O acúmulo de tarefas, os diversos prazos a serem cumpridos, o assoberbamento dos indivíduos e as novas exigências da modernidade tecnológica e do mundo globalizado podem tornar complexas atividades que em outras oportunidades eram desenvolvidas com maestria pelos profissionais, cada qual em sua seara.
Em que pese a inevitável evolução dos tempos, os profissionais devem se manter responsáveis e atualizados, aprendendo pari passu com as novidades. Por óbvio, isso vale para toda e qualquer área de atividade, admitindo-se, no entanto, que aquelas que lidam diretamente com o ser humano e suas pretensões pessoais mais íntimas, a atenção deve ser redobrada.
Destarte, destaca-se a figura do advogado, o qual presta serviço de caráter público e exerce função social, haja vista ser ele um profissional indispensável à administração da justiça e que tem competência privativa para postular, em nome de outrem, junto ao Poder Judiciário [1].
Só é advogado quem é formalmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), sendo que para tanto ele deve atender a certos requisitos, como ser graduado no curso de Direito, ser aprovação no Exame de Ordem, possuir idoneidade moral e prestar o compromisso perante o seu conselho profissional, conforme segue:
“Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.” [2]
A partir daí, vislumbra-se que o advogado é um profissional que deve carregar consigo a responsabilidade de lidar com os mais variados fatos da vida humana, desde aqueles que exigem formalidades em atendimento a procedimentos burocráticos fixados por entidades privadas, órgãos públicos, repartições, que digam respeito a singelos atos da vida civil, até os processos judiciais mais tormentosos que tratam de infortúnios lamentáveis e, por vezes, irreversíveis para quem é representado por ele.
Essa perspectiva vai ao encontro do compromisso firmado pelo advogado, bem como à exigência da idoneidade moral para exercer a profissão. Para a OAB, a quebra da idoneidade moral ocorre com a condenação criminal pela prática de delito infame [3], entendido como tal aquele que repercute “contra a dignidade da advocacia, atingindo e prejudicando a imagem dos profissionais que se pautam segundo preceitos éticos” [4]. Por essa razão, cabe ao advogado zelar pelos atos que pratica no exercício da profissão, sob pena de responder por eles, dolosa ou culposamente, podendo, inclusive, ser excluído da advocacia [5].
Nessa esteira, encontra-se o crime de apropriação indébita perpetrado por advogado. A apropriação indébita está tipificada no artigo 168 do Código Penal (CP) e prevê o assenhoramento de coisa alheia móvel por quem tenha a sua posse ou detenção. Para a configuração do crime é necessário que o agente e a vítima estejam ligados por uma relação de fato ou jurídica; que o agente detenha a coisa como se sua fosse; que a coisa seja móvel e alheia; e que haja dolo (elemento subjetivo).
A pena cominada é de reclusão de um a quatro anos e multa. No entanto, importa salientar que em se tratando de advogado sujeito ativo, há causa de aumento de pena (majorante) de um terço, em razão da profissão (§1º, III) [6]. Ou seja, o sujeito ativo, assim como o sujeito passivo, pode ser qualquer pessoa, mas se aquele for advogado e a apropriação tiver decorrido da profissão, à pena cominada de um a quatro anos incidirá o aumento de um terço [7].
Tal estabelecimento legal diferenciado tem fundamento no papel social que o advogado ocupa e, mais, na sua importância ímpar para aquele a quem representa, isto porque a relação cliente-advogado é cercada por um dos mais nobres sentimentos do ser vivo, a confiança, que acaba por ser uma facilitadora do crime. Para alguns, aliás, o advogado (à exemplo do médico, do psicólogo e do padre) é considerado um confidente necessário [8].
Assim, o advogado que se apropria de valores entregues por seu cliente para pagar custas processuais ou do numerário alcançado por seu cliente pelo êxito da causa ou um acordo firmado, pratica o crime de apropriação indébita em razão da profissão. “Daí a agravante, que revela a violação de um dever inerente à qualidade do agente e uma justificada confiança do ofendido” [9].
Quanto ao elemento subjetivo do delito (o dolo), faz-se necessário uma breve abordagem acerca do dolo eventual e da culpa consciente. Enquanto nessa o agente assume o risco de produzir o resultado criminoso, mas espera, sinceramente, que ele não ocorra, naquele o risco também é assumido, mas o agente ignora se ocorrerá ou não o resultado (para ele tanto faz). Diante do caso concreto essa discussão técnica pode aparecer e aí sobressairá o melhor argumento jurídico combinado com as provas juntadas aos autos do processo criminal. Doravante, se não for provado o dolo (mesmo que eventual), não há se falar em crime de apropriação indébita.
Além das consequências penais e administrativas (pela OAB), o advogado que se apropria de bem alheio em virtude da profissão, ainda pode responder civilmente por esta prática em razão de enriquecimento ilícito [10]. Nessa esteira, há entendimentos jurisprudenciais no sentido de que é dispensável a prova do prejuízo efetivo (in re ipsa) [11].
O imperioso a ser salientado é que independentemente da atuação do advogado [os que exercem a profissão em grandes escritórios/sociedades de advocacia (as denominadas firmas); os que atuam sozinhos em seu modesto escritório; os que atuam há anos; e os que estão iniciando a carreira] a responsabilidade social e individual para com o seu cliente deve ser o alicerce do profissional, inclusive para fazer valer a seriedade dessa categoria profissional que tanto luta por sua valorização, pela dignidade das pessoas que representa e por uma justiça verdadeiramente eficiente.
[1] Lei nº 8.906/94, que estabelece o Estatuto dos Advogados e a Ordem dos Advogados do Brasil.
[2] Art 20 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB.
[3] §4º do art. 8º da Lei nº 8.906/94.
[4] MARRONI, Fernanda. O que se entende por crime infame? Disponível em: <http://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20110525093213990>. Acesso em: 10/01/2018.
[5] De acordo com a Lei nº 8.906/94: “Art. 34. Constitui infração disciplinar: (...) XXVIII - praticar crime infamante; (...) Art. 38. A exclusão é aplicável nos casos de: (...) II - infrações definidas nos incisos XXVI a XXVIII do art. 34”.
[6] Interessante notar que o legislador denominou de §1º o único parágrafo do artigo em vez de chamá-lo de parágrafo único.
[7] A majorante é aplicada na terceira fase do cálculo da pena. “Art. 68 - A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento”.
[8] COSTA JR, Paulo José da. Curso de Direito Penal. Capítulo VI - Dos crimes contra a liberdade individual, Seção IV – Dos crimes contra a inviolabilidade dos segredos. São Paulo: Saraiva, 2010, obra digital não paginada.
[9] Idem. Capítulo V – Da apropriação indébita, obra digital não paginada.
[10] Art. 668 do Código Civil: “O mandatário é obrigado a dar contas de sua gerência ao mandante, transferindo-lhe as vantagens provenientes do mandato, por qualquer título que seja”.
[11]. Apelação Cível nº 70046337515, 12ª Câmara Cível do TJ/RS, Relator: Dr. Victor Luiz Barcellos Lima.
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