O PRESTÍGIO À INSTÂNCIA ADMINISTRATIVA COMO SOLUÇÃO PARA O JUDICIÁRIO

19/05/2020

A justificativa apresentada para a proposição da Emenda Constitucional n. 45, de 2004 (Reforma do Judiciário), tem os seguintes argumentos:

A timidez com que o governo brasileiro vem atendendo à necessidade de modernização de nosso aparelhamento judiciário tem sido, sem dúvida, a causa da crise avassaladora em que há muitos anos se esbate a nossa Justiça. Quase sempre tardia, deixa que esta se embarace na inabilidade e incompetência das partes, e sofre hoje, mais do que nunca, o impacto arbitrário do Poder, representado por seus órgãos de segurança, que não vacilam em usar de prepotência, negligenciando conscientemente todo o elenco dos direitos humanos. Desprovidos de garantias, são poucos, muito poucos os que não cruzam os braços, à espera de que acabe a avalanche.

Ora, a administração da Justiça é problema que a todos interessa. Não basta que o Legislativo elabore as leis e o Executivo as sancione. É preciso que o Judiciário assegure a sua execução em cada caso concreto. A norma jurídica só ganha corpo e produz efeitos quando fielmente aplicada. É através dos julgados que os direitos se tornam incontestáveis e a vontade de seus titulares se apresenta em forma coercitiva. As decisões dos juízes e tribunais são, portanto, a última etapa da vida do Direito. Com propriedade, diz Carlos Medeiros da Silva que, "sem um funcionamento adequado da organização judiciária, o País caminharia para a desordem e a descrença nas suas instituições" (Carlos Medeiros da Silva, in Revista de Direito Administrativo, 114).

 

O DIAGNÓSTICO DA JUSTIÇA

Afinal, o Supremo Tribunal ofereceu, em junho de 1975, um alentado relatório ao Presidente da República, que qualificou de "diagnóstico". 

(...)

O "diagnóstico" assinalou o óbvio: a Justiça brasileira é cara, morosa e eivada de senões que são obstáculos a que os jurisdicionados recebam a prestação que um Estado democrático lhe deve. Tais falhas vieram bem acentuadas em alguns setores; e de maneira mais discreta em outros. Faltou, de maneira geral, uma configuração mais exata da crise; a situação presente decorre da defasagem entre o conservadorismo tão típico das classes jurídicas e o ímpeto desenvolvimentista que se espalhou pelo resto da vida do país desde a revolução de 1964.

Por um desses absurdos inerentes a todo processo revolucionário, o Judiciário foi o único dos poderes do Estado que manteve uma estrutura praticamente inalterada: enquanto o Legislativo e o Executivo foram modificados - e, diga-se de passagem, nem sempre de maneira feliz - o Judiciário foi esquecido. Acusou o reflexo de tais transformações, sem ter colhido seus eventuais benefícios. E permaneceu como fora concebido: para atuar dentro de um esquema menos ambicioso, de uma sociedade estável, onde valessem realmente os precedentes na apreciação dos casos levados à Justiça. A caducidade dos conceitos anteriormente esposados é que urgiu, afinal, o evidente: uma extensa e profunda revisão, para que se possa, de novo, dar a cada um o que é seu.

Não obstante ter sido promulgada a emenda em questão com o objetivo de reduzir a morosidade do Poder Judiciário, todos os relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) demonstram que o número de processos aumentou e a taxa de congestionamento cresceu de maneira exponencial, podendo-se afirmar, sem sombra de dúvidas e sem qualquer oposição, que aquela mudança na Constituição Federal de 1988 (CF/88) não teve o resultado esperado.

Os níveis de congestionamento são tão absurdos que o Relatório Justiça em números, de 2018, comemorou a redução da taxa de 73%, em 2016, para 72%, em 2017.

Ficou registrado, no relatório mencionado, que:

“Em toda a série histórica, a taxa de congestionamento do Poder Judiciário se manteve em patamares elevados, sempre acima de 70%. As variações anuais são sutis e, em 2017, houve redução de um ponto percentual, fato até então nunca observado. Ao longo de oito anos, a taxa de congestionamento variou em apenas 1,5 ponto percentual.”

A grande causa da estagnação dos processos, segundo o próprio CNJ, está associada às ações ajuizadas contra o Poder Público.

O Relatório dos 100 maiores litigantes do Brasil, do CNJ, publicado em março de 2011, listou o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, a União, a “Fazenda Nacional”, alguns Estados e alguns Municípios e as empresas estatais como os maiores atores do judiciário.

Mesmo apresentados esses números e essas informações, não se debate com a devida profundidade o prévio esgotamento da instância administrativa.

Todos os argumentos aqui lançados denotam que a pesquisa empírica tem relevância para diagnóstico de problemas sociais e para a criação de soluções normativas.

A inafastabilidade da jurisdição foi trazida pelo Poder Constituinte Originário no inciso XXXV do art. 5º da CF/88:

“XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”

Todavia, o próprio Poder Constituinte Originário não erigiu a inafastabilidade da jurisdição como princípio absoluto, pois excepcionou a sua plena incidência à Justiça Desportiva ao aduzir, no art. 217 da CF/88, que (jurisdição condicionada): 

“(...)

§1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.”

Outro exemplo que afasta a sua plena incidência é observado no art. 485 do CPC:

Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando:

(...)

VII - acolher a alegação de existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência;

Mais uma hipótese é a trazida pela norma seguinte do §1º do art. 7º da Lei n. 11.417/06:

“Art. 7º Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação.

§1º Contra omissão ou ato da administração pública, o uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas.” (grifo)

Consequentemente, conforme demonstrado pelas normas já transcritas, a criação de outra hipótese de necessidade de esgotamento de instância pelo Poder Constituinte Derivado Reformador não violaria qualquer das cláusulas pétreas trazidas no §4º do art. 60 da CF/88.

Nota-se que a própria Carta Maior fixou um prazo máximo para a demanda desportiva ser julgada extrajudicialmente.

A aplicação da mesma sistemática à esfera da Administração Pública retiraria um grande número de processos relativos às pessoas jurídicas de direito público interno das Cortes brasileiras.

Os legitimados à propositura de Emendas à Constituição, descritos nos incisos I a III do caput do art. 60 da CF/88, poderiam apresentar o seguinte projeto:

“Art. 1º A Constituição passa a vigorar com a seguinte alteração:

Art. 37.

(...)

§9º O Poder Judiciário somente admitirá ações ou qualquer outro tipo de demanda contra as pessoas jurídicas de direito público interno após o esgotamento das instâncias administrativas ou o transcurso do prazo máximo de oitenta dias, contados da instauração do processo ou do procedimento administrativo, para proferir a decisão final, ressalvadas exceções previstas em lei.”

Não se fala aqui em jurisdição administrativa, mas essa possibilidade de se afastar parcialmente a jurisdição já existe na Alemanha. Eis o texto do Código de Jurisdição Administrativa (Verwaltungsgerichtsordnung - VwGO) daquele país:

8. Abschnitt Besondere Vorschriften für Anfechtungs- und Verpflichtungsklagen

§68 – [vorheriges Verfahren]

(1) 1Vor Erhebung der Anfechtungsklage sind Rechtmäßigkeit und Zweckmäßigkeit des Verwaltungsakts in einem Vorverfahren nachzuprüfen. 2Einer solchen Nachprüfung bedarf es nicht, wenn ein Gesetz dies bestimmt oder wenn

  1. der Verwaltungsakt von einer obersten Bundesbehörde oder von einer obersten Landesbehörde erlassen worden ist, außer wenn ein Gesetz die Nachprüfung vorschreibt, oder
  2. der Abhilfebescheid oder der Widerspruchsbescheid erstmalig eine Beschwer enthält.

(2) Für die Verpflichtungsklage gilt Absatz 1 entsprechend, wenn der Antrag auf Vornahme des Verwaltungsakts abgelehnt worden ist.

(tradução)

Seção 8 – Disposições especiais da ação de impugnação e da ação de condenação

§68 [Procedimento prévio]

(1) Antes de propor a ação de impugnação, será necessário, em procedimento prévio, o reexame da legalidade e oportunidade do ato administrativo.

Será desnecessário o reexame nos casos previstos em lei e:

  1. se o ato administrativo for editado por uma autoridade suprema da federação ou de um Land, salvo se o reexame for imposto por lei;
  2. se a decisão de reexame pela própria autoridade emitente em recurso administrativo ou a decisão de autoridade hierárquica superior nesse mesmo recurso administrativo ocasionarem pela primeira vez um gravame.

(2) Na ação de condenação, a regra do inciso 1 será aplicável aos casos em que for denegado o pedido de edição do ato administrativo[1].

 

Chega-se à conclusão de que a citada norma teria a potencialidade de desafogar o Poder Judiciário, de trazer mais responsabilidade decisória ao agente público e de efetivar, em prazo razoável, direitos fundamentais dos cidadãos sem afastar a possibilidade de apreciação judicial posterior das demandas. Por opção do titular do poder de emendar a CF/88, o prazo poderia ser inferior ou superior a oitenta dias.

Por fim, agradeço a ajuda dos colegas Vítor Cássio, Heitor Barreto, João Dourado, Rogério Costa, Daniel Carvalho e da colega Wedja Bezerra com a revisão jurídica e ortográfica do texto que foi elaborado com base na liberdade de cátedra estabelecida nos incisos II e III do art. 206 da CF/88 e apenas, e tão somente, no exercício do cargo público de docente.

 

Notas e Referências

[1] Código de jurisdição administrativa (o modelo alemão) Verwaltungsgerichtsordnung (VwGO) / Ricardo Perllingeiro Mendes da Silva, Hermann-Josef Blanke, Karl-Peter Sommermann (Coord.) – Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 117 e 118/208 e 209.

 

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