Por Redação - 05/08/2015
No julgamento da Apelação Criminal n. 70056160948 (n. CNJ 0340721-57.2013.8.21.7000), a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul absolveu acusada que transportava drogas no interior de sua genitália quando ingressava no estabelecimento prisional para efetuar visita ao companheiro detido.
De acordo com o Des. Relator Diógenes V. Hassan Ribeiro, a conduta perpetrada pela acusada é atípica por se tratar de crime impossível em virtude da ineficácia absoluta do meio utilizado. Isso porque a acusada seria submetida inevitavelmente à inspeção para entrar na Penitenciária e "os estabelecimentos prisionais devem ser, por essência, local em que não se permite o uso de drogas", sendo "incumbência estatal zelar para que não se transporte drogas para o seu interior".
A temática ainda gera divergência de opiniões, tanto que houve discordância quanto ao fundamento da absolvição pelos demais Desembargadores votantes Nereu José Giacomolli (Presidente) e Des. Jayme Weingartner Neto (Revisor). Estes consignaram não considerar o caso hipótese de crime impossível, pois a revista pessoal, embora dificulte, não ilide por completo a consumação do delito de tráfico de drogas na modalidade "trazer consigo". Desta forma, não haveria que se falar em absoluta ineficácia do meio, mas tão somente de relativa ineficácia, ambos dando provimento ao recurso para absolver a acusada por inexistência de provas suficientes.
O Des. Giacomolli destacou, ainda, que a prova obtida é inválida em razão de sua obtenção violar direitos fundamentais, os quais limitam o poder de polícia do Estado. Segundo ele, "no caso concreto, a droga estava em cavidade íntima da acusada, mas precisamente, em sua genitália. A interferência nas cavidades íntimas, uma ingerência de alta invasividade, em face da proteção constitucional, submete-se à reserva legal (quais os delitos, em que situações, v.g.) e jurisdicional (decisão da autoridade judicial competente). O interesse público na persecutio criminis não se legitima na busca a qualquer preço ou custo da prova, sem a observância dos direitos fundamentais. Na interpretação de cada situação concreta, tanto poderá ser utilizada a proporcionalidade (necessidade, idoneidade e proporcionalidade em sentido estrito), quanto a razoabilidade (relação entre meios e fins)".
Confira abaixo a íntegra da decisão.
APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. INGRESSO EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL. CRIME IMPOSSÍVEl. ATIPICIDADE.
Crime impossível. A ré pretendia fazer uma visita no presídio e levava maconha em seu corpo. A prova oral denota que houve revista minuciosa na recorrente, tendo sido encontrada a droga. Verificada a ineficácia absoluta do meio utilizado para consumação do fato.
Crime de mera conduta. A jurisprudência e a doutrina apontam expressões nucleares do tipo do artigo 33 da Lei n.º 11.343/2006 que possibilitam a forma tentada.
Aplicação crítica da lei, não acrítica. Conforme o constitucionalismo contemporâneo, há uma reaproximação da ética ao Direito na aplicação. O princípio da razoabilidade serve de exemplo. Doutrina.
Deficiência do Estado. A deficiência do Estado na sua infra-estrutura prisional não pode ser solucionada pela imposição de pena a fatos que, em sentido lógico e rigoroso, jamais seriam concretizados em ilícitos penais. A permissão de facções no interior de casas prisionais não pode ser esquecida. Uma vez que o sistema prisional se auxilia da organização interna que permite nos estabelecimentos carcerários, deve atentar para a imposição de ordens a apenados para que tragam substâncias entorpecentes, as quais, em situações normais, não deixariam de ser apreendidas.
Revista íntima. A realização de revista íntima se constitui medida vexatória e somente deve ser realizada excepcionalmente com a observância de procedimentos adequados para assegurar que não haja violação à dignidade da pessoa humana. A inviolabilidade do corpo adquire proteção constitucional, em interpretação do artigo 5º, III e XLIX, da Constituição Federal. No caso de suspeita, há alternativas à extrema invasividade causada pela realização de revista íntima.
APELAÇÃO PROVIDA. ABSOLVIÇÃO. DECISÃO PRO MAIORIA.
Apelação Crime |
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, em dar provimento ao recurso para absolver a ré, com fulcro no artigo 386, inciso III e VII, do Código de Processo Penal, vencido o Des. Jayme Weingartner Neto. Expeça-se alvará de soltura na origem, se por outro motivo não se encontrar segregada.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Nereu José Giacomolli (Presidente) e Des. Jayme Weingartner Neto.
Porto Alegre, 17 de outubro de 2013.
Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro,
Relator.
Relatório
Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro (Relator)
O Ministério Público ofereceu denúncia em face da ré pela suposta prática do fato delituoso assim narrado (fls. 2-3):
No dia 02 de março de 2013, por volta de 14h15min, nas dependências de estabelecimento prisional, a Penitenciária Estadual do Distrito de Santo Antão, em Santa Maria, a denunciada A. trazia consigo, com fim de fornecimento a terceiro, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar, dentro da genitália, envolvo em preservativo masculino e sacola plástica, 01 ‘tijolo’, totalizando aproximadamente 49g, de cannabis sativa, erva vulgarmente conhecida como maconha (auto de apreensão da fl./IP), droga que causa dependência física e psíquica e tem o uso proscrito no Brasil, conforme Brasil RDC nº 44, de 02/07/2007, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde (laudos toxicológicos de fls./IP).
Na ocasião, a denunciado pretendia visitar seu companheiro A.V., detento da casa prisional, quanto, antes de adentrar na penitenciária, foi levada a sala destinada a busca minuciosa. Solicitado que A. fizesse os agachamentos de praxe foi visualizado, dentro de sua genitália, o embrulho apreendido, recebendo a denunciada voz de prisão em flagrante.
O modo de acondicionamento (dentro da genitália) e a quantidade da droga apreendida (49g), bem como o lugar e a ocasião da apreensão (em uma penitenciária, quando a denunciada fazia uma ‘visita’ ao companheiro) evidenciam o fim de fornecimento da substância entorpecente a terceiro.
A denunciada é reincidente específica, pois ostenta duas condenações por tráfico de droga, transitadas em julgado em 09/01/2008 e 08/09/2010 (certidão de antecedentes de fls./IP).
(...)
Na sentença, o Dr. Ulysses Fonseca Louzada consignou o seguinte relatório (fls. 81-83v.):
(...)
O órgão do Ministério Público provocou este Estado-Juiz em uma ação penal contra A.G. da S.D., já qualificada nos autos, denunciada nas sanções dos art. 33, caput, c/c art.40, inciso III, ambos da Lei 11.343/06, dado que, em 02/03/2013, por volta das 14h15min, nas dependências da PESM, foi flagrada quando trazia consigo uma porção de maconha, totalizando 49g. A substância estava acondicionada em um preservativo masculino introduzido na genitália da acusada, que ingressava no local para visitar seu companheiro A.V., e foi constatada sua presença durante a revista minuciosa realizada pelas agentes.
É o que relata, resumidamente, a denúncia, na qual foram arroladas quatro testemunhas.
Notificada da acusação (fl. 53v), a acusada requereu a nomeação da Defensoria Pública para patrocínio de sua defesa, sendo a resposta apresentada à fl. 54.
O Ministério Público se manifestou acerca da peça à fl. 57.
A denúncia foi recebida em 14/05/2013 (fls. 58/59).
Foi juntado aos autos o laudo pericial realizado sobre o material apreendido (fl. 63).
Na instrução criminal, foram inquiridas três testemunhas arroladas pela acusação, e ao final interrogada a denunciada (CD de áudio de fl. 66).
Os antecedentes criminais da acusada foram atualizados às fls. 68/72.
Em memoriais substituindo os debates orais, requereu o Ministério Público a procedência da ação penal, condenando-se a ré nos termos da denúncia (fls. 73/74v).
A Defesa Técnica, por sua vez, requereu a absolvição da acusada, fulcro no art. 386, VII, do CPP (fls. 76/80).
Acrescento que restou a ré condenada como incursa nas sanções do artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/2006, às penas de 7 anos de reclusão, no regime fechado, e 500 dias-multa, no valor mínimo legal (fls. 81-83v.).
A ré, pela Dra. Valéria Tabarelli Brondani, Defensora Publica, interpôs recurso de apelação requerendo a absolvição por não ter sido demonstrada a finalidade de distribuição ou comercialização da substância. Outrossim, alegou que a conduta poderia, no máximo, enquadrar-se no parágrafo 3º do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006 (fls. 90-96).
O Ministério Público, pelo Dr. Carlos Augusto Cardoso Moraes, Promotor de Justiça, requereu a manutenção da sentença (fls. 98-99) e, em segunda instância, pelo Dr. Eduardo Bernstein Iriart, Procurador de Justiça, opinou pelo improvimento do recurso (fls. 102-104v.).
É o relatório.
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Votos
Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro (Relator)
I. Atipicidade
Crime Impossível
O contexto fático-probatório constante dos presentes autos permite concluir a ocorrência de crime impossível na espécie.
Com efeito, a própria inicial acusatória registra que: “a denunciada pretendia visitar seu companheira Antonio Vilmar, detento da casa prisional, quando, antes de adentrar na penitenciária, foi levada a sala destinada a busca minuciosa. Solicitado que A. fizesse os agachamentos de praxe foi visualizado, dentro de sua genitália, o embrulho apreendido recebendo a denunciada voz de prisão em flagrante” (fl. 2v.).
A prova oral apontou para o mesmo sentido (fl. 66, mídia acostada). A ré afirmou que foi revistada quatro vezes e que não estava com a droga apreendida (fl. 66, mídia acostada).
Ocorre que a conduta pela qual a ré foi denunciada é atípica, por se tratar de crime impossível. Com efeito, os estabelecimentos prisionais devem ser, por essência, local em que não se permite o uso de drogas e é incumbência estatal zelar para que não se transporte drogas para o seu interior.
Na espécie, verificada está a ineficácia absoluta do meio utilizado, visto que, para entrar no estabelecimento prisional, a apelante seria submetida a inspeção.
Destarte, com essas considerações, imperioso o reconhecimento da atipicidade da conduta, ante o que estabelece o artigo 17 do Código Penal, por se tratar de crime impossível.
Por outro lado, pode-se cogitar da hipótese de posse de substância entorpecente, que consubstanciaria tipicidade. Todavia, segundo a hipótese acusatória constante da denúncia, a droga teria a finalidade de fornecimento a terceiro. Aí, então, é que se verifica a ineficácia do meio, à medida que, naquelas condições, a droga não entraria no estabelecimento prisional, pois realizada severa revista pessoal.
Crime de Mera Conduta
Em conformidade ao texto legal, a doutrina e a jurisprudência, a expressão nuclear do tipo “trazer consigo” determina a existência de delito de mera conduta, ou seja, não seria necessário o resultado da ação, bastando a conduta prevista.
Impõe-se, contudo, interpretar o texto legal com vistas à sua adequada aplicação. Em primeiro lugar convém perceber que, em determinadas expressões do tipo do artigo 33 da Lei n.º 11.343/2006, segundo a doutrina e a jurisprudência, é possível a tentativa, uma vez que a ação delituosa pode ser decomposta no tempo e nos atos. Tem sido assim com o verbo “adquirir”. O sujeito pode ser surpreendido tentando adquirir.
No caso dos autos, induvidosamente, a ação que teria, segundo a denúncia, sido praticada pela recorrente seria a de “trazer consigo”. Todavia, o fato apontado na versão acusatória, na sua peculiaridade e complexidade, indica que o “trazer consigo” tinha a finalidade de ingressar no estabelecimento prisional, mediante visita.
Nesses termos, o fato, na sua amplitude, implica a possibilidade de desdobramento, não cabendo ao julgador adotar o raciocínio da simplicidade, o raciocínio da repetição, o raciocínio que decorre da ausência de interpretação e de maior reflexão.
Ora, quando a lei pretende punir o “trazer consigo” busca a sua aplicação em casos outros, como os de que o acusado transporte em seu veículo substâncias entorpecentes não destinadas ao uso, ou de que traga consigo substâncias entorpecentes com finalidade de tráfico.
Cabe maior digressão para expor melhor o que se busca dizer. Em Teoria dos Precedentes Judiciais, Francisco Rosito transcreve Theodor Viehweg, nesses termos:
A função dos topoi, tanto gerais como especiais, consiste em servir a uma discussão de problemas. Segue-se daí que sua importância tem de ser muito especial naqueles círculos de problema em cuja natureza está não perder nunca o caráter problemático. Quando se produzem mudanças de situações e em casos particulares, é preciso encontrar novos dados para tentar resolver os problemas. Os topoi, que intervêm com caráter auxiliar, recebem por sua vez seu sentido a partir do problema. A ordenação com respeito ao problema é sempre essencial para eles. À vista de cada problema aparecem como adequados ou inadequados, conforme um entendimento que nunca é absolutamente imutável. Devem ser entendidos de um modo funcional, como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento[1].
A seu turno, o constitucionalista Luís Roberto Barroso expressa que o “constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito[2].”
Adiante nesta obra, Luís Roberto Barroso destaca:
O princípio da razoabilidade é um mecanismo para controlar a discricionaridade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o meio empregado; b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo caminho alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual; c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida tem maior relevo do que aquilo que se ganha. O princípio, com certeza, não liberta o juiz dos limites e possibilidades oferecidos pelo ordenamento. Não é de voluntarismo que se trata. A razoabilidade, contudo, abre ao Judiciário uma estratégia de ação construtiva para produzir o melhor resultado, ainda quando não seja o único possível, ou mesmo aquele que, de maneira mais óbvia, resultaria da aplicação acrítica da lei. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se valido do princípio para invalidar discriminações infundadas, exigências absurdas e mesmo vantagens indevidas[3].
No caso dos autos, como se viu, pretendia a recorrente ingressar na casa prisional portando substâncias entorpecentes em seu corpo. A toda evidência que, uma vez submetida à revista pessoal, a substância seria encontrada e apreendida.
Ademais, vale ressaltar que o direito penal, na célebre alusão de Roxin, é a “ultima ratio”, ou seja, deve haver uma intervenção mínima do Estado na liberdade individual e, ainda, somente quando não houver alternativa diversa.
Mas, cumpre ainda perquirir das razões pelas quais se aplica a lei nesses termos. O sistema prisional brasileiro atualmente se estabelece em um verdadeiro caos de organização, ou seja, padece de uma deficiência absurda. Os presos ficam recolhidos em pavilhões, ou em espaços submetidos à sua própria facção ou organização interna. O Estado se ausenta. Existe, ainda, uma deficiência absurda de infra-estrutura de pessoal e de tecnologia. Tudo isso resulta na edição de uma lei e da sua aplicação, de forma genérica, que pretende dar a solução para a deficiência do Estado brasileiro. Assim, a lei, na sua aplicação, procura justificar o fato de o Estado, por suas instituições prisionais, não ter condições de, com segurança e num sistema lógico, concluir pela absoluta impossibilidade de ser localizada substância entorpecente nas casas prisionais.
O Estado Brasileiro soluciona a sua deficiência punindo.
E, ainda, como o Estado está ausente, é deficiente, os indivíduos presos ficam à mercê das facções que existem e são toleradas no interior das casas prisionais, até como auxiliares do sistema prisional. Devem, então, esses apenados tentar trazer substâncias entorpecentes para dentro do presídio, sob pena de sofrerem severas represálias pelos chefes das facções.
E o Judiciário, noutras interpretações, com a máxima vênia, participa dessa simulação, aplicando o direito e prestando uma justiça que, no dizer de José Luís Barroso, decorre de uma interpretação “acrítica”.
Por fim, observe-se que não se trata de declarar inconstitucional parte do artigo 33 da Lei 11.343/2006. Para ficar perfeitamente claro, o que se pretende dizer é que não incide, no caso dos autos, em aplicação racional e razoável, o texto legal.
Nesses termos e por essas razões, considero atípica a conduta da recorrente.
Por fim, além da fundamentação já destacada, saliente-se que a ré referiu ter sido revistada quatro vezes. Assim, vale consignar, no caso concreto, a problemática relativa às visitas íntimas feitas nas visitantes quando do ingresso em estabelecimentos prisionais.
A questão já foi objeto de apreciação por esta Câmara Criminal em oportunidade anterior, na qual se reconheceu a ilegalidade da prova, em precedente de relatoria do eminente colega, Desembargador Nereu José Giacomolli:
TRÁFICO DE DROGAS. DROGA ACONDICIONADA EM PRESERVATIVO, INSERIDO NA CAVIDADE VAGINAL. O poder de polícia do Estado e a persecutio criminis não são absolutos. Encontram limites na convencionalidade, na constitucionalidade e na legalidade. A interferência nas esferas da dignidade e da integridade física submete-se, para fins de prova criminal, às reservas legais e jurisdicionais. No caso, a interferência adveio de notícia criminis anônima e houve condução coercitiva à realização do exame. APELO PROVIDO. (Apelação Crime Nº 70052189792, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 13/06/2013)
É notoriamente vexatória e degradante a maneira como são expostas as mulheres no procedimento de revista íntima. Não se ignora a celeuma no que diz com o ingresso de drogas no interior de estabelecimentos penitenciários. Todavia, é dever do estado zelar pela maximização e proteção dos direitos humanos, assim como pelo respeito à dignidade humana de todos os cidadãos, sejam ou não suspeitos da prática de fato delituoso.
Acrescente-se, ainda, como sugerido pelo eminente Desembargador Nereu José Giacomolli, nos casos de haver suspeita de transporte de drogas, para evitar a extrema invasividade no corpo do sujeito, constitucionalmente protegido, podem-se realizar medidas alternativas, tais como “impedir a sua entrada ou acompanhar os seus movimentos no interior do cárcere, limitar o direito de visitação. Outras metodologias, não invasivas na esfera íntima das acusadas poderão ser utilizadas e providenciadas pelo Estado. A precariedade da metodologia (desnudar, total ou parcialmente a mulher, colocá-la de cócoras, fazê-la girar, movimentar-se nessa posição, v.g.) situa-se no medievo, inadmissível em pleno séc. XXI[4]”.
II. Dispositivo
Diante do exposto, dou provimento ao recurso para absolver a ré, com fulcro no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal. Expeça-se alvará de soltura na origem, se por outro motivo não se encontrar segregada.
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Des. Jayme Weingartner Neto (Revisor)
Acompanho o eminente Relator no juízo absolutório, embora por fundamento diverso, na linha do voto do nobre Desembargador Nereu José Giacomolli. Em suma, afasto a ocorrência do crime impossível, como segue:
Crime impossível
O crime de tráfico de drogas, tipificado no artigo 33, caput, da Lei 11.343/06, é daqueles denominados ‘tipo misto alternativo’, que apresenta multiplicidade de verbos nucleares. Assim, ainda que não presenciado qualquer ato de mercancia, as circunstâncias do flagrante demonstram a conduta prevista no artigo 33, caput, que consigna como verbo nuclear “trazer consigo”, conduta perpetrada pela ré. A simples configuração do verbo, conduta prevista no tipo, perfectibiliza a infração. Tratando-se de crime de mera conduta, encontra-se consumado apenas com o porte da droga para fins de entrega a terceiro. Neste sentido, os atos de ingressar no presídio e entregar as drogas caracterizariam mero exaurimento do crime.
Mesmo que, ad argumentandum tantum, se tratasse de crime de resultado, não seria o caso de crime impossível. A revista pessoal e nos pertences, no retorno à casa prisional, embora constitua elemento que dificulta, não inviabiliza completamente a consumação do delito. Não se trata, portanto, de absoluta ineficácia do meio empregado, mas, apenas, de relativa ineficácia. Tenho que, diante de tantos desdobramentos possíveis e imagináveis do contexto fático, não há como afirmar que “a droga não entraria no estabelecimento prisional, pois realizada severa revista pessoal”.
Por oportuno, como argumento analógico, ressalto que é firme o entendimento no STJ no sentido de que a existência de aparato de segurança no estabelecimento comercial não ilide, de forma absolutamente eficaz, a consumação do delito de furto (HC 251913 / RS, 6ª T., j. em 13/11/12). De igual forma, a existência do procedimento de revista pessoal e nos pertences, no ingresso em estabelecimento prisional, não é totalmente eficaz de modo a impedir completamente a consumação do delito de tráfico na modalidade “trazer consigo” drogas para entrega a terceiros dentro do estabelecimento prisional. Fato, aliás, renovada vênia, mais que notório, a rigor dispensando maiores considerações.
Dois tópicos, ainda, em homenagem ao diálogo suscitado pelo nobre Relator. A um, no que tange ao “raciocínio da simplicidade”, que penso não poder ser associado, tout court, ao “raciocínio da repetição, o raciocínio que decorre da ausência de interpretação e de maior reflexão”. Lembro, no particular, de Norberto Bobbio (Elogio à serenidade e outros escritos morais), que contrapunha serenidade à política, e vislumbrava, no caminho da virtude que preconizava, justamente a simplicidade, vista como capacidade de fugir intelectualmente das complicações inúteis e praticamente das questões ambíguas. O que me leva à segunda consideração, em face das sensíveis, relevante e adequadas circunstâncias levantadas pelo colega Relator, acerca do caos do sistema prisional brasileiro, a padecer de uma deficiência absurda. Talvez seja o caso, diante do limite da indignidade, de conservar a consistência dogmática do direito penal (e, fique claro, não penso que a solução proposta seja inconsistente, ao revés) e, todavia, numa aplicação fundamentada (e controlável) do princípio da proporcionalidade, suspender a eficácia da pena acaso consequente, inclusive como atitude pragmática, de evidente repercussão política e repto à administração prisional. Mas não de forma genérica e gerando precedentes de duvidosa assimilação sistemática, e sim no diapasão da prudência jurisdicional, creio que virtude inafastável do Poder Judiciário.
Não há, então, que se afastar a tipicidade da conduta, pois não configurado crime impossível.
Por outro lado, como adiantado, voto pela absolvição da ré, com fundamento no artigo 386, VII, do CPP, nos termos do voto do nobre colega Vogal Des. Nereu José Gicomolli e nos limites do caso concreto, sem prejuízo de ulterior reflexão acerca da alegada violação à dignidade da pessoa humana na realização de revista íntima para ingresso no estabelecimento prisional.
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Des. Nereu José Giacomolli (Presidente)
Acompanho o eminente Relator no juízo absolutório, embora por fundamento diverso, na linha do precedente em destaque:
TRÁFICO DE DROGAS. MULHER QUE TENTA INGRESSAR NO ESTABELECIMENTO PRISIONAL COM DROGA NA CAVIDADE ANAL. ABSOLVIÇÃO.
O poder de polícia do Estado e a persecutio criminis não são absolutos. Encontram limites na convencionalidade, na constitucionalidade e na legalidade. A interferência nas esferas da dignidade e da integridade física submete-se, para fins de prova criminal, às reservas legais e jurisdicionais. No caso, a interferência adveio de notícia criminis anônima e houve condução coercitiva à realização da invasividade.
APELAÇÃO PROVIDA. 70051956548
É verdade que o tipo penal do artigo 33, caput, da Lei 11.343/06 é de conteúdo múltiplo, na medida em que elencou diversos verbos nucleares a fim de caracterizar as condutas típicas. Nessa senda, mesmo realizando mais de uma ação descrita no tipo penal – como no caso em apreço, adquirir, guardar, transportar e trazer consigo – comete o agente um único crime, pois o bem jurídico lesado (saúde pública) é o mesmo.
Nesse sentido explica GILBERTO THUMS e VILMAR PACHECO:
A lei elencou 18 verbos no art. 33, caput, 14 verbos no seu § 1º, bem como vários outros nos diversos tipos penais, procurando com isso cercar todas as possibilidades de condutas relacionadas a drogas para considerá-la típica.
Por outro lado, é preciso compreender que, mesmo realizando o agente vários comportamentos descritos nos tipos, num único contexto fático, incidirá apenas uma vez na lei repressiva, visto que o bem jurídico lesado é o mesmo: a saúde pública. Exemplificando: o agente que for flagrado na rua vendendo cocaína e que também traz consigo maconha e haxixe, bem como ainda guarda em casa certa quantidade de LSD, na verdade, praticou várias condutas típicas, mas sofrerá sanção única pela infringência ao art. 33, porque o crime é contra a saúde pública e não contra um número indiscriminado de pessoas. (Nova Lei de Drogas. Crimes, Investigação e Processo. 3ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 48).
Também não é menos verdade que diversas condutas, dentre elas, guardar e trazer consigo, para fins de comércio, é uma modalidade permanente, protraindo o momento consumativo no tempo e no espaço, razão pela qual não admitem a tentativa.
Nesse sentido sustenta Rogério Sanches Cunha:
“Consuma-se o crime com a prática de qualquer um dos núcleos trazidos pelo tipo, não se exigindo efetivo ato de tráfico. Deve ser lembrado que algumas modalidades são permanentes, protraindo seu momento consumativo no tempo e no espaço (por exemplo, expor à venda, trazer consigo, manter em depósito, guardar, etc.). A multiplicidade de condutas parece inviabilizar a tentativa” (in GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas Comentada, 2007, p. 148).
No mesmo sentido, Gilberto Thums e Vilmar Pacheco:
“Como regra, o crime de entorpecentes não admite tentativa, tendo em vista a multiplicidade de verbos que permite tipificar a conduta já consumada em face de comportamento anterior. Exemplificando: se o agente está vendendo a droga, mas ainda não a entregou ao adquirente e é preso, não se pode falar em tentativa de “vender”, eis que já se encontra consumada a conduta de “trazer consigo ou ter em depósito” a droga para fornecimento a terceiro”. (Nova Lei de Drogas. Crimes, Investigação e Processo, 2008, p. 36).
A configuração do crime não se dá somente pela tipicidade e ilicitude, mas também pela presença do elemento culpabilidade. Este se relaciona com o autor e com toda a complexidade social e cultural.
No caso concreto, entendo inválida a prova acusatória.
Segundo a Constituição Federal, o Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito e tem na dignidade da pessoa um de seus fundamentos (art. 1º, III, CF). O respeito à integridade física e moral se infere do art. 5º, XLIV, da CF. Portanto, o corpo (ser) recebe proteção constitucional. Tal proteção, potencializa-se, uma vez confrontada com o domicílio (possuir), como regra, inviolável, salvo quando houver flagrante delito, prestação de socorro ou por determinação judicial (art. 5º, XI, CF). Também, ninguém pode ser submetido a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III, CF). Por isso, o corpo da pessoa recebe potencialidade protetiva maior que a vida privada, a honra, a imagem (art. 5º, X, CF), à casa (art. 5º, XI, CF), à correspondência ou da própria comunicação telefônica (art. 5º, XII, CF). No que tange à casa e a comunicação telefônica há reserva legal e jurisdicional!!!!
As esferas de dignidade são irrenunciáveis e a limitação a direitos fundamentais não podem fragilizar a dignidade da pessoa, embora aferível em cada situação concreta (Sarlet). Constitui-se a dignidade, em base antropológica (Canotilho), princípio fundante da ordem jurídica, fundamento de todos os direitos, garantias e deveres fundamentais (Sarlet). Essa base humana adentra no processo penal como limite invencível da interferência do poder, em seu aspecto negativo, ou seja, de não-violação das esferas de dignidade, de não-aceitação de violação, bem como positivo ou prestacional, de respeito e efetivação da dignidade. A oficialidade estatal existe em face do sujeito, servindo ao ser humano e não este aos “aparelhos político-organizatórios” (Canotilho). Isso atinge o thema probandum, os meios de prova, a metodologia da busca da prova, em suma, a sua admissibilidade, bem como o plano da valoração, ou seja, de sua consideração como válida ou não. Apesar da complexidade e pluralidade, das bases fáticas e normativas, das cargas valorativas dos sujeitos e da variedade de códigos funcionais, a rede protetiva e garantidora da eficácia dos direitos humanos, ou seja, o “paradigma antropológico do homem” (Canotilho) está em primeiro plano no processo penal, na centralidade e referencialidade necessárias.
No caso concreto, a droga estava em cavidade íntima da acusada, mas precisamente, em sua genitália. A interferência nas cavidades íntimas, uma ingerência de alta invasividade, em face da proteção constitucional, submete-se à reserva legal (quais os delitos, em que situações, v.g.) e jurisdicional (decisão da autoridade judicial competente). O interesse público na persecutio criminis não se legitima na busca a qualquer preço ou custo da prova, sem a observância dos direitos fundamentais. Na interpretação de cada situação concreta, tanto poderá ser utilizada a proporcionalidade (necessidade, idoneidade e proporcionalidade em sentido estrito), quanto a razoabilidade (relação entre meios e fins).
É certo poder ser exercido o poder de polícia do Estado (revista), mas há limitações. Constata a possibilidade de a imputada estar com droga em suas cavidades íntimas, o poder de polícia do Estado poderá impedir a sua entrada ou acompanhar os seus movimentos no interior do cárcere, limitar o direito de visitação. Outras metodologias, não invasivas na esfera íntima das acusadas poderão ser utilizadas e providenciadas pelo Estado. A precariedade da metodologia (desnudar, total ou parcialmente a mulher, colocá-la de cócoras, fazê-la girar, movimentar-se nessa posição, v.g.) situa-se no medievo, inadmissível em pleno séc. XXI. A interferência médica, no caso, ocorreu sob condução, em situação involuntária, sem previsão legal.
Segundo o artigo 157 do CPP, consideram-se ilícitas as provas obtidas sem observância das normas constitucionais ou legais. No caso, nem sequer há previsão legal possibilitando a potencialidade da interferência. Há violação da normatividade constitucional. Por isso, penso ser inadmissível tal prova.
Ademais, a revista na imputada estava predeterminada (há que ser pesquisado, no plano empírico, as razões para isso) e foi realizada pois as agentes penitenciárias já a conheciam, por ser ela detenta do regime semi-aberto.
Retirada e destruída a prova considerada ilícita, nada mais resta com potencialidade probatória a dar supedâneo a um juízo condenatório.
Por isso, dou provimento ao apelo para absolver a acusada, com fundamento no artigo 386, VII, do CPP.
Des. Nereu José Giacomolli - Presidente
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Apelação Crime nº 70056160948, Comarca de Santa Maria: "POR MAIORIA, EM DAR PROVIMENTO AO RECURSO PARA ABSOLVER A RÉ, COM FULCRO NO ARTIGO 386, INCISO III, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, VENCIDO O DES. JAYME WEINGARTNER NETO.. EXPEÇA-SE ALVARÁ DE SOLTURA NA ORIGEM, SE POR OUTRO MOTIVO NÃO SE ENCONTRAR SEGREGADA."
Julgador(a) de 1º Grau: ULYSSES FONSECA LOUZADA
Notas e Referências:
[1] APUD, ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais. Curitiba: Juruá, 2012, p. 295.
[2] BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012, p. 121.
[3] Idem, ib., pág. 128.
[4] Trecho da fundamentação integradora do acórdão da apelação-crime nº 70052189792.
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