A COMPETÊNCIA FUNCIONAL E A REVISÃO DA PRISÃO PREVENTIVA A CADA NOVENTA DIAS

19/10/2020

Após a soltura determinada liminarmente pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello no Habeas Corpus nº 191.836/SP, posteriormente revogada pelo Ministro presidente Luiz Fux em decisão confirmada pelo plenário da corte (9X1), algumas questões jurídicas acerca da aplicabilidade do artigo 316 do Código de Processo Penal vieram à baila. Dentre elas, chama a atenção uma referente às regras de competência: havendo sucessivos recursos no âmbito de um processo penal cuja prisão preventiva do réu tenha sido decretada, qual seria o órgão do Poder Judiciário encarregado de realizar, a cada 90 dias, a revisão de ofício da necessidade da manutenção da medida? A propósito, o § único do artigo 316 do CPP[1], com redação dada pela Lei nº 13.964/19 (“pacote anticrime”), diz que “decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.”

É certo que o § único do artigo 316 do CPP enuncia que a autoridade que emitiu a decisão deve realizar a revisão da manutenção da prisão preventiva a cada 90 dias. E, na maioria dos casos, o prolator da decisão que decreta a prisão preventiva é o juiz criminal de primeira instância. Ao que parece, o dispositivo ora discutido foi pensado e redigido para ser direcionado somente ao órgão do Poder Judiciário que proferiu o decreto de prisão, o mesmo que deixa de ter competência para atuar quando, após o término da fase de conhecimento com a prolação da sentença penal condenatória, o processo penal sobe para as instâncias superiores em razão de eventual interposição de recursos como os de apelação, especial e extraordinário. Os legisladores da Lei nº 13.964/19, esta que modificou o artigo 316 do CPP, talvez tenham  “esquecido” que, a partir da subida dos autos em razão da interposição de recurso em face da sentença condenatória, a instância de origem/recorrida deixa de ter competência funcional para atuar no feito.

É certo que cada órgão do Poder Judiciário possui a sua função jurisdicional. Ao juiz criminal cabe a análise em primeiro grau de jurisdição das matérias penais que forem submetidas a sua apreciação. Aos tribunais cabe a reanálise das questões de fato e de direito (tribunais de apelação) ou somente das questões de direito (STF e tribunais superiores) quando da análise dos sucessivos recursos interpostos pelas partes. Como se nota, cada órgão do Judiciário possui a sua competência funcional. A competência funcional hierárquica, de natureza absoluta, não preclui, não prorroga, pode ser conhecida de ofício pelo órgão judiciário e/ou alegada a qualquer tempo e grau de jurisdição e, caso desrespeitada, causa a nulidade insanável dos atos processuais praticados no feito, mormente os decisórios.

Nestes termos, não há como o juiz criminal de primeiro grau revisar a necessidade de manutenção da prisão preventiva a cada 90 dias se o feito, em virtude de sucessivos recursos interpostos, estiver nas cortes de apelação, no STJ ou no STF. E a justificativa dessa conclusão é muito simples: o juiz de primeiro grau, com a subida do recurso, torna-se funcionalmente incompetente para atuar no feito, pois exauriu a sua jurisdição com o encerramento da fase de conhecimento do feito por ocasião da prolação da sentença penal condenatória. E essa incompetência é de natureza absoluta. E, por simetria, a mesma conclusão se aplica às demais instâncias do Poder Judiciário à medida que forem interpostos novos recursos para os tribunais superiores e para o Supremo Tribunal Federal.

Há inúmeras inconveniências práticas de uma instância de origem controlar o prazo para o trâmite de um feito que se encontra na instância recursal. Não se imagina aqui um juiz criminal de primeiro grau oficiando a uma câmara criminal de um tribunal de justiça ou a uma turma do STF ou do STJ comunicando que ocorreu o decurso do prazo de 90 dias do § único do artigo 316 do CPP. Isso subverteria a lógica e a hierarquia judiciária. O que é mais importante ressaltar é o fato de que, exaurida a jurisdição da instância recorrida que emitiu o decreto de prisão preventiva, ela se torna absolutamente incompetente para praticar atos no feito, incluindo a revisão da necessidade de manutenção da referida medida cautelar a cada 90 dias.

Diante das regras de competência funcional hierárquica, duas interpretações para o controvertido § único do artigo 316 surgem no horizonte: 1) a primeira, a mais razoável e compatível com as regras de competência estabelecidas na Constituição Federal de 1988 e com a literalidade do artigo 316 do CPP, no sentido de que, proferida a sentença penal condenatória no primeiro grau de jurisdição, cessa a necessidade de reavaliação, a cada 90 dias, da manutenção da prisão, pois o comando do dispositivo é voltado ao “órgão emissor da decisão” da prisão que passa a ser incompetente para atuar no feito com o término da fase cognitiva e a interposição do recurso. Essa é a posição adotada em julgados vazados por turmas do STJ[2] e câmaras criminais de tribunais dos Estados, a exemplo do TJSP[3]. 2) a segunda interpretação possível implica que cada instância do Poder Judiciário, à medida que forem interpostos os recursos, faça a revisão periódica da prisão preventiva, conferindo-se uma interpretação extensiva à expressão “órgão emissor da decisão”, pois o legislador teria dito menos do que queria ou deveria dizer. Nesse sentido está o Enunciado nº 319 da I Jornada de Direito e Processo Penal do CJF[4] e algumas decisões turmárias do STJ[5].

A Associação Nacional dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE[6] emitiu nota no sentido de que “a análise será feita pelo juízo ou tribunal da necessidade da manutenção da prisão preventiva. Nos casos de interposição de recurso há controvérsia se os tribunais devem fazer essa revisão”. A mesma associação ainda manifestou que “encerrada a jurisdição federal em 1º e 2º graus, não há que se falar mais em reavaliação quanto a feitos que tramitam em outras instâncias do Poder judiciário”.

Já a Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB ajuizou no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6582[7] na qual busca que seja conferida interpretação conforme a CF/88 ao artigo 316 do CPP para que a revisão do prazo da prisão  seja imposta somente ao “juiz que tiver decretado a prisão preventiva na fase de investigação e de processamento da ação penal (fase de conhecimento) até o exaurimento de sua jurisdição”, ou seja, até a prolação da sentença”. A mesma ADI ainda requer que seja concedida interpretação conforme a Constituição Federal ao mesmo dispositivo para que, exaurido o prazo de 90 dias, não haja a liberação automática do preso preventivamente, mas tão somente a obrigação de reavaliar a necessidade de manutenção da referida prisão cautelar. Essa é outra importante controvérsia que envolve a aplicação do § único do artigo 316 do CPP que, no entanto, foge ao tema deste artigo.

Em verdade, independentemente da posição que for adotada quanto à revisão da prisão  preventiva (se ela deve ser feita somente até a sentença penal condenatória ou por cada instância do Poder Judiciário onde esteja o feito), uma ilação é inarredável: o juiz criminal de primeiro grau tem competência funcional para realizar a revisão do § único do artigo 316 do CPP somente enquanto o processo estiver em sua instância de atuação. Entender-se o contrário significaria a usurpação da competência dos tribunais, o que não deve ser admitido. Essa é, por exemplo, a posição externada pelo Fórum Nacional de Juízes Criminais – FONAJUC[8].

Como regra, o Poder Judiciário é composto por magistrados sérios e comprometidos com o cumprimento de seus deveres funcionais, incluindo aqui o trâmite dos processos penais que envolvem réus presos. E esses magistrados, em todos os graus de jurisdição, nunca devem perder de vista que as regras de competência estabelecidas pela Constituição Federal devem ser observadas, sob pena de subversão das funções estabelecidas para cada instância do Poder Judiciário.

             

 

Notas e Referências

[1] BRASIL. Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 17 out. 2020.

[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC 569.701/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Ta., DJe 17/06/2020. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/863478145/agravo-regimental-no-habeas-corpus-agrg-no-hc-569701-sp-2020-0077077-2/inteiro-teor-863478344?ref=juris-tabs>. Acesso em 17 out. 2020.   

[3] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Habeas Corpus Criminal 2192176-74.2020.8.26.0000; Relator: Grassi Neto; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Cubatão - 4ª Vara; Data do Julgamento: 19/09/2020; Data de Registro: 19/09/2020. Disponível em: <http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/resultadoCompleta.do;jsessionid=13AA6321F8D78766DB5D69B937EDB2BB.cjsg3>. Acesso em 17 out 2020.

[4] BRASIL. Justiça Federal. Conselho da Justiça Federal – CJF. Enunciados Aprovados na Plenária da I Jornada de Direito e Processo Penal. Data: 14 ago. 2020. Disponível em: <file:///C:/Meus%20Documentos/Downloads/EnunciadosaprovadosnaPlenriaIJDPP.pdf>. Acesso em: 17 de ago. 2020.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC 558.553/PB, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. 5ª Turma, julgado em 28/04/2020, DJe 04/05/2020. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea>. Acesso em 17 out. 2020.   

[6]  AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil. Data da publicação: 13 out. 2020. Disponível em: <https://www.ajufe.org.br/imprensa/notas-publicas/14707-nota-publica-5>. Acesso em: 17 out. 2020.

[7] AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros. Disponível em: <https://www.amb.com.br/wp-content/uploads/2020/10/STF-ADI-CPP316.pdf>. Acesso em: 17 out. 2020.

[8] FONAJUC – Fórum Nacional de Juízes Criminais. Publicado em: 14 out. 2020. Disponível em: <https://www.instagram.com/p/CGVV5yrj_bt/> e <https://www.facebook.com/fonajuc/photos/a.201624013824332/668139663839429/>. Acesso em: 17 out. 2020.

 

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