DA PLURALIDADE DE VIOLÊNCIAS CONTRA AS MULHERES

15/08/2020

Refletir sobre as violências praticadas contra as mulheres é uma demanda que merece uma atenção especial, visto que está cada vez mais materializada, seja na seara familiar, social ou institucional, em nítido descompasso com o recrudescimento da legislação. Sob essa ótica, no afã de proporcionar uma maior compreensão sobre essa problemática, verifica-se a particular pertinência de elucidar as estruturas basilares da violência de gênero, além da multiplicidade das formas de violência contra as mulheres.

 

AS DESIGUALDADES DENTRO DA DESIGUALDADE DE GÊNERO

A terminologia de gênero é um sistema de representação que atribui significado, status e valores aos indivíduos no interior da sociedade (LAURETIS, 1987 apud PIMENTEL, SCHRITZMEYER, PANDJIARJIAN, 1998). O gênero, assim, é um fenômeno político-cultural da construção da identidade, mas que se diferencia do sexo por ser uma característica cultural e não biológica:

O vocábulo “gênero (masculino e feminino), tradicionalmente utilizado como sinônimo de indicação de sexo, isto é, o fato biológico de ser fêmea ou macho, tem sido usado por escritores atuais para referir as diferenças socialmente impostas entre os traços característicos e papeis masculinos e femininos. Sexo é fisiológico, enquanto gênero, no sentido amplo, é cultural (sociológico) [...]” (KRAMARAE, TREICHLER, 1985, p. 174-175 apud VIEZZER, 1989, p. 107).

Por ser o gênero pautado em premissas e estereótipos desiguais, instaurou-se uma hierarquia, de modo a impor papeis diferenciados aos homens e mulheres que são incorporados e lhe atribuídos desde o nascimento. As características perpassam por um esquema dual de pensamento que inscreve na subjetividade dos homens “o racional, o ativo, o pensamento, a razão, [...] o universal”. Em contrapartida, as mulheres são projetadas ao antônimo destes traços, identificando-se com “o irracional, o passivo, o sentimento, o particular” (OLSEN, 1990, p. 2)

Os estereótipos femininos, contudo, não serviram a população negra ao longo da história, uma vez que as mulheres de cor não eram tratadas como “sexo frágil”, e muito menos os homens negros poderiam aspirar serem chefes ou provedores da família, como elucida Sueli Carneiro sobre o mito da fragilidade feminina (2003). Daí porque a problemática da universalização ao se representar a ‘categoria mulher’ valendo-se da experiência da mulher branca como única referência, demonstrando-se necessário, portanto, realizar uma análise interseccional, de modo a compreender “a diferença dentro da diferença” e a forma como as desigualdades operam conjuntamente (RIBEIRO, 2017, p. 21; CRENSHAW, 2012, p. 9).

Muito embora estas dicotomias sejam empiricamente falsas (HARDING, 1993, p. 26), estas seguem estruturando vidas e vivências por serem consideradas naturais. Este fator legitima a vigência e adesão pelos cidadãos que, ademais, repreendem quando do não seguimento destas condutas (LARA et al., 2016, p. 18). Estas atitudes de repressão emanadas pela sociedade gozam de certo beneplácito social, visto que, ao serem reproduzidas como medidas correcionais, são também implicitamente aceitas como medidas justas e proporcionais.

É nessa esteira que surge a violência, atuando muitas vezes como um modo de correção e adestramento as normas e condutas de gênero, visando manter o molde hierárquico. O poder, neste norte, é ratificado por meio da dominação e da violência, se afigurando como mecanismos necessários para a perpetuação do poder dos homens sobre as mulheres (SANTOS, 2008, p. 46). Disto se depreende que a violência é a ausência da liberdade, vez que priva o outro da capacidade de escolha e o silencia, maculando o seu direito de liberdade e autonomia. A violência é, assim, “o ato que impõe o ser sujeito de alguém, ao invés de ser” (FELIPE, 2002 apud ZANATTA, SCHNEIDER, 2017, p. 75).

Só que as violências não recaem, como dito, da mesma forma a todas as mulheres. A pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, concluiu que as mulheres negras e pardas chegam a ser violentadas quase 20% a mais do que as mulheres brancas. (2017, p. 11)

 

SOBRE A INVISIBILIDADE DA PLURALIDADE DE VIOLÊNCIAS

As violências contra a mulher não são somente as legalmente identificadas, cabendo mencionar a pluralidade de micro e macro violências a que a mulher é submetida, muitas vezes rotineiramente. O que parece ter início nos papeis de gênero diferenciados hierarquicamente, se propaga para outras situações que podem ser interpretadas como violadoras, como expõe Sohiet:

[...] a exigência da virgindade como símbolo de honra eram algumas das mazelas impostas à mulher, impedida não só de usufruir do prazer, como de obstar a possibilidade de um filho não desejado, mergulhando tantas mulheres no desespero, no crime, na loucura, na prostituição. A imposição da maternidade, considerada ‘natural’ ao sexo feminino, em termos de uma determinação biológica, se constitui numa violência imposta a este sexo e que coloca a mulher num impasse existencial. [...] As relações assimétricas próprias do relacionamento homem-mulher, presentes desde formas primárias do poder masculino, apoiadas nos estereótipos de ‘minoridade’ ética da mulher, identificáveis no controle da conduta da mulher nas relações dentro do casal, até formas mais agressivas de violação da integridade física se constituem, igualmente, em formas de violência (SOHIET, 1989).

Não obstante, as piadas machistas, a linguagem ofensiva e o estereótipo corporal objetificado e sexualizado também podem ser vistos como micro violências, porquanto que em diferentes níveis privam o reconhecimento da mulher como sujeito de direitos, colocando-a na condição de coisa, que como coisa não precisa consentir. (SANTOS, 2008, p. 23).

Outras manifestações da violência muitas das vezes se dão de maneira sutil e dificilmente são identificadas como abuso. Unindo-se isso ao fato de que frequentemente ocorrem dentro do núcleo familiar, que é visto como um âmbito a que não se deve intrometer, cria-se um cenário propício para a perpetuação da violência, onde o silêncio da vítima vigora. Neste sentido, destaca-se que 41% dos autores de violência doméstica são maridos, companheiros e namorados da vítima; e que, por outro lado, 33% são ex-maridos, ex-companheiros e ex-namorados, demonstrando que, em geral, a maioria dos agressores são homens do ciclo afetivo da vítima. (INSTITUTO DE PESQUISA DATASENADO, p. 11, 2017).

A violência contra a mulher conta um auxílio da sociedade na medida em que esta acoberta, naturaliza e normaliza a violência, sendo frequente o pensamento de que “as coisas são realmente assim” e, por conseguinte, assim devem permanecer. Outrossim, são muitas as justificativas apresentadas, mas que, de um modo geral, buscam isentar o agressor da responsabilidade. Sob essa lógica, o marido que bate em sua companheira o faz, na verdade, por que ama demais; tal como o namorado que priva a mulher de ter uma vida social, de ver amigos e as vezes até a família, o faz “para o próprio bem da mulher”, em nome do amor que tem por ela.

Cria-se com isso uma verdadeira disfunção e desfiguração da realidade, dentro da qual a própria vítima passa a acreditar que a agressão merece ser tolerada; e aquilo que é tolerado também é prolongado, uma vez que não é identificado como um problema, mas sim como um mero fato do cotidiano ou como uma questão de marido e mulher, na qual não se deve se intrometer.

Destarte, a violência de gênero comporta, ademais, tanto a violência intrafamiliar e doméstica, como a violência institucional, econômica, patrimonial, física, psicológica, moral e sexual. Portanto, a violência muito além da agressão física, que pode ser compreendida como qualquer conduta que corrompa a integridade física da mulher, afrontando a sua saúde e vida; materializando-se por meio do desagrado físico e mediante o uso de força (CUNHA; PINTO, 2008, p. 61 apud PINHEIRO, 2012, p. 33-34)

A violência psicológica, por sua vez, ocorre por meio das ameaças, chantagens, e humilhação pessoal, causando danos de ordem emocional e prejudicando o desenvolvimento psicológico da mulher. A violência moral, ao seu turno, configura-se diante a persecução de atos caluniosos, difamatórios ou injuriosos da vítima, que frequentemente passam desapercebidos (PINHEIRO, 2012, p. 33-34). Esta também se expressa por meio do constrangimento, do deboche público, da humilhação pessoal, causando danos de ordem emocional. Ademais, pela propagação de fatos que maculem sua reputação e os xingamentos de baixo calão, como “incompetente”, “inútil”, “burra”, degradam a dignidade da mulher.  (PINHEIRO, 2012, p. 33-34). Trata-se de uma violência invisível, continua e permanente, que abala a autoestima e desencadeia por vezes depressões, transtornos psicológicos e alimentares.

Outra forma de violência contra a mulher despercebida nos bojos dos litígios conjugais é a retenção, subtração ou destruição de seus bens, sejam eles objetos de valor, até mesmo os de uso pessoal ou de ofício (PINHEIRO, 2012, p. 35).

Por fim, a violência sexual caracteriza-se na prática pela falta de consentimento dentro de uma relação sexual. Este crime é previsto tanto no Código Penal pelo art. 213 (BRASIL, 2009), cuja ação é incondicionada a representação, como pela Lei Maria da Penha, que prevê como forma de violência doméstica e familiar contra a mulher a violência sexual, conforme art. 7º, III (BRASIL, 2006). É também uma forma de violência sexual constranger alguém a fazer sexo sem preservativo, bem com a retirada deste sem a percepção da outra pessoa, que no caso configura violência sexual mediante fraude, na esteira do art. 215 do Código Penal (BRASIL, 2009).

Se a violência física praticada contra a mulher já é frequentemente justificada, outras formas de violência tardam muito mais a serem reconhecidas como problemáticas e discriminatórias. Daí porque a necessidade de se dar nome, identificar e especificar os tipos de violência, pois quando nomeadas são reconhecidas como existentes, e, portanto, passíveis de uma eventual modificação; auxiliando e facilitando na busca de soluções ao combate da violência.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim demonstrado, a violência contra a mulher traz inúmeros aspectos oriundos e inerentes a desigualdade de gênero, uma vez que o emprego de violência se relaciona ao processo histórico de adestramento dos indivíduos as normas de gênero. Desta maneira, aquilo que se inicia com uma educação diferenciada e com imposições comportamentais polarizadas, acaba por desenvolver um cenário de hierarquia entre os sexos, mas não somente isso, faz calhar também o grave contexto de violência doméstica e de gênero.

Justamente ter relação com fatores socioculturais é que a legislação e o judiciário não podem ser vistos como único modo de resolução de conflitos, especialmente quando se trata de violência contra a mulher, uma vez que não se trata de um mero descumprimento legal.

 

Notas e Referências

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>. Acesso em: 10 jun. 2020.

______. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 10 jul. 2020.

CRENSHAW, Kimberle. A intersecionalidade da discriminação de raça e gênero. 2012. Disponível em:<http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/09/Kimberle-Crenshaw.pdf>. Acesso em: 10 jul. de 2020.

HARDING, Sandra. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. In: Revista Estudos Feministas. Rio de Janeiro, 1993, v. 1, n1, p. 07-32. Disponível em:< http://www.legh.cfh.ufsc.br/files/2015/08/sandra-harding.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2020.

INSTITUTO DE PESQUISA DATASENADO. Violência doméstica e familiar contra a mulher. 7ed. Jun. 2017. Disponível em: < https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/aumenta-numero-de-mulheres-que-declaram-ter-sofrido-violencia>. Acesso em: 10 de julho 2020.

LARA, B. et al. ≠MeuAmigoSecreto: Feminismo além das redes. 1. ed. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2016.

OLSEN, Frances. El sexo del derecho. In: The politics of law. Nova Iorque: Pantheon, 1990. Disponível e:< http://www.derechoshumanos.unlp.edu.ar/assets/files/documentos/el-sexo-del-derecho.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2020.

PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro, Crime ou “Cortesia”: uma abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1998.

PINHEIRO, Priscila Rodrigues. A aplicação da Lei Maria da Penha no âmbito da cidade de Florianópolis, do Curso de Direito da UNISUL – Campus de Florianópolis. 2012. 99 f. Monografia (Graduação em Direito) -Universidade do Sul de Santa Catarina, Florianópolis, 2012. Disponível em:< http://aplicacoes.unisul.br/pergamum/pdf/106784_Priscila.pdf>. Acesso em: maio de 2020.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.

SANTOS, Ligia Pereira dos. Mulher e violência: histórias do corpo negado. Campina Grande: EDUEP, 2008.

SOHIET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres

e ordem urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1989, p. 9. _______. Gênero e Ciências Humanas: desafio às ciências desde a perspectiva

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VIEZZER, Moema. O problema não está na mulher. São Paulo: Cortez, 1989.

ZANATTA, Marília Cassol; SCHNEIDER, Valéria Magalhães. Violência Contra as Mulheres: a Submissão do Gênero, do Corpo e de Alma. In: BAGGENSTOSS, Grazielly Alessandra (Org). Direito das Mulheres. 256. Ed: Lumen Juris Ltda, 2017, p. 73-100.

 

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