A justificativa apresentada para a proposição da Emenda Constitucional n. 45, de 2004 (Reforma do Judiciário), tem os seguintes argumentos:
A timidez com que o governo brasileiro vem atendendo à necessidade de modernização de nosso aparelhamento judiciário tem sido, sem dúvida, a causa da crise avassaladora em que há muitos anos se esbate a nossa Justiça. Quase sempre tardia, deixa que esta se embarace na inabilidade e incompetência das partes, e sofre hoje, mais do que nunca, o impacto arbitrário do Poder, representado por seus órgãos de segurança, que não vacilam em usar de prepotência, negligenciando conscientemente todo o elenco dos direitos humanos. Desprovidos de garantias, são poucos, muito poucos os que não cruzam os braços, à espera de que acabe a avalanche.
Ora, a administração da Justiça é problema que a todos interessa. Não basta que o Legislativo elabore as leis e o Executivo as sancione. É preciso que o Judiciário assegure a sua execução em cada caso concreto. A norma jurídica só ganha corpo e produz efeitos quando fielmente aplicada. É através dos julgados que os direitos se tornam incontestáveis e a vontade de seus titulares se apresenta em forma coercitiva. As decisões dos juízes e tribunais são, portanto, a última etapa da vida do Direito. Com propriedade, diz Carlos Medeiros da Silva que, "sem um funcionamento adequado da organização judiciária, o País caminharia para a desordem e a descrença nas suas instituições" (Carlos Medeiros da Silva, in Revista de Direito Administrativo, 114).
O DIAGNÓSTICO DA JUSTIÇA
Afinal, o Supremo Tribunal ofereceu, em junho de 1975, um alentado relatório ao Presidente da República, que qualificou de "diagnóstico".
(...)
O "diagnóstico" assinalou o óbvio: a Justiça brasileira é cara, morosa e eivada de senões que são obstáculos a que os jurisdicionados recebam a prestação que um Estado democrático lhe deve. Tais falhas vieram bem acentuadas em alguns setores; e de maneira mais discreta em outros. Faltou, de maneira geral, uma configuração mais exata da crise; a situação presente decorre da defasagem entre o conservadorismo tão típico das classes jurídicas e o ímpeto desenvolvimentista que se espalhou pelo resto da vida do país desde a revolução de 1964.
Por um desses absurdos inerentes a todo processo revolucionário, o Judiciário foi o único dos poderes do Estado que manteve uma estrutura praticamente inalterada: enquanto o Legislativo e o Executivo foram modificados - e, diga-se de passagem, nem sempre de maneira feliz - o Judiciário foi esquecido. Acusou o reflexo de tais transformações, sem ter colhido seus eventuais benefícios. E permaneceu como fora concebido: para atuar dentro de um esquema menos ambicioso, de uma sociedade estável, onde valessem realmente os precedentes na apreciação dos casos levados à Justiça. A caducidade dos conceitos anteriormente esposados é que urgiu, afinal, o evidente: uma extensa e profunda revisão, para que se possa, de novo, dar a cada um o que é seu.
Não obstante ter sido promulgada a emenda em questão com o objetivo de reduzir a morosidade do Poder Judiciário, todos os relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) demonstram que o número de processos aumentou e a taxa de congestionamento cresceu de maneira exponencial, podendo-se afirmar, sem sombra de dúvidas e sem qualquer oposição, que aquela mudança na Constituição Federal de 1988 (CF/88) não teve o resultado esperado.
Os níveis de congestionamento são tão absurdos que o Relatório Justiça em números, de 2018, comemorou a redução da taxa de 73%, em 2016, para 72%, em 2017.
Ficou registrado, no relatório mencionado, que:
“Em toda a série histórica, a taxa de congestionamento do Poder Judiciário se manteve em patamares elevados, sempre acima de 70%. As variações anuais são sutis e, em 2017, houve redução de um ponto percentual, fato até então nunca observado. Ao longo de oito anos, a taxa de congestionamento variou em apenas 1,5 ponto percentual.”
A grande causa da estagnação dos processos, segundo o próprio CNJ, está associada às ações ajuizadas contra o Poder Público.
O Relatório dos 100 maiores litigantes do Brasil, do CNJ, publicado em março de 2011, listou o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, a União, a “Fazenda Nacional”, alguns Estados e alguns Municípios e as empresas estatais como os maiores atores do judiciário.
Mesmo apresentados esses números e essas informações, não se debate com a devida profundidade o prévio esgotamento da instância administrativa.
Todos os argumentos aqui lançados denotam que a pesquisa empírica tem relevância para diagnóstico de problemas sociais e para a criação de soluções normativas.
A inafastabilidade da jurisdição foi trazida pelo Poder Constituinte Originário no inciso XXXV do art. 5º da CF/88:
“XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”
Todavia, o próprio Poder Constituinte Originário não erigiu a inafastabilidade da jurisdição como princípio absoluto, pois excepcionou a sua plena incidência à Justiça Desportiva ao aduzir, no art. 217 da CF/88, que (jurisdição condicionada):
“(...)
§1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
§2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.”
Outro exemplo que afasta a sua plena incidência é observado no art. 485 do CPC:
Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando:
(...)
VII - acolher a alegação de existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência;
Mais uma hipótese é a trazida pela norma seguinte do §1º do art. 7º da Lei n. 11.417/06:
“Art. 7º Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação.
§1º Contra omissão ou ato da administração pública, o uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas.” (grifo)
Consequentemente, conforme demonstrado pelas normas já transcritas, a criação de outra hipótese de necessidade de esgotamento de instância pelo Poder Constituinte Derivado Reformador não violaria qualquer das cláusulas pétreas trazidas no §4º do art. 60 da CF/88.
Nota-se que a própria Carta Maior fixou um prazo máximo para a demanda desportiva ser julgada extrajudicialmente.
A aplicação da mesma sistemática à esfera da Administração Pública retiraria um grande número de processos relativos às pessoas jurídicas de direito público interno das Cortes brasileiras.
Os legitimados à propositura de Emendas à Constituição, descritos nos incisos I a III do caput do art. 60 da CF/88, poderiam apresentar o seguinte projeto:
“Art. 1º A Constituição passa a vigorar com a seguinte alteração:
Art. 37.
(...)
§9º O Poder Judiciário somente admitirá ações ou qualquer outro tipo de demanda contra as pessoas jurídicas de direito público interno após o esgotamento das instâncias administrativas ou o transcurso do prazo máximo de oitenta dias, contados da instauração do processo ou do procedimento administrativo, para proferir a decisão final, ressalvadas exceções previstas em lei.”
Não se fala aqui em jurisdição administrativa, mas essa possibilidade de se afastar parcialmente a jurisdição já existe na Alemanha. Eis o texto do Código de Jurisdição Administrativa (Verwaltungsgerichtsordnung - VwGO) daquele país:
8. Abschnitt Besondere Vorschriften für Anfechtungs- und Verpflichtungsklagen
§68 – [vorheriges Verfahren]
(1) 1Vor Erhebung der Anfechtungsklage sind Rechtmäßigkeit und Zweckmäßigkeit des Verwaltungsakts in einem Vorverfahren nachzuprüfen. 2Einer solchen Nachprüfung bedarf es nicht, wenn ein Gesetz dies bestimmt oder wenn
- der Verwaltungsakt von einer obersten Bundesbehörde oder von einer obersten Landesbehörde erlassen worden ist, außer wenn ein Gesetz die Nachprüfung vorschreibt, oder
- der Abhilfebescheid oder der Widerspruchsbescheid erstmalig eine Beschwer enthält.
(2) Für die Verpflichtungsklage gilt Absatz 1 entsprechend, wenn der Antrag auf Vornahme des Verwaltungsakts abgelehnt worden ist.
(tradução)
Seção 8 – Disposições especiais da ação de impugnação e da ação de condenação
§68 [Procedimento prévio]
(1) Antes de propor a ação de impugnação, será necessário, em procedimento prévio, o reexame da legalidade e oportunidade do ato administrativo.
Será desnecessário o reexame nos casos previstos em lei e:
- se o ato administrativo for editado por uma autoridade suprema da federação ou de um Land, salvo se o reexame for imposto por lei;
- se a decisão de reexame pela própria autoridade emitente em recurso administrativo ou a decisão de autoridade hierárquica superior nesse mesmo recurso administrativo ocasionarem pela primeira vez um gravame.
(2) Na ação de condenação, a regra do inciso 1 será aplicável aos casos em que for denegado o pedido de edição do ato administrativo[1].
Chega-se à conclusão de que a citada norma teria a potencialidade de desafogar o Poder Judiciário, de trazer mais responsabilidade decisória ao agente público e de efetivar, em prazo razoável, direitos fundamentais dos cidadãos sem afastar a possibilidade de apreciação judicial posterior das demandas. Por opção do titular do poder de emendar a CF/88, o prazo poderia ser inferior ou superior a oitenta dias.
Por fim, agradeço a ajuda dos colegas Vítor Cássio, Heitor Barreto, João Dourado, Rogério Costa, Daniel Carvalho e da colega Wedja Bezerra com a revisão jurídica e ortográfica do texto que foi elaborado com base na liberdade de cátedra estabelecida nos incisos II e III do art. 206 da CF/88 e apenas, e tão somente, no exercício do cargo público de docente.
Notas e Referências
[1] Código de jurisdição administrativa (o modelo alemão) Verwaltungsgerichtsordnung (VwGO) / Ricardo Perllingeiro Mendes da Silva, Hermann-Josef Blanke, Karl-Peter Sommermann (Coord.) – Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 117 e 118/208 e 209.
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