A revisão de contratos bancários em tempos de coronavírus e o PL 1.179/20

15/04/2020

A crise decorrente da pandemia causada pelo coronavírus (covid-19) já é sentida por toda sociedade. Os números são alarmantes! Tanto que para se ter ideia, a Organização Mundial do Comércio (OMC) estima que a retração do comércio global ficará entre 13 e 32% em 2020.[1]

A nível nacional o governo tem trabalhado para tentar minimizar esses impactos. Diariamente são editadas diversos tipos de normas que objetivam reduzir o risco da propagação desenfreada do vírus e ao mesmo tempo garantir a manutenção de empregos e da renda da população, como meio de minimamente proteger a economia.

Tais medidas, ainda que bem-vindas, nem de longe resolvem o problema de milhões de empresas que tiveram grande parte de seu faturamento comprometido pelas medidas restritivas impostas pelo Estado.

Em São Paulo, por exemplo, cita-se o Decreto nº 64.881, de 22 de março de 2020, que determinou a restrição de atividades diversas, como (i) o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, especialmente em casas noturnas, “shopping centers”, galerias e estabelecimentos congêneres, academias e centros de ginástica, ressalvadas as atividades internas; e (ii) o consumo local em bares, restaurantes, padarias e supermercados, sem prejuízo dos serviços de entrega (“delivery”) e “drive thru”.

Com efeito, imaginemos que uma empresa XPTO do ramo alimentício tenha contratado com um banco o empréstimo de determinada linha de capital de giro ou financiado a compra de máquinas e equipamentos para aumentar sua produção. Suponhamos que diante da expectativa de crescimento do faturamento para o ano, ajustou ela na oportunidade dada taxa de juros e o pagamento do crédito tomado em algumas parcelas. Dentro deste cenário imaginemos que essa empresa estava cumprindo com as suas obrigações até que foi surpreendida com a notícia de que um fato imprevisível faria com que ela tivesse que fechar as portas do seu estabelecimento por alguns dias (ou meses)...

Como era de se esperar, a fim de superar esse momento difícil, referida empresa reduziu suas despesas adequando-se a nova realidade e passou a fornecer seus produtos através de serviços de entrega (vez que possível). Não bastasse, fez campanha de marketing para divulgar promoções via redes sociais e aplicativos. Contudo, ainda que com muito esforço, nenhuma dessas medidas fizera com que ela garantisse o faturamento projetado para o mês e está à beira de um colapso financeiro.

Sem conseguir vender ou com o faturamento aquém do projetado a solução primária que se deve buscar, sem dúvida, é a negociação. Ocorre que quando tal medida não se mostra suficiente e os sócios não têm capital próprio para cobrir o prejuízo, ou a empresa busca no mercado novos recursos para cobrir todas as despesas financeiras assumidas ou terá que selecionar as contas que serão pagas, protelando o pagamento de outras. Não existe mágica!

O problema é que o não cumprimento da obrigação de pagar em seus exatos termos gera consequências diversas. O Código Civil estabelece que “responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.” (CC, art. 389). O vencimento antecipado da dívida, o protesto do título, a inscrição do nome da empresa e de seus sócios (normalmente avalistas) em cadastros de restrições ao crédito, a cobrança judicial com excussão das garantias prestadas etc. são consequências normalmente fixadas nos contratos.

Situação posta (ainda que temerária, porém, realista), o presente artigo procurará expor quais os mecanismos jurídicos podem ser utilizados para minimizar esses prováveis eventos, notadamente quando a relação discutida envolve contratos bancários cuja prestação se tornou excessivamente onerosa em razão dos efeitos da pandemia.

E aqui fica um alerta: Dúvida não há de que contratos precisam ser preservados para segurança de jurídica e do mercado, naturalmente. Incontestável igualmente como o sistema jurídico deve garantir instrumentos para inibir comportamentos oportunistas, bem como mitigar conflitos. Tais premissas, contudo, entendemos que não afastam a problemática do desequilíbrio funcional gerado pela mudança de uma circunstância externa, ainda mais quando imprevisível como a presente.

Pois bem. Tendo como norte os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória (pacta sunt servanda), a quebra ou revisão de um contrato somente poderá ocorrer quando demonstrado algum vício capaz de invalidar o ato, quando identificada que a liberdade de contratar foi exercida fora dos limites da função social e da boa-fé, ou em virtude de acontecimentos supervenientes à celebração do instrumento, excepcionais e imprevisíveis que acabam por onerar demasiadamente uma das partes em detrimento da outra.

Visando fortalecer esse racional em recente alteração o Código Civil fixou que “Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (III) a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. (CC, art. 421-A).”.

Ainda segundo o Código Civil, referidas situações excepcionais e limitadas poderiam ser aquelas enquadradas em seu art. 393, in verbis:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. (sem grifo no original)

Como antecipado, a legislação civil também consagra hipótese de revisão ou mesmo de resolução de contratos quando em virtude de fatos extraordinários ou imprevisíveis o cumprimento da prestação de uma das partes do contrato se torna excessivamente onerosa. Senão observe:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Da leitura dos artigos em questão tem-se que à luz do Código Civil, pautado pelo mantra do voluntarismo, a revisão de um contrato poderá ter como fundamento a onerosidade excessiva quando, cumulativamente:

A relação envolver contratos de execução continuada e de trato sucessivo ou de execução diferida;

Presentes fatos supervenientes à formação do contrato, extraordinários e imprevisíveis;

Rompido o sinalagma com onerosidade excessiva para uma parte (entendemos não ser necessário que a outra parte tenha extrema vantagem para sua aplicação);

A parte lesada não encontrar-se em mora no momento do pedido; e

A obrigação não estar adimplida.

Por outro lado, diferentemente do Código Civil, que pressupõe um equilíbrio de forças entre as partes (paridade) e a racionalização das vantagens e desvantagens do contrato, o Código de Defesa do Consumidor consagrou a ideia de onerosidade excessiva de forma objetiva. Nele a ocorrência de fatos extraordinários ou imprevisíveis não são condição para que, verificada a onerosidade, a contrato seja revisto.[2]

Basta observar que o microssistema do CDC em seu artigo 6º, inciso V dispõe que “São direitos básicos do consumidor: (v) a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;”.

Neste contexto a conclusão que se chega é que para a revisão de contratos bancários, cuja relação é igualmente regida pelo CDC[3], bastaria, em tese, a parte lesada demonstrar que a excessiva onerosidade por ela suportada decorreu de fatos supervenientes a celebração (nexo de causalidade), ainda que não extraordinários ou imprevisíveis.

A ideia de revisitar contratos em virtude da alteração das circunstâncias em momento posterior à sua celebração denota da época romana, na antiga cláusula rebus sic stantibus, que “ [...] seria uma cláusula implícita a todo contrato de longa duração e que condicionaria o seu cumprimento à permanência do estado de fato à época da formação do vínculo entre as partes. Assim, se esse estado se alterasse, o contratante prejudicado poderia se ver desvinculado de sua obrigação, cunhando-se a então famosa expressão “contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur”.”[4]

No Brasil há longa data referida cláusula inclusive veio a ser aplicada para distribuir os prejuízos  decorrentes da elevação do dólar-americano nos contratos de arrendamento mercantil (leasing).[5]

Hoje, após quase duas décadas da referida e questionável solução encontrada pelo Superior Tribunal de Justiça a sociedade brasileira se depara com novo evento extraordinário e imprevisível, mas dessa vez de proporções ainda maiores do que a variação cambial, cujos danos o Projeto de Lei 1.179/2020[6], de autoria do Senador Antônio Anastasia, aprovado pelo Senado e que aguarda a aprovação pela Câmara dos Deputados, pretende minimizar ao dispor acerca de um regime jurídico emergencial e transitório no direito privado no período da Pandemia do coronavírus (covid-19).

No que tange às relações bancárias referido projeto apenas refletiu o entendimento já consolidado no STJ no âmbito das relações civis no sentido de que não se considerará fatos imprevisíveis eventual aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário para fins dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil (art. 7º), mantendo a ótica de proteção dos interesses do sistema financeiro.

De todo modo, caso sejam mantidas as regras de revisão contratual previstas no CDC, conforme prevê a redação do §1º do referido art. 7º, uma vez aplicável referido microssistema às relações bancárias, na ocorrência de excessiva onerosidade da prestação e uma vez demonstrado pela parte lesada que tal fato resulta dos efeitos da pandemia, caso a solução negocial não seja atingida, acreditamos que o instrumento da ação revisional continuará sendo o remédio apto e necessário para garantir o equilíbrio econômico do contrato.

Agora é monitorar a forma como o Poder Judiciário irá responder aos anseios de milhões de empresas que estão à beira do abismo e continuar trabalhando incessantemente para que esse direito não seja tolhido em benefício exclusivo das grandes instituições financeiras.

 

 

Notas e Referências

[1] Disponível em: https://exame.abril.com.br/mundo/tombo-no-comercio-global-deve-ser-entre-13-e-32-em-2020-projeta-omc/. Consultado em 12.04.2020.

[2] Nas lições de Lucia Ancona Lopes de Magalhães Dias, “Extraordinário é o fato externo ao contrato e não imputável à conduta da parte que invoca a onerosidade excessiva. É o fato anormal que produz um sobressalto no curso habitual das coisas. Por seu turno, define-se como imprevisível todo aquele acontecimento incogitável pelas partes no momento da celebração do negócio, uma vez que, se dele tivessem condições de prever, não teriam celebrado o negócio ou o teriam celebrado de forma diversa.”. Contratos empresariais : fundamentos e princípios dos contratos empresariais. Wanderley Fernandes, coordenador. – 2 . ed. – São Paulo : Saraiva, 2012, p. 406.

[3] STJ, Súmula 297. “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.”.

[4] DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Op. cit. p. 388.

[5] “Revisão de contrato. Arrendamento mercantil (leasing). Valor residual. Descaracterização. Relação de consumo. Taxa de juros. Fundamento inatacado. Indexação em moeda estrangeira (dólar norte-americano). Crise cambial de janeiro de 1999. Plano Real. Aplicabilidade do art. 6.º, V, do CDC. Onerosidade excessiva caracterizada. Boa-fé objetiva do consumidor e direito de informação. Necessidade de prova da captação de recurso financeiro proveniente do exterior. A cobrança antecipada do valor residual implica a descaracterização do contrato de arrendamento mercantil. Aplicam-se as disposições do CDC aos contratos de arrendamento mercantil. É inadmissível o recurso especial, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles. Descaracterizado o contrato de arrendamento mercantil, não se aplica a autorização excepcional prevista no art. 6.º da Lei 8.880/1994, e indevido se mostra o reajuste das prestações pela variação cambial de moeda estrangeira. O preceito insculpido no inc. V do art. 6.º do CDC dispensa a prova do caráter imprevisível do fato superveniente, bastando a demonstração objetiva da excessiva onerosidade advinda para o consumidor. A desvalorização da moeda nacional frente à moeda estrangeira que serviu de parâmetro ao reajuste contratual, por ocasião da crise cambial de janeiro de 1999, apresentou grau expressivo de oscilação, a ponto de caracterizar a onerosidade excessiva que impede o devedor de solver as obrigações pactuadas. A equação econômico-financeira deixa de ser respeitada quando o valor da parcela mensal sofre um reajuste que não é acompanhado pela correspondente valorização do bem da vida no mercado, havendo quebra da paridade contratual, à medida que apenas a instituição financeira está assegurada quanto aos riscos da variação cambial, pela prestação do consumidor indexada em dólar norte-americano. É ilegal a transferência de risco da atividade financeira, no mercado de capitais, próprio das instituições de crédito, ao consumidor, ainda mais que não observado o seu direito de informação (arts. 6.º, III, 31, 51, XV, 52, 54, § 3.º, do CDC). Incumbe à arrendadora desincumbir-se do ônus da prova de captação específica de recursos provenientes de empréstimo em moeda estrangeira, quando impugnada a validade da cláusula de correção pela variação cambial. Esta prova deve acompanhar a contestação (arts. 297 e 396 do CPC), uma vez que os negócios jurídicos entre a instituição financeira e o banco estrangeiro são alheios ao consumidor, que não possui meios de averiguar as operações mercantis daquela, sob pena de violar o art. 6.º da Lei 8.880/1994” (STJ, 3.ª T., REsp 361.694/RS, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 26.02.2002, DJ 25.03.2002).

[6] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1880267&filename=PL+1179/2020. Consultado em 14.04.2020.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Scales of Justice - Frankfurt Version // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações

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