Condenação por desacato é incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, segundo parecer exarado pelo Procurador de Justiça Rômulo de Andrade Moreira

02/02/2017

Por Redação - 02/02/2017

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu pela absolvição em um caso de desacato a autoridade pelo entendimento que a tipificação é incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). A decisão foi unânime.

Confira o parecer do Procurador de Justiça Rômulo de Andrade Moreira:

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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA

PROCURADORIA DE JUSTIÇA CRIMINAL 

 

PROCESSO Nº. 0324660-16.2013.8.05.0001 – APELAÇÃO CRIMINAL

ORIGEM: SALVADOR – BA

ÓRGÃO JULGADOR: PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL – PRIMEIRA TURMA

APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA

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PARECER Nº. 479/2017

Trata-se de uma apelação criminal interposta por ..., irresignado com a sentença condenatória proferida nos autos da ação penal nº. 0324660-16.2013.8.05.0001, que tramitou perante o Juízo de Direito da 2ª. Vara Criminal de Salvador, cujo teor o condenou a uma pena de sete meses e vinte e cinco dias de detenção, em regime inicial semiaberto, pela prática da conduta tipificada no art. 331 do Código Penal.

Recebida a denúncia em 08 de abril de 2013 (fls. 62) e apresentada resposta à acusação (fls. 137). Ademais, procedeu-se a audiência de instrução e julgamento, na qual ocorreu a oitiva da vítima, bem como, em seguida, o interrogatório (fls. 150/153).

Ultimada a instrução criminal e oferecidas as alegações finais, do Ministério Público às fls. 159/162 e do apelante às fls. 165/169, sobreveio sentença (fls. 171/173), que julgou procedente o pedido formulado na denúncia.

Inconformado, o apelante interpôs o presente recurso (fls. 184), pleiteando, em epítome, nas razões recursais de fls. 191/193, a sua absolvição.

Por sua vez, em sede de contrarrazões (fls. 199/205), o Ministério Público entendeu que a sentença não deve ser reformada, pugnando seja negado provimento ao recurso de apelação interposto, ratificando in totum a decisão condenatória do Juízo a quo.

Eis um sucinto relatório.

Os autos foram encaminhados ao Ministério Público para o parecer.

Compulsando os autos, entendemos que não pode subsistir o édito condenatório no caso dos autos, em razão da incompatibilidade da tipificação do crime de desacato (art. 331 do Código Penal) com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil (Decreto nº. 678/92):

Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão. 1.Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou  b. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.”

Nesse sentido, por unanimidade, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) descriminalizou a conduta tipificada como crime de desacato a autoridade, por entender que a tipificação é incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). A decisão, tomada na sessão do dia 15 de novembro, acompanhou parecer do Ministério Público Federal. A manifestação do MPF foi apresentada no Agravo em Recurso Especial (AREsp) 850.170/SP, porém, a Corte Superior decidiu julgar o agravo como Recurso Especial para permitir a sustentação oral das partes. Nesse sentido, o processo foi alterado para REsp nº 1640084/SP. O ministro relator do recurso, Ribeiro Dantas, confirmou os argumentos apresentados pelo Ministério Público Federal (MPF) de que os funcionários públicos estão mais sujeitos ao escrutínio da sociedade, e que as “leis de desacato” existentes em países como o Brasil atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação. O magistrado apontou que a descriminalização da conduta não significa liberdade para as agressões verbais ilimitadas, já que o agente pode ser responsabilizado de outras formas pela agressão. O que foi alterado é a impossibilidade de condenar alguém, em ação penal, por desacato a autoridade. A decisão ressaltou que o Supremo Tribunal Federal (STF) já firmou entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil têm natureza supralegal. Para a turma, a condenação por desacato, baseada em lei federal, é incompatível com o tratado do qual o Brasil é signatário. Parecer - Para o subprocurador-geral da República Nívio de Freitas Filho, autor do parecer do MPF, a Comissão Americana de Direitos Humanos já se pronunciou sobre o assunto, no sentido de que a criminalização de tal conduta contraria a liberdade pessoal e a de pensamento e expressão. Conforme o subprocurador-geral, a “Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão” da CIDH estabelece o mesmo tratamento para funcionários públicos e a sociedade. “Mesmo com as reiteradas manifestações da CIDH, permanece em vigor no Código Penal o crime de desacato que, para este órgão ministerial, configura omissão legislativa”, ressaltou. A lei de desacato também visa silenciar ideias e opiniões impopulares, inibir as críticas e reprimir o direito ao debate crítico, ponderou Nívio de Freitas. Destacou, ainda, que tal norma confere maior proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos comuns, permitindo que possam praticar abuso de seus poderes coercitivos. Além disso, o subprocurador-geral ressaltou que já há no STF o entendimento de que tratados internacionais ratificados pelo Brasil e incorporados ao direito interno tem natureza supralegal (RE nº 466.343). “Se alguma norma de direito interno colide com as previsões da Convenção para restringir a eficácia e o gozo dos direitos e liberdade nela estabelecidos, as regras de interpretação aplicáveis demandam a prevalência da norma do tratado e não a da legislação interna”, concluiu.[1] (Grifos nossos).

Com efeito, resta evidente o acerto da decisão acima transcrita do Superior Tribunal de Justiça, porquanto a conduta tipificada no art. 331 do Código Penal não pode subsistir como crime em um Estado Democrático de Direito, inclusive nos termos do artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

É bem verdade que a doutrina se debate a respeito da posição hierárquica que ocupam as normas advindas de tratado internacional. Parte dela entende que caso a norma internacional trate de garantia individual, terá ela status constitucional, até por força do § 2º., do art. 5º., da CF/88, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

Fábio Comparato, por exemplo, informa que “a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de expressarem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. (...) Seja como for, vai-se afirmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflitos entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico[2]: é o chamado princípio da prevalência da norma mais favorável.[3]

Hoje, com a Emenda Constitucional 45, temos uma disposição constitucional, contida no art. 5º., 3º., da Constituição Federal, segundo a qual “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” Caso não passem pelo procedimento do art. 5º., § 3º., da Constituição Federal, os Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos ingressam no nosso ordenamento jurídico como normas supralegais.

Destarte, deve prevalecer o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), descriminalizando, assim, a conduta tipificada como crime de desacato a autoridade.

A propósito, transcrevemos trecho da decisão do Magistrado Alexandre Morais da Rosa, no julgamento dos autos nº. 0067370-64.2012.8.24.0023, da comarca da Capital de Santa Catarina – Florianópolis -, no qual efetuou controle de convencionalidade e reconheceu a inexistência do crime de desacato em ambiente democrático:

Isso posto, importa destacar, de início, que o controle de compatibilidade das leis não se trata de mera faculdade conferida ao julgador singular, mas sim de uma incumbência, considerado o princípio da supremacia da Constituição (http://www.conjur.com.br/2015-jan-02/limite-penal-temas-voce-saber-processo-penal-2015). Cabe ainda frisar que, no exercício de tal controle, deve o julgador tomar como parâmetro superior do juízo de compatibilidade vertical não só a Constituição da República (no que diz respeito, propriamente, ao controle de constitucionalidade difuso), mas também os diversos diplomas internacionais, notadamente no campo dos Direitos Humanos, subscritos pelo Brasil, os quais, por força do que dispõe o art. 5º, §§ 2º e 3º, da Constituição da República, moldam o conceito de “bloco de constitucionalidade” (parâmetro superior para o denominado controle de convencionalidade das disposições infraconstitucionais). Nesse sentido, como bem anota Flavia Piovesan: O Direito Internacional dos Direitos Humanos pode reforçar a imperatividade de direitos constitucionalmente garantidos – quando os instrumentos internacionais complementam dispositivos nacionais ou quando estes reproduzem preceitos enunciados na ordem internacional – ou ainda estender o elenco dos direitos constitucionalmente garantidos – quando os instrumentos internacionais adicionam direitos não previstos pela ordem jurídica interna. No que concerne especificamente ao chamado controle de convencionalidade das leis, inarredável a menção ao julgamento do Recurso Extraordinário 466.343, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, no qual ficou estabelecido o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito à hierarquia das normas jurídicas no direito brasileiro. Assentou o STF que os tratados internacionais que versem sobre matéria relacionada a Direitos Humanos têm natureza infraconstitucional e supralegal – à exceção dos tratados aprovados em dois turnos de votação por três quintos dos membros de cada uma das casas do Congresso Nacional, os quais, a teor do art. 5º, §3º, CR, os quais possuem natureza constitucional. (...) Por conseguinte, cumpre ao julgador afastar a aplicação de normas jurídicas de caráter legal que contrariem tratados internacionais versando sobre Direitos Humanos, destacando-se, em especial, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (PIDESC), bem como as orientações expedidas pelos denominados “treaty bodies” – Comissão Internamericana de Direitos Humanos e Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, dentre outros – e a jurisprudência das instâncias judiciárias internacionais de âmbito americano e global – Corte Interamericana de Direitos Humanos e Tribunal Internacional de Justiça da Organização das Nações Unidas, respectivamente. Nesse sentido, destaque-se que no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi aprovada, no ano 2000, a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, tendo tal documento como uma de suas finalidades a de contribuir para a definição da abrangência do garantia da liberdade de expressão assegurada no art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos. E, dentre os princípios consagrados na declaração, estabeleceu-se, em seu item “11”, que “as leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos, geralmente conhecidas como ‘leis de desacato‘, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.” Considerada, portanto, a prevalência do art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos sobre os dispositivos do Código Penal, é inarredável a conclusão de Galvão de que “a condenação de alguém pelo Poder Judiciário brasileiro pelo crime de desacato viola o artigo 13 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, consoante a interpretação que lhe deu a Comissão Interamericana de Direitos Humanos”. Em que pese reconhecer-se a inexistência, a priori, de caráter vinculante na interpretação do tratado operada pela referida instituição internacional, filio-me ao entendimento apresentado, considerando, antes de tudo, os princípios da fragmentariedade e da interferência mínima, os quais impõem que as condutas de que deve dar conta o Direito Penal são essencialmente aquelas que violam bens jurídicos fundamentais, que não possam ser adequadamente protegidos por outro ramo do Direito. Nesse prisma, tenho que a manifestação pública de desapreço proferida por particular, perante agente no exercício da atividade Administrativa, por mais infundada ou indecorosa que seja, certamente não se consubstancia em ato cuja lesividade seja da alçada da tutela penal. Trata-se de previsão jurídica nitidamente autoritária – principalmente em se considerando que, em um primeiro momento, caberá à própria autoridade ofendida (ou pretensamente ofendida) definir o limiar entre a crítica responsável e respeitosa ao exercício atividade administrativa e a crítica que ofende à dignidade da função pública, a qual deve ser criminalizada. A experiência bem demonstra que, na dúvida quanto ao teor da manifestação (ou mesmo na certeza quanto à sua lidimidade), a tendência é de que se conclua que o particular esteja desrespeitando o agente público – e ninguém olvida que esta situação, reiterada no cotidiano social, representa infração à garantia constitucional da liberdade de expressão. É certo que, paulatinamente, o entendimento emanado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos deverá repercutir na jurisprudência interna dos Estados americanos signatários do Pacto de São José da Costa Rica – sobretudo em Estados que, como o Brasil, são também signatários da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, cujo art. 27 prescreve que “uma Parte não pode invocar as disposições do seu direito interno para justificar o descumprimento de um tratado.” A título de exemplo, destaco que, precisamente pelos fundamentos alinhavados pela Comissão, a Suprema Corte de Justiça do Estado de Honduras, em 19 de maio de 2005, e a Corte de Constitucionalidade da República de Guatemala, em 1º de Fevereiro de 2006, julgaram inconstitucionais os tipos penais dos respectivos ordenamentos jurídicos correlatos ao crime de desacato previsto na legislação brasileira. (...) Por fim, cabe mencionar que a comissão de juristas brasileiros responsável pela elaboração do anteprojeto do Novo Código Penal deliberou, por maioria de votos, em sessão havida em 07 de maio de 2012, por sugerir a revogação do crime de desacato da legislação penal brasileira, ante a sua incompatibilidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos.”.[4] (Grifos nossos).

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Ante o exposto, pugnamos pela absolvição do apelante. 

Por fim, prequestionamos, para efeito de recurso especial, o art. 331 do Código Penal.

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Salvador, 27 de janeiro de 2017.

RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA

Procurador de Justiça


Notas e Referências:

[1] http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/stj-segue-entendimento-do-mpf-e-decide-que-desacato-nao-e-crime. Acesso em 27 de janeiro de 2017.

[2] Apud Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91.

[3] Este princípio, perseguido pelo direito internacional geral, e vigorosamente defendido por setores da doutrina brasileira, parece não haver ganho, até o presente, expressiva concreção na jurisprudência brasileira, devendo ser lembrada a questão do depositário infiel.”  (Bahia, Saulo José Casali, Tratados Internacionais no Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 116).

[4] http://emporiododireito.com.br/desacato-nao-e-crime-diz-juiz-em-controle-de-convencionalidade/. Acesso em 27 de janeiro de 2017.


Rômulo de Andrade Moreira. Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.


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