NOVAS PEGADAS NO CAMINHO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: O CASO DO HC 166.891-SP

19/04/2019

Antes de prosseguir nos pontos deste  breve ensaio, gostaríamos de esclarecer ao gentil leitor que na verdade o seu texto se desprende do resultado de reflexões, discussões e posicionamentos com relação ao sistema penal brasileiro, que foram especialmente provocadas logo após a decisão do HC 166.891-SP no Supremo Tribunal Federal, Rel. Min. Gilmar Mendes. Para impetrar esse writ foi procurado um dos autores – o professor Pietro Alarcón -.  

Logo da decisão, nos intervalos das aulas na PUC/SP, surgiram cordiais discussões entre nós no campo constitucional e da filosofia do direito que giravam em torno à aspiração de efetivar ao máximo o postulado da liberdade humana. Para tanto é preciso, em nosso entendimento, contestar as decisões do STF nos casos em que se relativizou a presunção de inocência. Felizmente já há ações protocoladas para essa finalidade com os argumentos e a contundência necessária. Sem embargo, novamente o STF decidiu adiar o julgamento das ADC 43 e 44, o que acelerou a decisão de redigir o presente texto.    

Por isso, a intenção é contribuir ao debate, na atual situação, sobre o futuro imediato e ações nas quais se encontrem envolvidas as liberdades do ser humano. Obviamente, sujeitos aos rigores da crítica.  

 

1. O pano de fundo do debate constitucional -penal

Diz o professor Manuel Iturralde, na sua introdução à obra de D. Garland,  que o crime e o castigo não são simplesmente manifestações jurídicas, senão verdadeiros fenômenos sociais. Com efeito, a forma como uma sociedade concebe o crime e os mecanismos que estabelece para a punição dizem muito mais sobre ela que propriamente sobre seu sistema penal. Por isso, “o crime e o castigo revelam que tipo de sociedade é, como está constituída nas suas esferas política, econômica e cultural; em que acredita; a que teme; que valores e sonhos abraça; que a une e que a separa.” [1]

Nas jovens e acidentadas democracias da América Latina, a configuração do sistema penal é objeto de um intenso debate. No caso do Brasil, se confrontam elementos de um passado pre-constitucional, caracterizado pela violação dos direitos humanos e a ausência de garantias em favor das pessoas submetidas a juízo, com a luta por construir uma cultura constitucional penal de respeito pelos direitos fundamentais, que superem práticas repressivas e inquisitoriais.

Infelizmente, na atual quadra da história, as forças que protagonizam o ascenso de um neoliberalismo econômico que buscam retirar do Estado seus compromissos constitucionais no terreno dos direitos sociais, bem como de um conservadorismo eticamente precário e que defende a intensificação dos controles sobre tudo aquilo que não considere condizente como seus critérios de “normalidade” e “uniformização moral”, pretendem canalizar a percepção manipulada da ineficácia do sistema penal e a demanda cidadã de maior segurança com estratégias através das quais não somente há uma visão de desentendimento da génese social da criminalidade, senão que ademais lançam um pacote que outorga maiores poderes à atividade repressora do Estado.

No marco dessas estratégias, mais estritamente no terreno processual penal, a ideia dos que olham em sentido inverso ao progresso cultural civilizatório é continuar a reduzir as garantias constitucionais das pessoas no processo. Assim, a presunção de inocência ou de não-culpabilidade, regra de direito fundamental segundo a qual, pela dicção literal do art. 5º, LVII, da Constituição Federal (CF), “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, embora de simples leitura, esconde ultimamente no Brasil diversas nuances e interpretações.

 

2. O caso do HC 166.891-SP

A guinada na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal (STF), para determinar o cumprimento provisório de pena privativa de liberdade após mera confirmação de condenação em segundo grau de jurisdição, ratificada no HC 152752 por uma maioria de, no mínimo, difícil compreensão, é uma amostra do retrocesso. O giro punitivista, na contramão dos paradigmas da Constituição, atesta não apenas a modernidade tardia brasileira, senão também a reação política no terreno do crime e do castigo, diante de novos atores sociais e das exigências de cumprimento das promessas de 1988. 

 Falamos de maioria de compreensão difícil porque não está demais lembrar que a Ministra Rosa Weber reconheceu a inconstitucionalidade dessa modalidade de prisão. Entretanto, na oportunidade, negou a ordem para construir a maioria de 6 a 5 em homenagem ao princípio da colegialidade e a uma “razão institucional” que, no seu entendimento, superou sua individualidade como magistrada. De tudo resultou o sacrifício da liberdade humana e, mais ainda, de um dos vértices do Estado democrático fundado na dignidade.    

O debate hoje prossegue e as atenções são centradas em torno do julgamento de duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADC 43 e ADC 44), pautadas incialmente neste ano para o dia 10 de abril, porém, novamente adiadas, esta vez pelo Ministro Presidente Dias Toffoli.

O STF deve decidir, com efeito erga omnes  e vinculante para os demais órgãos do Judiciário e do Executivo, se confirmada continuará no país a constitucionalidade presumida do artigo 283, “caput”, do Código de Processo Penal (CPP), cuja literalidade é a seguinte: “Ninguém poderá ser preso senão (...) em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado (...)”.

Pois bem, com este panorama, resulta importante verificar entendimentos que paulatinamente cobram força com relação ao tema da presunção de inocência no âmbito das recentes decisões do STF. Há algumas aberturas para as quais parece dirigir-se a hermenêutica constitucional. Em especial, chamou a atenção o decidido em sede de medida liminar no Habeas Corpus (HC) nº. 166.891 – SP, sob relatoria do Ministro Gilmar Mendes.

Com efeito, versava o caso sobre determinação de prisão imediata de duas Pacientes pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, após reforma de sentença de desclassificação de crime de tráfico ilícito de entorpecentes para porte de substância ilícita em primeiro grau de jurisdição. Houve indeferimento prévio de HC impetrado perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, portanto, não restava outro remédio para a salvaguarda da liberdade das Pacientes que um novo HC a ser impetrado perante o STF.

As teses do HC eram singelas e claras: (a) perigo imediato de coação ao direito de locomoção das Pacientes, porque (b) decretada inconstitucional prisão antes do julgamento de recursos especial e extraordinário cabíveis, (c) o que tornava a determinação de prisão carente de fundamentação idônea, mesmo porque (d) determinada a prisão provisória de modo automático, sem menção a nenhum elemento específico fático que tornasse necessária a medida restritiva de liberdade. Nessa esteira de raciocínio, portanto, requeremos liminar para obstar o início de um inconstitucional e arbitrário cumprimento provisório de pena de prisão antes do eventual e incerto trânsito em julgado de sentença penal condenatória em desfavor das Pacientes.

A questão mais complexa consistia em que a decisão que se pleiteava do Ministro relator demandava não só o afastamento de Súmula do próprio STF (nº. 691), impeditiva do conhecimento de HC contra decisão provisória denegatória de outro HC e proferida por Corte superior, senão também o afastamento episódico, e com efeito entre as partes, dos precedentes que permitiam o início do cumprimento provisório de pena privativa de liberdade antes do efetivo trânsito em julgado de sentença penal condenatória. E foi o que ocorreu.

Proferida em 13 de março de 2019, a decisão que deferiu a medida liminar no HC nº. 166.891 – SP teve como fundamentos: (a) possibilidade de conhecimento do HC diante da presença de premente necessidade de concessão do provimento cautelar, para evitar flagrante constrangimento ilegal, afastando-se, então, a aplicação do teor da Súmula nº. 691, do STF, e (b) necessidade de relativização da possibilidade de início do cumprimento provisório da pena privativa de liberdade antes do julgamento do recurso especial pelo STJ, pois é nessa jurisdição que ainda se podem corrigir questões relativas a tipicidade, antijuridicidade ou culpabilidade do agente, alcançando inclusive a dosimetria da pena (na esteira de decisões monocráticas já proferidas pelo STF nesse sentido).

A decisão culminou com a concessão da ordem de habeas corpus nos seguintes termos:

Assim, considerando a inexistência de julgamento do recurso especial, além do que consta nos autos, sendo relevante a absolvição das pacientes no juízo a quo (eDOC 5, p. 1-5), entendo que a concessão da ordem do presente writ é medida que se impõe, principalmente, pelo fato de a jurisdição não ter sequer sido iniciada no âmbito do STJ.

A nosso juízo se trata de importante precedente do STF, quanto aos caminhos que seguirá a interpretação do direito fundamental à presunção de inocência.

Ressaltamos isso porque, como expressamos no começo, do que se trata é de alguma maneira ir construindo uma cultura de respeito pelos direitos fundamentais. Não há como esquecer que a presunção de inocência é antítese garantista de regimes de exceção e que no Estado de Direito reclama máxima efetividade.

Além disso, no meio de debate atual colocado no primeiro segmento expositivo, também entendemos ser mendaz a alteração do conteúdo material de norma de direito fundamental pelo Poder Judiciário como forma de certo tipo de resposta aos anseios manifestados por setores da sociedade que, ao sabor dos novos arranjos políticos e econômicos da conjuntura contemporânea, clamam por maior restrição ao sistema de direitos atinentes ao campo penal e processual penal. Diga-se com clareza: escutar a voz das ruas é questão que cabe ao Legislativo e ao Executivo ou a órgão que no regime político democrático cumpra mandato representativo popular. Nem é esse o papel institucional e jurídico que se espera de uma Corte guardiã da Constituição (art. 102, “caput”, CF) nem é essa uma forma de preservação do regime jurídico de um Estado Democrático de Direito (art. 1º, “caput”, CF), que pressupõe a existência e a máxima efetividade da fundamentalidade material dos direitos e garantias expressos na Constituição, muitas vezes com sentido contra-majoritário.

 

3. Em conclusão

Claramente, somos da opinião de que existe inconstitucionalidade absoluta na possibilidade de cumprimento provisório de pena privativa de liberdade, após decisão em segunda instância. Por isso, as respostas que o STF deveria dar à sociedade no julgamento das ADECO 43 e 44 são no sentido de preservar de forma intransigente a máxima efetividade possível da garantia da presunção de inocência. Uma decisão nessa via seria uma moção contundente de repúdio aos concertos ocasionais de opiniões que tendem ao recrudescimento das conquistas civilizatórias que o Brasil alcançou aos 05 de outubro de 1988, depois de muita luta política, muito suor do labor social e, infelizmente, muito sangue.

Contudo, é dever de ofício observar cautelosamente os caminhos que o STF trilha nesta etapa, alguns dos quais tocam o núcleo e a materialidade da garantia da presunção de inocência. Daí a necessidade de refletir sobre decisões como a exarada no âmbito do HC nº. 166.891 – SP, qual seja, a de que se aguarde o esgotamento dos trâmites de julgamento de recurso especial no âmbito do STJ, antes de se cogitar dar início ao cumprimento da pena de prisão.

Com efeito, a impugnação efetiva, em instância final, de qualquer ato ou interpretação que contrarie ou restrinja a aplicabilidade de lei federal cabe ao STJ.  Por isso, sobreleva em importância a ponderação argumentativa de que é ali onde também poderão os réus buscar equacionar de forma justa e definitiva questões relevantes para eventual pena de prisão, tais como as relativas a tipicidade, antijuridicidade ou culpabilidade do agente e a dosimetria da pena.

 

Notas e Referências

[1] Garland, David. Crimen y Castigo en la Modernidad Tardía. Bogotá: Siglo del Hombre Editores/Universidad de los Andes/Universidad Javeriana. 2007. P.p. 22-23. 

 

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