A mutação genética dos juros e atualização monetária feita pelo STF no julgamento unificado das ADC 58, ADC 59, ADI 5.867 e ADI 6.021     

28/11/2021

Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou de forma unificada as ações ADC 58[1], ADC 59[2], ADI 5.867[3] e ADI 6.021[4], em controle concentrado de constitucionalidade, tendo decidido pela não aplicabilidade da Taxa Referencial (TR) como índice de correção monetária dos créditos judiciais trabalhistas, visto que a atualização monetária incidente sobre obrigações expressas em pecúnia constitui direito subjetivo do credor e deve refletir a exata recomposição do poder aquisitivo decorrente da inflação do período apurado, sob pena de violar o direito fundamental de propriedade, protegido no artigo 5.º, XXII, da Constituição Federal, a coisa julgada (artigo 5.º, XXXVI), a isonomia (artigo 5.º, caput), o princípio da separação dos Poderes (artigo 2.º) e o postulado da proporcionalidade, além da eficácia e da efetividade do título judicial e da vedação ao enriquecimento ilícito do devedor. O Relator foi o Ministro Gilmar Mendes.

O presente ensaio busca analisar de forma crítica o conteúdo da decisão proferida, com base no exame conceitual de institutos como o índice de correção monetária e a taxa de juros incidentes sobre os créditos oriundos do sistema judicial trabalhista.

Nas ações acima indicadas, os autores insurgem-se contra a utilização da TR por se tratar de índice que impede o restabelecimento do direito à recomposição integral do crédito reconhecido pela sentença transitada em julgado. Portanto, a TR criada pela Medida Provisória (MP) n.º 294, com a finalidade de prefixar a taxa nominal de juros, sem refletir a inflação, para remunerar as aplicações financeiras, foi utilizada equivocadamente como índice de correção monetária, que necessariamente não representa e muito menos acompanha os índices inflacionários econômicos, pelas simples razão de que a TR representa a taxa média de juros, que é um dos fatores de remuneração do capital financeiro e não um índice de recomposição de perda do poder aquisitivo da moeda. Por outras palavras, a TR tem o intuito de prefixar a taxa nominal de juros, sem refletir a inflação, para remunerar as aplicações financeiras.

Como os créditos oriundos das condenações na Justiça do Trabalho são atualizados em valores muito abaixo da realidade econômica, por não se compreender a perda do poder aquisitivo da moeda, arguiu-se a inconstitucionalidade do artigo 879, § 7.º, da CLT, o qual define que os créditos decorrentes de condenação judicial serão feitos pela Taxa Referencial (TR).

Nesse sentido, verifica-se que a TR, instituída pela MP n.º 294, de 31 de janeiro de 1991, convertida na Lei n.º 8.177, de 1.º de março de 1991, foi criada como medida de política econômica para a desindexação da economia no conhecido Plano Collor II. Considerando o longo transcurso do tempo dos planos econômicos, o Relator chamou a atenção para as judicializações e fez a Corte refletir sobre os riscos de uma constitucionalização de normas do sistema financeiro e direito monetário, especialmente por meio de sua criação jurisprudencial.

Historicamente, com a conversão da Medida Provisória (MP) na Lei n.º 8.177, a TR passou a ser utilizada como fator de correção monetária, adquirindo natureza dúplice (natureza de juros e índice), “ora a caracterizando como indexadora (art. 18), ora como taxa de juros (art. 39)”, chegando-se à conclusão de que a TR não desindexava a economia, apenas alterava o mecanismo de indexação.

O Ministro Relator, analisando a questão, deferiu as medidas cautelares postuladas nas ações, em especial a suspensão nacional de todos os processos envolvendo a matéria, pois já existia cronologicamente (1) uma lei vigente desde 1991 determinando a aplicação da TR, (2) um precedente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) de 2015, afastando a aplicação da TR à Justiça do Trabalho e, (3) desde 2017, a lei da reforma trabalhista incluiu um dispositivo na CLT (art. 879, § 7.º) que determina, literalmente, a aplicação da TR nos créditos trabalhistas.

Com efeito, antes de decidir propriamente a questão, o Ministro Relator traz como pressuposto de sua decisão a jurisprudência do STF acerca da aplicabilidade da TR. Trata-se de precedentes que não guardam, exatamente, relação com a matéria discutida nas ações em julgamento, pois discutem a não aplicabilidade da TR como índice de correção monetária a negócios jurídicos firmados antes da vigência da lei que instituiu a TR por violação do ato jurídico perfeito e por violação da isonomia, nos casos em que a TR é aplicada como índice de correção monetária aos precatórios e às dívidas tributárias. A ofensa à isonomia neste último caso se dá porque se encontra de um lado a Fazenda Pública e de outro o administrado, a Corte verificou a inconstitucionalidade da utilização da TR para correção das dívidas do Estado, uma vez que o mesmo Ente da Federação, na condição de credor, tinha seu crédito corrigido por índices mais vantajosos.

Em apertada análise dos julgados, o Ministro Relator entendeu que os precedentes acerca da TR no STF foram no sentido de declarar sua inconstitucionalidade quando incidir em negócios jurídicos de forma retroativa, isto é, em negócios jurídicos anteriores à promulgação da Lei que instituiu o índice em 1991. Na verdade, verifica-se que a principal incoerência reside nas ofensas aos direitos constitucionais já elencados e especialmente no que se refere à confusão sobre os índices de remuneração de aplicação financeira ou de remuneração de capital com os índices de recomposição da perda do poder aquisitivo da moeda.

Nos primórdios da aplicação dos planos econômicos da década de 90, tal raciocínio até tinha uma certa lógica, pois, com a adoção do Plano Real, não se vislumbrava a possibilidade inflacionária da moeda, ou a perda do seu poder aquisitivo, de tal sorte que os únicos consectários legais para a atualização de créditos seriam os juros e não a correção monetária, que é o índice aplicável ao caso de perda do poder aquisitivo da moeda. Porém, não foi assim que se desenvolveu a história. De fato, houve perda de poder aquisitivo da moeda, e, por via de consequência, surgiu a necessidade de recomposição de tal perda, o que tornou a aplicação da TR um estado de coisa inconstitucional.

Considerando suas próprias conclusões, o Ministro ressalta que o presente julgado é uma oportunidade para que o STF (i) saiba se a TR como índice de correção monetária na Justiça Trabalhista é constitucional e, em se entendendo pela inconstitucionalidade, (ii) saiba o que se deve colocar no lugar da TR.

Após todas essas premissas, a proposta de voto acolhida pelo STF – o relator, mesmo entendendo de modo diferente, curvou-se à colegialidade – foi no sentido de declarar a inconstitucionalidade da expressão “Taxa Referencial”, contida no § 7.º do artigo 879 da CLT, sinalizando a impossibilidade de utilização da TR como índice de correção monetária e reconhecendo o entendimento da Corte nesse sentido.  

O Ministro Relator utilizou, ainda, as razões presentes na ADI 493, especificamente quanto ao voto do Ministro Moreira Alves, no qual se elucidou que o artigo 1.º da Lei n.º 8.177/1991 alude ao fato de a composição do valor da TR mostrar que ela não tem correlação com a correção monetária, pois é calculada de forma totalmente divergente dos outros índices de correção.

Como já dito, a decisão foi proferida com base no entendimento da maioria da Corte, tendo o Ministro Relator afirmado, repetidamente durante o voto, que não havia enfrentado de per se a questão da inconstitucionalidade da TR.

Muito embora a decisão tenha se baseado em jurisprudência distante da matéria tratada nas ações em controle concentrado, verifica-se claramente, como já dito, que existem contradições no conteúdo do julgado, em especial a confusão conceitual relacionada ao que é índice de correção monetária e taxação de juros. Tal confusão deveu-se à utilização da TR como índice de atualização de créditos, como determinavam os artigos 879, § 7.º, e 899, § 4.º, da CLT, uma vez que tal índice não possui caráter de correção, razão pela qual haveria um prejuízo ao credor trabalhista.

Com efeito, a decisão tomada pelo STF propôs a seguinte medida substitutiva da TR para a atualização de débitos trabalhistas: a utilização (1) do IPCA-E na fase pré-judicial e (2) da taxa SELIC na fase judicial. Tal substituição acaba por repetir o mesmo equívoco cometido nos dispositivos legais questionados e na própria razão de decidir da ADC 58, aumentando ainda mais as confusões existentes entre juros e correção monetária e o prejuízo na atualização dos débitos trabalhistas.

De fato, o cálculo da correção monetária pelo IPCA-E a partir da data de constituição da obrigação até a data do ajuizamento da ação processual, representa que o débito trabalhista não será corrigido monetariamente após o ajuizamento da ação e que, na fase pré-judicial, tal débito não será atualizado com o cômputo de juros. Seguindo esse raciocínio, o prejuízo do credor trabalhista continua a ocorrer na fase processual, pois o valor só será atualizado computando os juros sem compreender a correção monetária, de tal forma que o trabalhador terá seu crédito corrigido monetariamente até a propositura da ação, os juros iniciando apenas após a judicialização.

Por outras palavras, só a partir da citação, haverá a incidência de taxação de juros, uma vez que a Selic, ao contrário do que foi exposto pelo Ministro Relator, somente se refere à taxação de juros, assim como a TR, e não possui natureza de correção monetária por não recompor o poder aquisitivo da moeda.

Nesse ponto, impende mencionar que a Selic não possui natureza de índice de correção monetária, pois o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, para fixar a Selic, nunca se valeu da verdadeira e ocorrida inflação ou da eventual deflação ocorrida; ao contrário, valeu-se de projeção de inflação para o futuro, mas a preocupação é apenas com o que se refere à taxa de juros[5].

A correção monetária recompõe a perda da moeda, portanto, é recomposição da perda do poder aquisitivo da moeda já ocorrida, enquanto os juros remuneram o capital ou, no caso em discussão, o credor trabalhista.

Diante do exposto, por se tratar de conceitos atinentes à seara econômica, conclui-se que a maior incoerência da decisão reside no enriquecimento sem causa, isto é, tanto a TR quanto a Selic não são índices de correção monetária, assim como o IPCA-E não é taxa de juros. Portanto, os créditos trabalhistas permanecerão sem a correção monetária no curso do processo judicial, o que acaba por favorecer o devedor trabalhista.

Trata-se, notadamente, de uma decisão teratológica, pois o STF, muito embora tenha criticado a jurisprudência do TST – que desde 2015 já havia declarado a inconstitucionalidade da TR, para fins de correção monetária, definindo o IPCA-E para tal fim –, condicionou os créditos trabalhistas a uma situação mais desfavorável do que já havia decidido o TST. Com efeito, a determinação da Selic não ensejará a correção monetária, pois trata-se de taxação de juros, nem a determinação do IPCA-E ensejará juros.

Caso o STF tivesse a intenção de julgar de forma distinta e inovadora ao que tem sido decidido na Corte, conforme se propôs, o correto seria definir um índice para a correção monetária e uma taxa de juros para a remuneração do capital, mesmo com base nos precedentes do próprio STF.

Observa-se que há incoerência no conteúdo decisório, pois os problemas relacionados à TR como índice de correção monetária para atualização dos créditos trabalhistas e a não incidência de juros na fase pré-processual trazem prejuízo ao trabalhador, porque a TR não reflete a perda de poder aquisitivo da moeda e o IPCA-E não remunera o crédito trabalhista, conduzindo ao enriquecimento sem causa.

Diante do exposto, conclui-se que, em razão da confusão conceitual do STF referente à utilização da taxa Selic como índice de correção monetária – que, na realidade, é taxação de juros –, os créditos trabalhistas vão voltar ao mesmo status quo ante, ou seja, vão ser deixados sem atualização monetária, conduzindo ao enriquecimento sem causa do devedor trabalhista e, por via de consequência, violando a Constituição e os direitos fundamentais no que se refere ao direito de propriedade, protegido no artigo 5.º, XXII, a coisa julgada (artigo 5.º, XXXVI), a isonomia (artigo 5.º, caput), o princípio da separação dos Poderes (artigo 2.º) e o postulado da proporcionalidade.

 

Notas e Referências

[1] A ADC 58 tem como objeto a declaração da constitucionalidade do artigo 39, caput e § 1.º, da Lei n.º 8.177 (Lei da Taxa Referencial) na parte em que regulamenta a incidência da “TRD acumulada no período compreendido entre a data de vencimento da obrigação e o seu efetivo pagamento”. Sob os mesmos fundamentos, questiona o artigo 879, § 7.º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) na parte em que prescreve que “a atualização dos créditos decorrentes de condenação judicial será feita pela Taxa Referencial (TR), divulgada pelo Banco Central do Brasil, conforme a Lei n.º 8177, de 1.º de março de 1991. (Incluído pela Lei n.º 13.467, de 2017)”, e o artigo 899, § 4.º, também da CLT quando regulamenta “o depósito recursal será feito em conta vinculada ao juízo e corrigido com os mesmos índices da poupança”.

[2] A ADC 59 questiona a constitucionalidade dos artigos 879, § 7.º, e 899, § 4.º, da CLT.

[3] Na ADI 5.867, busca-se declarar a inconstitucionalidade do artigo 899, § 4.º, da CLT, especificamente da expressão “com os mesmos índices da poupança”.

[4] Na ADI 6.021, busca-se declarar a inconstitucionalidade do artigo 879, § 7.º, da CLT, em especial da expressão “pela taxa referencial”, assim como do caput do artigo 39 da Lei n.º 8.177/1991.

[5] MEIRELES, Edilton. O uso da taxa Selic como índice de correção monetária é um equívoco a ser reparado. Consultor Jurídico, 6 jan. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-06/edilton-meireles-uso-taxa-selic-correcao-monetaria#:~:text=Observe%2Dse%20que%20o%20pr%C3%B3prio,%2C4%25%20para%202022%22. Acesso em: 15 mar. 2021.

 

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