Flagrante preparado, provocado, delito de experiência, de ensaio ou putativo por obra do agente provocador: revisitando a Súmula 145 do STF

08/10/2016

Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos –  08/10/2016

Flagrante preparado, provocado, delito de experiência, de ensaio ou putativo por obra do agente provocador: revisitando a Súmula 145 do STF

Esta categoria dogmática de flagrância, que tantos nomes leva, é motivo de grandes debates na doutrina e na jurisprudência, algumas incompreensões e quase nenhum consenso particular, o que dificulta, em muito, a atuação do Delegado de Polícia, vez que o epicentro do debate gira em torno da ilegalidade desta modalidade de prisão em flagrante.

O penalista Cezar Roberto Bitencourt[1] identifica o referido debate, ao estudar a tentativa inidônea ou crime impossível, inclusive a confusão que alguns doutrinadores fazem entre o flagrante preparado e o esperado, e dispõe-se a clarividenciar o tema e distinguir os conceitos, além de lançar novas luzes à interpretação da Súmula 145 do STF, que versa sobre esta hipótese prisional.

Ocorre que o próprio penalista citado confunde o flagrante preparado com o flagrante esperado, ao classificar, didaticamente, três modalidades flagranciais, a saber, em suas palavras: “a) flagrante preparado (esperado); b) flagrante provocado (ou crime de ensaio); c) flagrante forjado”[2] (itálico no original) e ao discorrer sobre a primeira dessas hipóteses, afirmando que “ocorre o flagrante preparado, que diríamos melhor flagrante esperado, quando o agente infrator, por sua exclusiva iniciativa, concebe a ideia do crime, realiza os atos preparatórios, começa a executá-los e só não consuma seu intento porque a autoridade policial, que foi previamente avisada, intervém para impedir a consumação do delito e prendê-lo em flagrante”[3] (itálico no original).

Ora, ou a polícia espera ou prepara a situação flagrancial, jamais as duas coisas podem ser identificadas conceitualmente. No primeiro caso, a participação policial é omissiva, por assim dizer, ao passo que no segundo caso, é comissiva ou ativa.

Como ficou dito no tópico anterior, no flagrante esperado, os policiais, previamente informados sobre a prática de um crime, colocam-se em espreita para realizar a prisão em flagrante dos seus autores, quando estes iniciarem a execução criminosa. A doutrina e a jurisprudência não questionam a legalidade desta hipótese flagrancial.

Por outro lado, diz-se que no flagrante preparado, ou provocado(e não esperado), haveria a participação efetiva de um terceiro, o chamado agente provocador, o qual prepararia ou provocaria a própria situação de flagrância, com o objetivo de prender o suposto autor. E, por este preciso motivo, o crime não se consumaria por circunstâncias alheias à vontade do agente, equiparando-se ao chamado crime impossível.

Segundo Nelson Hungria[4], nestes casos, que ele chama de crimes de ensaio, “Somente na aparência é que ocorre um crime exteriormente perfeito. Na realidade, o seu autor é apenas protagonista inconsciente de uma comédia. O elemento subjetivo do crime existe, é certo, em toda a sua plenitude; mas sob o aspecto objetivo, não há violação da lei penal, sendo uma inciente cooperação para a ardilosa averiguação da autoria de crimes anteriores, ou uma simulação, embora ignorada do agente, da exterioridade de um crime. O desprevenido sujeito ativo opera dentro de uma pura ilusão, pois, ab initio, a vigilância da autoridade policial ou do suposto paciente torna impraticável a real consumação do crime”.

Este é o entendimento predominante na doutrina e na jurisprudência. Aliás, é neste exato sentido o teor da Súmula 145 do STF: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.

De igual modo, o art. 551 do Substitutivo do PLS 156/09, reconhece expressamente, a nulidade do flagrante preparado, quando seja razoável supor que a ação típica só se deu em razão daquela preparação. Esta modalidade pode ocorrer através de instigação, induzimento ou auxílio material de alguém, por parte de membros da polícia, para a prática de um fato criminoso, com o fim de prendê-lo em flagrante.

A referida súmula do STF tem seu fundamento legal no art. 17 do CP, que trata do chamado crime impossível, cujo teor é o seguinte: “Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”. Portanto, se da preparação do flagrante pela polícia resultar impossível sua consumação, tratar-se-á de crime impossível.

Ocorre que, para a configuração típica do crime impossível, em observância ao princípio da ofensividade, em especial levando-se em conta o desvalor do resultado, é necessário que não seja possível a consumação do fato praticado, seja por ineficácia absoluta do meio, seja por absoluta impropriedade do objeto. E na hipótese do flagrante preparado, nem sempre será impossível a consumação do crime, o que torna a ação da polícia um meio apenas relativamente ineficaz a impedir a consumação do crime.

Desse modo, em que se diferenciaria o flagrante preparado, em termos de legalidade, do flagrante esperado, no que tange à eficiência da atuação policial? A esta pergunta, responde, acertadamente, segundo entendemos, Pacelli de Oliveira[5], que “não existe real diferença entre o flagrante preparado e o flagrante esperado, no que respeita à eficácia da atuação policial para o fim de impedir a consumação do delito. Duzentos policiais postados para impedir um crime provocado por terceiro (o agente provocador) têm a mesma a mesma eficácia ou eficiência que outros duzentos policiais igualmente postados para impedir a prática de um crime esperado. Assim, de duas, uma: ou se aceita ambas as hipóteses como flagrante válido, como nos parece mais acertado, ou as duas devem ser igualmente recusadas, por coerência na respectiva fundamentação”.

Além disso, ainda segundo o mesmo autor[6], a conduta do agente provocador possui a mesma natureza e, por isso deve ter a mesma consequência, da chamada participação por determinação, razão pela qual ambos devem responder pelo crime tentado, caso a consumação seja impedida pela atuação policial.

De igual modo, não identificamos qualquer diferença, no âmbito eficacial da atuação da polícia, entre o flagrante preparado e o flagrante postergado ou diferido, previsto no art. 2º, inc. II, da Lei nº 9.034/1995. Com efeito, segundo este dispositivo legal, a polícia pode utilizar, como forma de tornar mais eficaz a investigação, a chamada ação controlada, a qual “[...] consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações”.

E assim entendemos porque, ao fim e ao cabo, o flagrante postergado não passa de uma forma especial de flagrante esperado. E o fator especializante desta modalidade é a prévia autorização judicial para retardar a atuação policial, a fim de que um número maior de elementos de prova quanto à materialidade e à autoria seja colhido. Ou seja, a polícia, previamente autorizada judicialmente, espera, mediante observação e acompanhamento, o início da execução de algum crime por uma organização criminosa, para, então, prender os agentes em flagrante delito.

Se, de fato, a atuação policial for eficaz, impedindo, assim, a consumação de um crime que está sendo praticado pela organização criminosa investigada, não estaríamos diante de um crime impossível? Sob os argumentos apresentados pela doutrina tradicional, sim. Apesar disso, este aspecto não é analisado, nem tampouco é considerado ilegal por essa mesma doutrina. As mesmas críticas a este entendimento, já apontadas acima, são aqui aplicáveis.

Por fim, não devemos esquecer das hipóteses de crimes permanentes e de ação múltipla ou conteúdo variado, em que o tipo é constituído por diversos núcleos verbais, e que, mesmo em se tratando de flagrante preparado, no momento da abordagem policial, uma das condutas do tipo já estava consumada, como por exemplo, no crime de tráfico ilícito de entorpecentes, em que a polícia impediria a consumação da conduta vender, mas não impediria a consumação das condutas transportar ou trazer consigo drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006)[7]. Nesta hipótese, provavelmente não haveria quem advogasse a ilegalidade da prisão em flagrante, mesmo tendo havido provocação de terceiro, nem tampouco a aplicação da Súmula nº 145 do STF.


Notas e Referências:

[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 535 e ss.

[2] Ibid, p. 535.

[3] Ibid, 2012, p. 535.

[4] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958, I v., II t., p. 107.

[5] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 486.

[6] Ibid., p. 486.

[7] Tratando do tema, em tópico específico, e em detalhes, cf. LIMA, Renato Brasileiro de, op. cit., p. 1284-1286.


Bruno Taufner ZanottiBruno Taufner Zanotti é Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Pós-graduado em Direito Público pela FDV. Professor do curso de pós-graduação Lato Sensu em Direito Público da Associação Espírito-Santense do Ministério Público. Professor do MBA em Direito Público da FGV-RJ. Professor do CEI, Curso Preparatório para Delegado de Polícia Civil. Professor de cursos preparatórios para concurso público nas áreas de direito constitucional, penal e processo penal. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Fundador, em parceria com o juiz André Guasti Motta, do site Penso Direito (www.pensodireito.com.br) e colunista do sitewww.delegados.com.br.


Cleopas Isaías Santos. Cleopas Isaías Santos é Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Professor de Pós-Graduação latu sensu em diversas instituições. Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão – FAPEMA. Delegado de Polícia.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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