Da (Im) Possibilidade de Configuração de Continuidade Delitiva em condutas que violem Bens Jurídicos Personalíssimos

07/03/2017

Inicialmente é necessário compreender que a Continuidade Delitiva é prevista no Código Penal de 1940 no seu Artigo 71. In Verbis:

Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

O Crime Continuado será verificado quando o agente, mediante condutas múltiplas, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, que devem ser considerados como se crime único fosse, tendo em vista as mesmas circunstâncias objetivas de tempo, lugar e modo de execução.

É forçoso reconhecer que para caracterizar o Crime Continuado devem ser preenchidos os requisitos objetivo (mesmas circunstâncias de tempo, lugar e modo de execução) e subjetivo (unidade de desígnios) conforme Jurisprudência pacificada do Superior Tribunal de Justiça[1].

Entretanto, o Código Penal de 1940 adotou a teoria objetiva pura conforme defendia por Nélson Hungria.

Nesse sentido advoga a melhor doutrina que:

O CP/1940 adotou a tese de Nélson Hungria, ou seja, a teoria objetiva pura, conforme o teor do $2º, do art.51, supratranscrito. A mesma opção teria sido acolhida pela Reforma de 1984, pois o art.71, caput, possui redação similar ao diploma de 1940. Conforme constante da Exposição de Motivos do CP/1984, o critério da teoria puramente objetiva não revelou na prática maiores inconvenientes, a despeito das objeções formuladas pelos partidários da teoria objetivo-subjetiva[2] (grifos nossos). 

Ora, dessa forma, seguindo o Código Penal bastaria o preenchimento dos ditos requisitos objetivos para configurar a espécie de Concurso de Crimes em análise.

No entanto, tal entendimento não pode e nem merece prosperar, eis que conforme fora exposto anteriormente a Jurisprudência aplica a Teoria Objetivo-Subjetivo, exigindo não só os requisitos objetivos, mas também, o requisito subjetivo, representado pela unidade de designíos, para configurar a dita Continuidade Delitiva.

Em relação a natureza jurídica do Crime Continuado é importante destacar que se trata de uma “Ficção Jurídica”, sendo uma construção legal, pois, caso não fosse a norma que determina a aplicação da pena única exasperada, estaríamos diante do concurso material de delitos, ante a pluralidade de comportamentos.

A doutrina brasileira tem se manifestado no sentido de caracterizar a natureza jurídica do Crime Continuado como sendo ficção jurídica[3].

Todavia, o cerne do presente trabalho é o parágrafo único do Artigo 71, do Código Penal, que trata da possibilidade de configuração de Continuidade Delitiva em condutas que venham a violar Bens Jurídicos Personalíssimos. In verbis:

Art.71.

Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) 

É primordial antes de tudo arguir que Bens Jurídicos Personalíssimos são aqueles interesses da pessoa humana inerentes à sua condição: como a vida, a saúde, a honra, a liberdade, a integridade física, a liberdade sexual[4].

Sendo importante observar que em relação aos ditos Bens há divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a possibilidade de configurar Crime Continuado.

A doutrina está divida basicamente em três posicionamentos: alguns não admitindo em hipótese alguma a continuidade delitiva quando o bem jurídico ofendido é personalíssimo; outros admitindo nesses casos, quando há unidade de sujeito passivo; e, finalmente, aqueles que admitem o crime continuado quando os crimes que o compõem atingem qualquer espécie de bem jurídico.

Inicialmente, é de se argumentar que a posição que prevalecia tanto na doutrina como na jurisprudência era a primeira, ou seja, não seria possível a continuidade delitiva nos crimes que atingissem bens jurídicos personalíssimos[5].

Para tanto, o Supremo Tribunal Federal chegou a editar a Súmula 607 que versa o seguinte: “Não se admite a continuidade delitiva nos crimes contra a vida”.

Entretanto, com a Reforma do Código Penal de 1984 foi introduzido o parágrafo único ao artigo 71, que passou a autorizar a configuração de Continuidade Delitiva nos delitos que viessem a ofender bens jurídicos personalíssimos, devendo apresentar os mesmos requisitos do caput (artigo 71, do Código Penal). 

Para os adeptos da Teoria objetivo-subjetiva não há que se falar em Continuidade Delitiva nesses casos.

Nesse sentimento advoga MAGALHÃES NORONHA que:

Assim, se um homem mata alguém e a seguir elimina outro, ainda que estejam presentes os demais requisitos da continuação, ela não se verifica: a morte da segunda vítima não foi continuação da morte da primeira; também não se dirá de um indivíduo, que com intervalo de horas estuprou duas moças, que o segundo estupro foi continuação do anterior[6]. 

Em sentido diverso manifesta-se ANIBAL BRUNO, admitindo a Continuidade Delitiva: 

Em certos casos, porém, ou pelas circunstâncias particulares em que as ações se repetem, de que lhes comunicam o necessário tom de continuidade, ou pela própria natureza do crime, que pressupõe a pluralidade de sujeitos passivos, deve-se admitir o caráter de crime continuado mesmo quanto a agressão a bens personalíssimos de diversos sujeitos. Pode ser responsável por crime continuado aquele que, obedecendo a um plano preciso, mata sucessivamente, por idêntico motivo, vários membros da mesma família. A pluralidade de sujeitos passivos, mesmo no caso de bens puramente pessoais, não tolhe a admissibilidade do crime continuado, fazendo o mesmo autor depender a decisão afirmativa da existência de unidade de ideação[7]. 

Perfilhando desse entendimento encontra-se José Frederico Marques[8].

A Jurisprudência dos Tribunais Superiores manifesta-se pelo reconhecimento de continuidade delitiva em condutas que violem Bens Jurídicos Personalíssimos[9].

Importante ressaltar que o Código Penal Militar também prevê a figura do Crime Continuado, sendo certo que exclui tal possibilidade nas condutas que violem Bens Jurídicos Personalíssimos que ofendam vítimas diferentes[10].

Ante o exposto, conclui-se pela possibilidade de reconhecimento de Continuidade Delitiva nas condutas que violem Bens Jurídicos Personalíssimos, por inteligência do Artigo 71, parágrafo único do Código Penal. Sendo certo que tal entendimento é consubstanciado pela Jurisprudência Majoritária e por parte da doutrina conforme fora delineado ao longo deste trabalho.


Notas e Referências: 

[1] RESP 507.STJ.Min. Assis Toledo. Quinta Turma. In RSTJ 12/278. No mesmo sentido: “1. Para a caracterização da continuidade delitiva, é imprescindível o preenchimento dos requisitos objetivos (mesmas condições de tempo, espaço e modus operandi) e subjetivo (unidade de desígnios). (...)” (HC 151012, STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 06/12/2010).

[2] SOUZA, Arthur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de Direito Penal 1. Elsevier: Rio de Janeiro, 2012. P.446.

[3] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal-1. Saraiva: São Paulo, 2013. P.645.

[4] BEZÉ, Patricia Mothé Glioche. Novas Tendências do Concurso Formal e Crime Continuado. Renovar: Rio de Janeiro, 2015. P.177.

[5] Ibidem. P.177.

[6] NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. P. 272.

[7] BRUNO, Aníbal. Direito Penal- Parte Geral. P.303.

[8] MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. P.463.

[9] No STJ: HC 250088, Relator: Ministro Jorge Mussi, data do julgamento: 18/12/2012, T5- Quinta Turma, julgado em 18/12/2012, DJe 01/02/2013.

HC 36.414/RJ, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 19/10/2004, DJ 06/03/2006, p. 446.

HC 70.110/RS, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 24/04/2007, DJ 04/06/2007, p. 403.

No STF: HC 81579 MS, Relator Illmar Galvão, data de julgamento: 19/02/2002, Primeira Turma, data de publicação: DJ- 05/04/2002, pp. 00038 Ement vol 02063-02 pp. 00275.

HC 77786 RJ, Relator Ministro Marco Aurélio, Segunda Turma, julgado em 27/10/1998, DJ 02-02-2001 PP-00074 EMENT VOL-02017-02 PP-00418.

[10] Art.80 do CPM: Aplica-se a regra do artigo anterior, quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser considerados como continuação do primeiro.

Parágrafo único. Não há crime continuado quando se trata de fatos ofensivos de bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo se as ações ou omissões sucessivas são dirigidas contra a mesma vítima.

Código Penal brasileiro. Artigo 71, caput e parágrafo único.

HC 151012, STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 06/12/2010

SOUZA, Arthur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de Direito Penal 1. Elsevier: Rio de Janeiro, 2012.

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal-1. Saraiva: São Paulo, 2013. P.645.

BEZÉ, Patricia Mothé Glioche. Novas Tendências do Concurso Formal e Crime Continuado. Renovar: Rio de Janeiro, 2015

NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal.

BRUNO, Aníbal. Direito Penal- Parte Geral.

MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal.

HC 250088, Relator: Ministro Jorge Mussi, data do julgamento: 18/12/2012, T5- Quinta Turma, julgado em 18/12/2012, DJe 01/02/2013.

HC 36.414/RJ, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 19/10/2004, DJ 06/03/2006, p. 446.

HC 70.110/RS, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 24/04/2007, DJ 04/06/2007, p. 403.

No STF: HC 81579 MS, Relator Illmar Galvão, data de julgamento: 19/02/2002, Primeira Turma, data de publicação: DJ- 05/04/2002, pp. 00038 Ement vol 02063-02 pp. 00275.

HC 77786 RJ, Relator Ministro Marco Aurélio, Segunda Turma, julgado em 27/10/1998, DJ 02-02-2001 PP-00074 EMENT VOL-02017-02 PP-00418.

Código Penal Militar. Artigo 80.


João Pedro Coutinho. João Pedro Coutinho é graduado em Direito pelo Instituto Brasileiro de Mercados Capitais (Ibmec/RJ), Advogado especializado nas áreas de Direito Penal, Direito Penal Econômico e Direito Processual Penal. Sócio no Escritório Antonio Quintino Assessoria Jurídica. Membro da Comissão Permanente de Estudos de Direito Penal (CEDP). .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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