muita dificuldade em definir adequadamente o que é economia, mesmo que cotidianamente ela faça parte dos discursos dos economistas, dos trabalhadores assalariados, dos profissionais liberais, dos desempregados, dos sub-empregados, dos desempregados e dos desalentados. Ou seja, há o reconhecimento que a “economia” determina a condição e a qualidade de vida de cada indivíduo, seja ele habitante das sociedades centrais, ditas desenvolvidas, seja ele das sociedades periféricas, subdesenvolvidas, miseráveis, lançadas a própria sorte.

A economia tornou em nossos tempos um fim em si mesmo destituído de finalidade. Foi sacralizada. Retirada do uso comum dos seres humanos como mero meio a serviço da manutenção das condições necessárias a manutenção da vida em sua dimensão meramente biológica. Foi elevada à condição do “Absoluto”. Deixou de ser um meio a serviço da vida, para tornar-se o fim em si mesmo, a partir do qual a vida biológica das sociedades individualizadas “deve” (por que se trata de imperativos morais) estar a serviço. Vidas individualizadas que devem consumir-se e ser consumidas na reprodução da lógica do capital financeirizado, forma de manifestação da economia em sua “Absolutidade” em curso na atualidade.

Os efeitos da tirania da Absolutidade da economia se apresentam implacáveis no seio das sociedades individualizadas consumidoras de si mesmas, de seus indivíduos, de seus corpos, de suas medíocres vidas biológicas resignadas, ou relegadas a meros produtores e consumidores. Sociedades que vociferam por “ética” na política, desconsiderando que há muito tempo já não há mais política, senão apenas política econômica, conduzida, vigiada, e garantida a custo de violência, de empobrecimento, de abandono daqueles considerados refugos humanos, consumidores falhos, pelas agências territoriais da economia extraterritorial, os Estados-nações. Ou, ainda, que a economia é a continuação da guerra civil por outros meios - em paralelo à inversão da fórmula de Clausewitz (a guerra é a política continuada por outros meios), anteriormente efetuada por Foucault (a política é a guerra continuada por outros meios) -, como observou o coletivo Tiqqun, por meio do qual se pôde fazer generalizar a lógica concorrencial e a ininterrupta guerra de todos contra todos em prol da sobrevivência – no caso específico do neoliberalismo, até mesmo por alguns centavos correspondentes ao trabalho realizado para algum dos aplicativos de precarização da vida. Ou dito de outra forma, a privatização da vida em sua dimensão pública, promovida pela Absolutidade da economia, faz com que os indivíduos desconsiderem o que de fato está em jogo: a exigência de ética na economia, como único caminho possível de recuperar a primazia da política, do espaço público, dos bens públicos necessários a qualificar a vida em sua potencialidade e multiplicidade de formas.

A economia elevada à condição de Absoluto inquestionável no contexto de sociedades individualizadas na luta pela mera sobrevivência promove a destruição do mundo por meio da luta ensandecida dos interesses privados que tudo desejam abarcar, tomar para si. O sentido da vida humana se reduz ao frenesi do consumo de mercadores, do consumo de “oportunidades” oferecido pelo marketing de mercado como única forma possível de “aproveitar” a vida. O aproveitamento e o consumo da vida na miríade de possibilidades ofertadas pelo Absoluto da economia em curso transforma o outro em concorrente a ser eliminado na luta pela sobrevivência. Tal condição, lança as sociedades contemporâneas numa permanente “stasis”, numa guerra civil mundial marcada pelo espetáculo cotidiano da violência estatal, mas também da violência gratuita entre os indivíduos, materializado no feminicídio, nas torpes e desnecessárias agressões, nas mortes advindas de conflitos no trânsito, na indiferença diante de chacinas que se abatem sobre os moradores das favelas, nas balas perdidas que consomem vidas inocentes, nos mais de 500 mil mortes por Covid-19.

Ou, dito de outra forma, no contexto da economia elevada à condição de Absoluto, de “divindade” e seus imperativos morais sobre os indivíduos não há salvação possível. Há apenas dor, sofrimento, barbárie, fake news, distúrbios psíquicos. Há apenas vidas individualizadas rastejando na luta pela sobrevivência. Não há possibilidade do viver, senão um mero sobreviver cotidiano no interior da lógica do campo de concentração que opera diuturnamente em pleno estado de exceção produzindo vidas nuas, vidas matáveis gratuitamente, vidas lançadas na mísera condição da sobrevivência do reino da necessidade (Zoé) numa constante relação de destruição do mundo humano, do mundo em sua totalidade e diversidade de vida.

O tempo presente é marcado pela urgência da profanação da Absolutidade da economia. É preciso restituir aos indivíduos a capacidade de realizar experiências vitais, experiências com a potência do pensamento como forma de reconhecimento, senão de urgente compreensão, de que desprovidos de um mundo comum, de espaço público e das garantias de acesso aos bens comuns não haverá possibilidade de potencialização da vida, de conferir-lhe finalidade pública. Urge reconhecermos na condição paradoxal da clara luminosidade econômica curso, pontos obscuros inerentes às promessas e aos imperativos de um modelo econômico transformado em mero meio, em dispositivo de captura das potencialidades da vida, da vida pública, como forma de resistência, de abertura à condição humana do mundo humano como único fim possível e desejável aos seres humanos.

É tarefa inadiável de nosso tempo pensar e constituir uma “Economia que vem”, comprometida com o uso comum como expressão máxima e única possível da vida humana, da vida em sociedade. Inadiável não por força de qualquer pretensão de superioridade intelectual, moral, espiritual ou coisa que o valha, mas porque é preciso fazê-lo no tempo que resta – o qual pode estar chegando ao fim, sobretudo se considerarmos todos os fatores autodestrutivos, como a hecatombe ambiental em curso. Do contrário, pode haver vida que vem, mas pode não mais ser dos homo sapiens sapiens... – será que sapiens?

 

Imagem Ilustrativa do Post: close up photo of gavel // Foto de: Bill Oxford // Sem alterações

Disponível em: closeup photo of gavel photo – Free Image on Unsplash

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura