Por Redação - 14/08/2015
O Juiz de Direito Mauricio Fabiano Mortari da Comarca de Tubarão proferiu decisão em caso que aborda ameaça, violência doméstica e porte ilegal de munição de uso permitido.
Destaca-se a análise efetuada sobre a apreensão das munições na residência do acusado, a qual foi realizada após o encaminhamento deste à Delegacia, ou seja, quando já não se encontrava no local. A apreensão foi considerada inconstitucional e ilegal em razão de, mesmo sendo caso de crime permanente, não ter havido prévio consentimento do acusado/proprietário da residência para o procedimento policial, não sendo suficiente a autorização da esposa/vítima.
O Magistrado ressaltou que os agentes somente poderiam efetuar a busca domiciliar caso houvesse suspeita fundada da prática delitiva, o que não aconteceu. No caso em tela, houve mera menção pelos vizinhos - os quais não foram nem sequer identificados nos autos - de que o acusado teria uma arma de fogo em sua residência, que, por fim, não restou encontrada. Apenas munições restaram apreendidas.
De acordo com Mortari, "é evidente que se a busca domiciliar visava a apuração de um ilícito envolvendo o acusado e não a vítima – e sendo ambos proprietários do imóvel –, havia a necessidade daquele ser cientificado da diligência policial e de suas consequências, isso sem falar na exigência de concordar de modo expresso com a busca, sobretudo porque os objetos tidos como ilícitos foram encontrados no cômodo da casa que era usado pelo acusado para seu repouso, situação igualmente evidenciada nos autos. E isso não ocorreu, pois quando a busca se iniciou o acusado sequer encontrava-se no local, pois aquela altura já havia sido conduzido para a Delegacia de Polícia. (...) Portanto, foi inconstitucional e ilegal a apreensão realizada na residência do acusado no que diz respeito ao delito de porte ilegal de munição".
Indo mais além do conteúdo da decisão, cumpre ressaltar que a apreensão isolada de munição em recentes decisões tem sido considerada conduta atípica, sendo indispensável a apreensão conjunta da arma de fogo eficiente para os fins a que se destina, uma vez que a munição, isoladamente, não tem o condão de efetuar qualquer lesão a bem jurídico tutelado pelo ordenamento.
Segundo Luiz Flavio Gomes, “(...) a munição desarmada ‘leia-se: munição isolada, sem chance de uso por uma arma de fogo´ assim como a posse de acessórios de uma arma. Não contam com nenhuma danosidade real. São objetos (em si mesmos considerados) absolutamente inidôneos para configurar qualquer delito. Todas essas condutas acham-se formalmente previstas na lei (estatuto do desarmamento), mas materialmente não configuram nenhum delito. Qualquer interpretação em sentido contrário constitui, segundo nosso juízo, grave ofensa à liberdade e ao Direito penal constitucionalmente enfocado” (GOMES, Luiz Flavio. Arma desmuniciada versus Munição Desarmada).
Confira abaixo a íntegra da decisão. Os nomes das partes não foram identificados em razão da ação prosseguir em segredo de justiça.
Ação: Ação Penal - Procedimento Ordinário/PROC
Autor: Ministério Público do Estado de Santa Catarina
Acusado: M. da S.
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Vistos, etc.
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O MINISTÉRIO PÚBLICO moveu a presente Ação Penal contra M. da S., pela prática, em tese, dos crimes previstos no art. 129, § 9º, c/c o art. 14, II, ambos do Código Penal, no art. 147, caput, do Código Penal, nos moldes do art. 5° da Lei 11.340/06, e no artigo 12 da Lei n. 10.826/2003, constando da denúncia:
No dia 27 de janeiro de 2015, por volta das 23h29min, na residência localizada na Rua X, n. 9999, Bairro Z, neste município e Comarca de Tubarão, o denunciado M. da S. buscou ofender a integridade física da sua companheira T. B. C., uma vez que, munido de uma faca de cozinha, investiu contra a vítima.
Ocorre que o crime somente não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do denunciado, considerando que ele somente largou a faca das mãos porque a neta do denunciado L. da S. T. colocou-se na frente da avó a fim de impedir que ela fosse atingida pelo denunciado.
Ato contínuo, a vítima acionou a Polícia Militar, oportunidade em que os Policiais Militares adentraram na residência do casal. Após a vítima começar a retirar os seus pertences da casa, o denunciado M. da S. ameaçou a vítima T. B. C. por palavras de causar-lhe mal injusto e grave, intimidando-a ao dizer que se ela formalizasse a queixa iria se arrepender.
Após ser conduzido para a Delegacia de Polícia, uma guarnição da Polícia Militar que auxiliava no atendimento da ocorrência permaneceu na residência e constatou que o denunciado M. da S. possuía e mantinha sob sua guarda, no interior de sua a residência, dentro do criado mudo do quarto, 21 (vinte e uma) munições de uso permitido intactas da marca CBC, calibre .22, em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Concluiu o Ministério Público, requerendo a citação do denunciado para se ver processado e, ao final, sua condenação na pena correspondente aos crimes cometidos.
O acusado teve convertida sua prisão em flagrante em prisão preventiva, sendo negado nas fls. 96/102 o pedido de revogação da custódia cautelar.
A denúncia foi recebida e determinada a citação do acusado para responder a acusação no prazo estabelecido em lei (art. 396, do CPP).
Apresentada a resposta escrita, também aportou nos autos pedido de prisão domiciliar (fls. 112/113), bem como noticiou-se a interposição de Habeas Corpus (fls. 153/163).
A prisão cautelar acabou revogada pela decisão de fls. 166/171, na qual também foram aplicadas medidas de natureza cautelar. Não sendo o caso de absolvição sumária (art. 396-A e art. 397, ambos do CPP), foi designada audiência de instrução e julgamento, oportunidade em que foi colhida a prova oral com a inquirição das testemunhas arroladas pelas partes.
No entanto, o Ministério Público requereu a oitiva de testemunhas referidas, o que foi deferido na fl. 229, realizando-se audiência de continuação na fl. 245, ocasião em que foram ouvidas duas testemunhas e interrogado o acusado.
Não tendo havido o requerimento de diligências por qualquer das partes (arts. 402 e 403 do CPP), seguiram-se as alegações finais.
Em suas derradeiras alegações o Ministério Público pugnou pela procedência do pedido de condenação, ao sustentar que os fatos descritos na denúncia restaram sobejamente comprovados à luz das provas carreadas no processado.
A defesa, na mesma oportunidade, postulou pela improcedência do pleito inicial, ao argumento de que os fatos imputados ao acusado não restaram devidamente comprovados, razão porque cabível o decreto absolutório.
É O RELATÓRIO.
DECIDO.
Trata-se de ação penal pública incondicionada em que M. da S. é acusado pela prática dos delitos de lesão corporal leve em sua modalidade tentada, ameaça e porte ilegal de munição de uso permitido (art. 129, § 9º, c/c o art. 14, II, ambos do Código Penal, art. 147, caput, do Código Penal, nos moldes do art. 5° da Lei 11.340/06, e no artigo 12 da Lei n. 10.826/2003), delitos estes perpetrados pelo viés da violência doméstica (art. 7º, I e II, da Lei Maria da Penha) contra T. B. C..
I. Lesão Corporal Tentada
O art. 129, § 9°, do Código Penal assim dispõe:
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
[...]
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
Acerca do delito de lesão corporal, esclarece Guilherme de Souza Nucci:
[...] trata-se de uma ofensa física voltada à integridade ou à saúde do corpo humano. [...] Para a configuração do tipo é preciso que a vítima sofra algum dano ao seu corpo, alterando-se interna ou externamente, podendo, ainda, abranger qualquer modificação prejudicial à sua saúde, transfigurando-se qualquer função orgânica ou causando-lhe abalos psíquicos comprometedores. Não é indispensável a emanação de sangue ou a existência de qualquer tipo de dor. [...] (Código Penal Comentado. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 638).
Sobre a prática do crime em comento em contexto de violência doméstica, leciona Luiz Regis Prado:
O agasalho dessa conduta pela lei penal brasileira é fruto do reconhecimento da necesidade de uma maior e mais específica proteção de pessoas que são vítimas de violência e que têm certo grau de parentesco com o sujeito ativo, ou daquelas que com ele convivam ou tenham convivido, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. Vale dizer: o legislador criou um tipo autônomo de lesão corporal lastreado principalmente na pessoa contra a qual a violência se dirige (mulher-vítima) e no contexto onde é praticada - relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade.
[...]
Essa qualificadora, portanto, atua na medida do injusto, implicando maior desvalor da ação perpetrada, seja porque há infringência de deveres inerentes à relação de parentesco, seja porque o aproveitamento pelo agente das relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade visa a debilitar a condição de precaução e defesa da vítima. É de se mencionar ainda considerações de política criminal, pois o agente pode prevalecer-se de ditas relações para favorecer sua impunidade. (Curso de Direito Penal Brasileiro. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 2, p. 141-142).
Dito isso, passa-se à apreciação da caracterização do ilícito.
A materialidade do ilícito encontra-se devidamente comprovada através do Auto de Exibição e Apreensão acostado às fls. 6 e do Boletim de Ocorrência de fls. 23/24,bem como através da prova produzida em ambas as fases processuais, cabendo anotar que por se tratar de lesão corporal na sua modalidade tentada não há vestígios que possam ser aferidos através de exame de corpo delito.
A autoria, ao contrário do que alude a defesa, resta demonstrada pela prova oral coligida e recai sem dúvida alguma sobre a pessoa do acusado, não obstante a negativa deste em relação à prática delitiva.
A respeito, vê-se que o acusado na fase indiciária preferiu exercer seu direito constitucional de manter o silêncio (fl. 10).
Em juízo iniciou dizendo não ter praticado qualquer agressão, mencionando que sua casa estava à venda e que tem vários problemas graves de saúde, sobretudo problemas cardíacos e psiquiátricos. Pretendiam colocar a casa a venda para comprar um apartamento, sendo que no dia dos fatos tudo transcorria normalmente quando passou a conversar sobre a venda da casa com T., mencionando que havia uma mulher interessada em trocar a casa por um sítio. Nisso T. disse que o interrogando era teimoso porque haviam combinado em vender a casa para comprar um apartamento, conversa que transcorria normalmente, até que T. passou a dizer que o acusado era um homem doente e que só estava esperando ele morrer para ficar com a casa. Refere que durante a conversa estava comendo uma ameixa e que por isso segurava uma faca naquele momento. Diante da recusa de T. em vender a casa, disse que então eles venderiam e cada um ficaria com metade do dinheiro, ao que a vítima disse que não adiantava ele fazer ameaças. Reiterou não ter feito qualquer ameaça e que segurava uma faca porque estava comendo uma fruta, admitindo apenas que a partir daí passaram a discutir com "um pouco mais de alteração", tanto que a neta L. aproximou-se e disse "que é isso vô?", tendo o interrogando cessado a discussão e tomado um calmante, reiterando que não fez qualquer ameaça com a faca, podendo T. e L. feito alguma interpretação equivocada. Disse que depois de cessada a discussão, foi deitar no quarto de visitas, explicando que ainda dormia com a vítima "como marido e mulher", mas eventualmente usava esse quarto de hóspedes para ver TV, negando que o casal estivesse dormindo em quartos separados. Referiu que estava deitado e vendo um filme quando, depois de umas duas horas após o final da discussão, viu que sua filha e seu genro chegaram acompanhados da polícia, convidando-os a entrar porque não estava se sentindo bem, passando a conversar normalmente com os policiais. Sua filha tentou intervir na situação, dizendo que ela "nunca se enquadrou comigo, me querendo ver morto", afirmando que foi essa filha – que é mãe da L. – que chamou a polícia, não a vítima T.. Mencionou que a conversa com os policiais transcorria normalmente apesar das intervenções inoportunas dessa filha, quando ficou nervoso e como já havia tentado suicídio antes, pegou uma corda e uma banqueta que guardava com esse fim, "porque infelizmente tenho essa tristeza comigo", e foi "lá para trás se suicidar", quando então o policial puxou a corda de seu pescoço "com tudo" e deu um chute na sua perna, tendo o interrogando voltado para seu quarto "ruim" e pedindo para que chamassem o SAMU para atendê-lo, o que foi feito. Explicou que foi nesse momento que pegou uma faca que guardava no quarto e tentou novamente o suicídio, mas foi novamente impedido. Foi aí que "sem mais nem menos me deram voz de prisão". Negou que tenha sido preso por ter ameaçado T. na presença dos policiais, pois apenas disse para ela"você vai te arrepende, perder um cara igual a eu que trabalhou a vida inteira, colocou tudo dentro de casa, criou duas filhas, nossa vivência foi 35 anos e você vai se arrepende de desfaze uma pessoa igual a eu, mesmo tendo problema de saúde (...). Vai se arrepende, encontra um cara a igual a eu você não vai" (sic). Disse que ficou nervoso ao saber que seria preso, tanto que se debateu, negando que tenha tentado tirar a arma do Policial Militar, esclarecendo que ao ter seu braço puxado pelo policial, sua "mão foi certinho na arma". Negou que a munição encontrada no quarto fosse de sua propriedade, referindo que o quarto era usado por várias pessoas, tanto que desconfiava quem pudesse ter colocado a munição no local. Mencionou que já chegou a ter um revólver calibre 32 herdado de seu pai, o qual foi entregue na campanha do desarmamento. Acredita que a munição foi colocada no local por um ex-companheiro dessa filha que não gosta dele, esclarecendo que esse companheiro não era boa pessoa e por isso o interrogando foi contra o relacionamento, tendo esse genro dito que ia fazer alguma coisa para prejudicá-lo. Em certa ocasião essa companheiro da filha foi na sua casa e usou o quarto em que a munição foi encontrada, o que ocorreu há três ou quatro anos atrás, sendo que por isso cogita – embora sem certeza – que foi ele quem escondeu a munição do local, reiterando que o material não era dele. Reafirmou que esse quarto era apenas de visitas, sendo que o usava apenas para ver TV e depois ia dormir no seu quarto com sua esposa. Acredita que a vítima disse ter sido ameaçada apenas para tirar o interrogando da casa, pois não queria se mudar e ficar com a casa somente para ela. Respondendo às indagações do Ministério Público, afirmou que durante a discussão com T. "deu uma engrossada na voz" apenas, voltando a negar que fez uso da faca para ameaçar ou mesmo algum gesto com a faca, sendo que "apenas falei com a faca na mão". Referiu que quando a neta L. veio na sua direção segurava uma almofada, acreditando que era a almofada que ela usava porque antes estava sentada no sofá ao lado de T., negando que sua neta tenha usado o objeto para defender T. de uma agressão. Confirmou que tinha uma desavença com um vizinho porque ele costumava colocar som alto – que motivou uma discussão no dia dos fatos – sendo essa uma das razões pelas quais queria se mudar daquele local. Disse que a neta foi induzida por T. e por sua mãe a mentir para prejudicá-lo, afirmando que a L. chegou a telefonar e dizer, chorando, que havia sido forçada por elas. Ao Defensor confirmou que quando a polícia chegou no local, também veio seu genro de nome G., marido da filha que não gosta dele, não havendo outras pessoas do sexo masculino na casa naquele momento além desse, do próprio interrogando e dos policiais que atendiam a ocorrência. Confirmou que não tem bom relacionamento com G. e com a filha, pois o casal já esteve em vias de se separar e o interrogando interveio, o que causou a desavença. Voltou a negar ter feito qualquer gesto com a faca que sugerisse uma tentativa de agressão, pois manuseava o instrumento apenas para comer a ameixa.
Já a vítima apresenta versão contrária e que dá sustentação ao que consta na peça acusatória.
A vítima T. B. C., na fase inquisitiva, disse (fls. 47/48): Que a declarante é casada a 2 anos com M. da S., porém residem juntos a 35 anos; Que, há aproximadamente 8 anos vem sofrendo problemas conjugais com M., o qual culpa a declarante por todos os seus problemas; Que, nesses últimos 8 anos a declarante vem sendo ameaçada verbalmente por M., quando discutiam; Que, há aproximadamente 1 ano atrás, após uma discussão com M., este pegou uma faca e ameaçou matá-la; Que, desde então tiveram outras discussões, sendo que nelas chegou a ser ameaçada verbalmente por M.; Que, na noite de hoje, por volta das 22:00 horas, M. começou a provocar a declarante, pois ela não teria perguntado o que teria acontecido durante o dia; Que, M. começou a chamar a declarante de "Urubu" e proferir outras ofensas contra a declarante, sendo que a mesma permaneceu em silêncio a fim de evitar uma briga; Que, como a declarante não respondia as provocações de M., este então passou a dizer que odiava a declarante, tendo em ato contínuo pego uma faca e vindo em sua direção; Que, nesta investida M., com a faca na mão, caminhava em direção da declarante ameaçando que ia lhe matar; Que, a neta do casal, L., de 12 anos de idade, postou-se entre a declarante e M. e começou a gritar, o que fez com que M. largasse a faca. Que, a declarante aproveitou esta oportunidade e saiu de casa; Que, a declarante da rua ligou para sua filha, a qual acionou a PM; Que, a PM chegou no local e foi com a declarante até a sua casa, para que pudesse pegar as suas roupas, eis que tinha a intenção de dormir na casa de uma das filhas; Que, quando a declarante começou a juntar as suas roupas M., mesmo na presença dos policiais, voltou a ameaçar a declarante, dizendo que se ela formalizasse a queixa iria se arrepender; Que, enquanto a declarante juntava suas coisas, M. fingiu passar mal, sendo que os policiais militares solicitaram os bombeiros no local; Que, a declarante não presenciou, mas soube que durante o atendimento que M. tentar retirar a arma de um policial. Que, os policiais militares deram voz de prisão para M. e o conduziram para a Delegacia; Que, a declarante estava na Delegacia de Polícia quando os policiais militares chegaram e apresentaram várias munições de calibre 22, dizendo que tinham encontrado as mesmas no quarto de M.; Que, a Declarante já tinha visto M. com seus munições daquele tipo, mas pensou que ele tinha jogado fora. Que, a declarante não sabia que ele teria bem mais de 6 munições. Que aproveita o depoimento para representar criminalmente contra M..
Na fase judicial afirmou que estava no seu trabalho, quando por volta das 13h00 sua neta L. lhe telefonou informando que o acusado M. havia encrencado com a vizinha por causa do som alto. Ao chegar a casa por volta das 19h30m, a depoente agiu como se não tivesse acontecido nada, pois já havia falado para M. não encrencar com a vizinha. Como não tocou no assunto com ele, foi M. que veio perguntar para a depoente se ela não tinha nada para falar sobre o ocorrido, pois sabia que L. havia lhe contado a respeito, acrescentando que iria trocar a casa por outra na localidade da Guarda. Esclareceu que o acusado sempre foi muito intolerante com barulho, tanto que não era a primeira vez que tinham problemas com vizinhos, já tendo mudando de outras casas por conta disso, estando novamente a casa a venda. No entanto, a depoente se mostrou contrária à ideia de M. de trocar a casa por outra na Guarda, pois "o nosso trato não era esse", mas sim de vender e comprar um apartamento, tanto que se o acusado insistisse na ideia a depoente lhe falou que preferia a separação, pois assim venderiam a casa e "cada um ia para um lado, aí ele se invocou comigo, ficou bravo", passando a dizer baixaria e "sem mais sem menos, andou em volta da mesa, foi na pia e pegou a faca e veio prá cima de mim cá faca assim" [fazendo o gesto representando a empunhadura da faca como se fosse golpeá-la]. Disse que nesse momento estava sentada no sofá, com L. do seu lado, quando "ele veio com a faca" [mais uma vez encenando o gesto de agressão] dizendo "agora eu te mato" (gravação – 4m40s), acreditando que com "a raiva que ele tava, veio prá me mata", tendo L. se colocado na sua frente e impedido a aproximação do acusado, momento em que o ele recuou, dizendo "sai daqui, não bota mais os pé aqui dentro de casa". Confirmou que quando isso ocorreu estava sentada no sofá, mas assim que percebeu a aproximação do acusado se levantou e L. ao mesmo tempo, pois ela também estava sentada no mesmo sofá. L. chegou a gritar "não vô, não vô", tendo a depoente aproveitado para ir "saindo devagarinho" para fora da casa. Esclareceu que a faca era uma "faca da tramontina daquelas". Ligou para suas filhas, pedindo que elas viessem ajudá-la a buscar suas coisas, sendo que a filha mais velha se recusou porque não queria se envolver, de sorte que foi S., mãe de L., que acionou a polícia. Aguardou na rua a chegada da polícia por aproximadamente 40 minutos, sendo que não voltou para dentro de casa porque ficou com medo. Quando a polícia chegou sua filha S. também chegou no local, sendo que a princípio queria auxílio apenas para pegar suas coisas e ir para a casa de sua filha. Começou a arrumar suas roupas para deixar a residência, enquanto M. ficou falando com os policiais, estando aparentemente tudo certo. Quando a depoente já estava saindo, M. "veio empurrando todo mundo" dizendo que ia se enforcar, tanto que tinha uma corda na garagem que M. já havia deixado para esse fim. Os policiais foram atrás dele e tiraram a corda, tendo ele voltado para o interior da residência onde passou a gritar e chorar, enquanto os policiais tentavam acalmá-lo e também chamaram os bombeiros para atendê-lo, pois M. dizia que não estava se sentido bem. Referiu que quando M. já "estava saindo com os policiais" ele disse "T. você vai me pagar", isso em um tom "bem assustador", tanto que a vítima sentiu "um revertério, uma coisa", ficando com medo, mencionando "ainda tô, né". Confirmou que foram encontradas munições no quarto, mas disse que não acompanhou a busca porque "era seu genro que estava lá", pois nesse momento estava na Delegacia. Sabia, contudo, que ele tinha essas munições porque já o tinha visto uma vez com esse material, isso quando ele trouxe as munições dizendo "olha, essas seis balas aqui eu vou matar um por um". Na Delegacia chegou a ver as munições apreendidas em sua casa, não sabendo dizer se eram as mesmas seis que M. lhe mostrou tempos antes, mencionando ainda que o acusado já teve arma de fogo. Ao defensor afirmou que no dia o acusado a ameaçou de morte, pois disse que tinha vontade de cortar seu pescoço quando estivesse dormindo e colocar seu corpo no porta-malas do carro para dar fim, esclarecendo que na Delegacia de Polícia não mencionou isso porque estava muito nervosa. Confirmou que o casal vinha dormindo em quartos separados, sendo que a munição foi encontrada no quarto usado por M.. Negou que antes do casal passar a dormir em quartos separados, que esse quarto fosse usado por alguém. Acredita que quando M. a ameaçou com a faca, ele chegou a um metro e meio de distância, talvez um pouco mais, momento em que L. postou-se entre eles e disse "para vô", tendo M. jogado a faca no chão, não chegando a vir depois disso na sua direção "porque a neta estava na frente". Disse que o relacionamento de M. com a mãe de L. sempre foi conturbado. Informou ter vivido com o acusado por 35 anos, tendo com ele duas filhas e que a neta L. não morava com o casal e sim com a mãe. Ao longo do relacionamento mencionou ter sido ameaçada outras vezes por M., mas que nunca foi agredida fisicamente. Confirmou que o acusado disse que ela iria se arrepender se fosse na Delegacia, o que a depoente entendeu com uma ameaça, pois ficou com a impressão de que ele a mataria depois. Disse que o acusado chegou com as seis munições por volta do mês de outubro do ano passado, isso quando ele teve uma encrenca com a vizinha.
Noutro giro, o restante da prova oral encartada no processo corrobora o afirmado pela vítima. Sabe-se que, nos casos que envolvam violência doméstica, as palavras das vítimas assumem papel de grande importância, as quais, por si sós, são aptas a embasar o édito condenatório, ainda mais quando amparadas pelos demais elementos probatórios. E a palavra da vítima apresenta relevância, pois a violência doméstica, via de regra, é praticada às ocultas (qui clam comittit solent).
No caso, temos o depoimento judicial de L. da S. T., narrando que no dia dos fatos o acusado arrumou uma confusão com uma vizinha por volta do meio dia, tanto que a polícia chegou a ser chamada, tendo ainda comunicado o ocorrido para sua avó por telefone. A noite, quando sua avó T. chegou em casa, ela não tocou no assunto, sendo quer tudo estava normal, até que seu avô M. se aproximou e disse "você não tem nada para me falar?", tendo ela respondido que não, pois não queria se meter na confusão criada pelo acusado. O acusado passou a dizer que iria trocar a casa e foi contrariado por T., a qual não concordou com a ideia. Foi nesse momento que M. pegou a faca e "veio para cima dela dizendo eu te odeio, eu te odeio", tendo a depoente se colocado na frente dela, o que fez "porque fiquei com medo de acontecer alguma coisa, ela levantou e eu me levantei, ele fez com a faca assim [colocando o braço para trás e mostrando o gesto de ataque - (gravação – 4m14s)], vindo na direção da vó". Referiu que seu avô não "chegou muito perto" e que pediu para ele parar, não tendo ouvido ele dizer que iria matar a vítima. Mencionou que o acusado jogou a faca no chão e depois juntou-a, guardando-a em seguida na gaveta. O acusado chegou a dizer que pensava em matar T. enquanto ela dormia, para depois jogar o corpo no rio e com isso ninguém descobrir que foi ele, o que ocorreu antes dele fazer uso da faca. Após a investida a vítima para a rua e ligou para suas filhas, sendo ainda acionada a polícia. Não soube dizer se o acusado ameaçou sua avó depois que a polícia chegou. Soube depois que foram encontradas munições escondidas, isso pelos policiais. Confirmou que fez uso de uma almofada, colocando-a na frente de seu corpo para se proteger. Disse que seu avó chegou a mostrar seis munições em certa ocasião, dizendo que era para "matar um por um", acreditando a depoente que ele estava se referindo aos vizinhos que o perturbavam com barulho. Acabou confirmando que M. disse que se T. registrasse a ocorrência "ela iria se arrepender", falando "um pouco mais grosso", tanto que sua avó ficou assustada. Ele falou isso quando a polícia ainda não havia chegado. Afirmou que a casa dos avós tem dois quartos, sendo que eles vinham dormindo em quartos separados e que as munições foram encontrada no quarto de M.. Disse que o acusado não chegou a desferir nenhum golpe contra a vítima, mas que levantou a faca e a balançou no ar.
Na fase policial a mesma informante declarou (fls. 70/71):
Que é neta de T. B. C.; Que, estava já uns 15 dias de férias na casa da avó; Que, no dia 27 de janeiro do corrente ano, por volta das 20:30 ou 21:00 horas, a depoente estava na casa de sua avó na companhia dela e de sua avô M. da S.; Que, no horário de meio dia já havia ocorrido um problema porque uma vizinha estava com o som alto e seu avô chamou a polícia; Que, os policiais estiveram no local e conversaram com seu avô e a vizinha; Que, sua avó não estava em casa, pois trabalhava de diarista; Que, sua avó chegou em casa por volta das 19:00 horas; Que, sua avó esquentou o jantar de seu avô, para ele jantar; Que, seu avô começou a puxar o assunto que aconteceu meio dia com sua vizinha, perguntando se ela sabia o que tinha acontecido e ela disse que ficou sabendo; Que seu avô perguntou se ela não ia falar nada e sua avó disse que não estava presente quando aconteceu os fatos e ele que resolvesse; Que, seu avô começou fazer provocações, falando dos pais de sua avó e também começou a chamá-la de "urubu" e "filha da puta"; Que, sua avó ficava calada para evitar mais confusão; Que, seu avô foi até a geladeira pegou um iogurte (desses de saquinho) e pegou uma faca na gaveta da pia; Que bateu com a faca na pia e em seguida apontou a faca para sua avó e disse "eu te mato ainda"; Que, a depoente então ficou na frente de sua avó e seu avô mesmo assim investiu contra sua avó; Que, a depoente deu um passo para trás e pegou duas almofadas, uma para ela e outra para sua avó, no caso de ter que se defender de seu avô; Que, seu avô veio para cima de sua avô, onde a depoente ficou na frente entre seu avô e sua avó e gritou pedindo que ele parasse; Que, sua avó também gritou com seu avô e este então largou a faca no chão e posteriormente juntou a faca e guardou de volta na gaveta da pia; (...).
Com efeito, tocante ao delito de lesão corporal em sua modalidade tentada, vê-se que o acusado negou a prática delitiva. Em apertada síntese, confirmou ter havido um desentendimento entre ele e a vítima T. por conta da venda da casa, mas que em nenhum momento investiu contra ela munido de uma faca. Segundo suas declarações ao longo da conversa – que depois transformou-se em discussão –, de fato segurava uma faca, mas o fazia porque estava comendo uma ameixa, o que pode ter sido mal interpretado pela vítima e por sua neta L..
No entanto, vê-se que os depoimentos da vítima e de L. são harmônicos acerca das investidas que o acusado fez com o uso da faca, ficando muito evidente para elas que o instrumento foi usado de modo agressivo, somente não tendo ocorrido algo mais grave por conta da pronta intervenção da L. ao colocar-se entre a vítima e o acusado, o que fez com que ele desistisse de praticar qualquer agressão.
Tanto é assim, que T. e L. mantiveram-se sentadas durante toda a discussão, a qual iniciou-se porque a vítima não deu muita atenção para a confusão em que o marido envolveu-se horas antes, até porque sabia que ele não era tolerante e costumava criar problemas com a vizinhança. É nítida a impressão de que o acusado vinha criando caso com os vizinhos porque tencionava vender a casa – o que já havia ocorrido antes –, tanto que ficou contrariado quando a vítima repudiou a ideia de trocar o imóvel por outro na localidade da Guarda, momento em que ele ficou ainda mais alterado e apossou-se da faca, passando a investir contra a vítima.
Ainda que seja incontroverso que o acusado não tenha de fato golpeado a vítima – afinal nem T. e nem L. mencionaram tal hipótese – mostra-se evidente que a intenção daquele era a de lesionar sua esposa, na medida em que brandiu a faca em nítido gesto agressivo e foi na direção da vítima, somente parando quando L. colocou-se entre eles.
Era tão evidente o animus laedendi no agir do acusado, que ele não só agitava a faca de modo ameaçador, como também anunciava que queria matar a vítima e que a odiava, o que levou L. a colocar-se entre ele e a avó para, como ela mesmo disse, evitar que algo acontecesse. L. inclusive colocou na sua frente uma almofada para proteger-se, o que denota que realmente acreditava que seu avô pudesse fazer algo pior naquele momento de intensa ira.
No ponto, cabe destacar que carece de credibilidade a versão dada pelo acusado, ou seja, de que portava a faca apenas porque naquele momento comia uma fruta, bem como que isso pode ter sido mal interpretado pela vítima e por sua neta. A uma, porque nenhuma delas mencionou que o acusado estivesse usado a faca para comer um fruta, pois ambas afirmaram que ele apanhou a faca para anunciar a intenção de agredir a esposa; a duas, porque se ele realmente estivesse comendo uma fruta, certamente tanto a vítima como a neta do casal não teriam sido bem específicas em relação ao gesto de ataque feito por ele e que foi bem demonstrado durante os depoimentos, podendo ser visualizado nas gravações acostadas ao processo.
Destaque-se que a vítima de fato acreditou que pudesse ser agredida fisicamente pelo acusado, pois logo após a investida ligou para suas filhas e pediu auxílio, aguardando do lado de fora da residência até que a polícia chegasse para ajudá-la a retirar suas roupas e afastar-se do local em segurança. Tivesse ocorrido apenas uma discussão – como quer fazer crer o acusado –, é seguro afirmar que a vítima permaneceria na residência, mesmo porque como ela mesmo disse já havia ocorrido outras situações com ameaças verbais anteriormente, mas nunca envolvendo tentativas de agressão.
Vale lembrar que os depoimentos da vítima T. e da informante L. são coerentes entre si, não se mostrando dissociados das demais circunstâncias que foram apuradas durante o processo, sobretudo envolvendo a discordância do casal em torno da venda da casa (o que foi inclusive confirmado pelo acusado), bem como o comportamento pouco tolerante do denunciado, tanto que mostrou-se bastante desequilibrado durante a intervenção policial que culminou com sua prisão, com reações que foram desde uma tentativa de suicídio até a tentativa de apossar-se da arma de um policial.
A respeito, cabe mencionar o que disse o Policial Militar A. A. G às fls. 42/43: Que é soldado da Polícia Militar, exercendo suas funções junto ao 5º BPM; Que no dia de hoje se encontrava de plantão, juntamente com o soldado PM V., quando por volta das 23:29 horas receberam um a solicitação da CRE, para atender um a ocorrência de violência doméstica, na Rua X, 9999, Bairro Z; Que, se deslocaram até o local dos fatos e numa esquina antes da residência, a vítima, a neta e a filha se encontravam, aguardando a viatura; Que, a vítima T. B. C., relatou que o autor M. da S. é seu companheiro, o qual tentou atacá-la com uma faca, tentando lhe matar, a qual foi ajudada por sua neta L. da S. T., de 12 anos, a qual interveio e impediu a agressão; Que orientaram a vítima sobre os procedimentos, a qual de início não tinha interesse em representá-lo; Que, a vítima convidou a sua guarnição permitindo que entrasse na casa para averiguar a situação, pois M. não atendeu a solicitação da guarnição; Que, M. estava na casa deitado na cama; Que, conversaram com M. sobre os fatos e este desconversou, alegando problemas de saúde, todavia, confirmou para a guarnição que havia ameaçado sua esposa de posse de uma faca, insatisfeito com sua esposa, por ela não estar "cuidando dele direito", alegando que não havia ocorrido nada, para que ensejasse atendimento policial; Que, a vítima passou a recolher seus pertences; Que, diante das queixas de M., foi oferecido diversas vezes atendimento do corpo de bombeiros/Samu, todavia, este negou atendimento; Que, quando M. viu sua esposa com os pertences e que estava saindo com sua neta e a filha, se alterou bruscamente, passando a correr e gritar; Que, tentaram impedir o contato de M. com a esposa, momento em que este se dirigiu até os fundos da casa e tentou suicídio colocando uma corda no pescoço; Que, a guarnição conteve M., retirando-o do local; Que, então M. correu para o seu quarto; Que, acionaram o corpo de bombeiros para atendimento a M., mas este continuava se recusando a colaborar com a ordem para que se pudesse ser atendido; Que, diante dos fatos foi dada voz de prisão a M. da S., tendo este reagido a prisão, sendo necessário o auxílio do corpo de bombeiros, para algemá-lo; Que, durante a abordagem o conduzido tentou sacar a arma de fogo de um dos policiais que tentava abordá-lo; Que, foi necessário o uso de força física para contê-lo, pois este se debatia violentamente para não ser algemado; Que, todos foram conduzidos a esta delegacia, sendo que uma guarnição que estava prestando auxílio juntamente com o corpo de bombeiros, efetuaram buscar no interior da casa, pois familiares da vítima, afirmaram que o conduzido possuía uma arma de fogo, mas nunca a tinham localizada; Que, no criado mudo do quarto do conduzido, foi apreendido 21 (vinte e uma), munições intactas de calibre 22 e duas facas, sendo uma faca de cozinha e uma faca tipo de churrasco, sobre a cama, onde o conduzido estava deitado.
O depoimento do mesmo policial na fase judicial não destoa, quando ele firmou na audiência de fl. 229 que sua guarnição foi acionada para atender uma ocorrência de violência doméstica, sendo que ao chegarem no local viram que a vítima e a neta aguardavam na esquina, fora de casa, local onde conversaram com elas. A vítima relatou que foi atacada pelo esposo com uma faca e sua neta se colocou na frente "para que não acontecesse o fato", fazendo isso para "defender a avó". Foram até a residência e a vítima permitiu que ingressassem no local, onde encontraram o acusado deitado na cama dizendo que estava passando mal porque tinha feito uma cirurgia do coração, sendo que inclusive ofereceram-se para chamar o SAMU para prestar-lhe atendimento, mas ele recusou. A vítima passou a recolher seus pertences para deixar a residência, pois assim que ela saísse pretendiam dar voz de prisão ao acusado para "proteger a família". Em dado momento, quando a vítima estava quase deixando a casa, M. "se alterou e veio", correndo para os fundos da residência, sendo que neste local ele dizia que iria se matar, tanto que já havia colocado uma corda em torno do pescoço para se enforcar usando ainda um banquinho, tendo o depoente tirado a corda do pescoço. Em seguida o acusado voltou para o quarto e o depoente solicitou reforço de outra guarnição e auxílio do Corpo de Bombeiro que chegou e atendeu o acusado. Após o atendimento foi dado voz de prisão ao acusado, sendo que foram necessários quatro policiais e dois bombeiros para contê-lo. Como se tratava de um quarto apertado, tiveram o cuidado de retirar as armas letais que portavam e entraram no quarto para algemá-lo, passando o acusado a se debater. Nesse momento um policial entrou no quarto para auxiliar portando a arma de fogo, destacando o depoente que o acusado "estava se fazendo, porque dizia que estava passando mal", tendo "grudado na arma do único policial que estava armado dentro do quarto". Mesmo assim, acabaram por dominar o acusado e algemá-lo. Relatou que durante o momento em que a vítima estava arrumando seus pertences para deixar a residência, o acusado várias vezes falou que era para ela não envolver a polícia e registrar o fato, pois senão ele iria voltar "e matar todo mundo", ouvindo ainda que caso ela fizesse isso iria se arrepender. Mencionou que foram outros policiais que encontraram a munição, explicando que alguns vizinhos disseram que o acusado guardava uma arma em casa, razão porque "os policiais ficaram procurando a arma", vindo a saber depois que durante essa procura acharam munições de calibre 22 em uma cômoda ao lado da cama. Relatou que durante o atendimento prestado pelos bombeiros, foi localizada uma "faca de churrasco" ao lado do acusado na cama. A vítima também mencionou que o acusado tinha uma arma de fogo, a qual ela vira a bastante tempo atrás "na última mudança". Pelo relato da vítima soube que o quarto onde as munições foram encontradas era do acusado.
No mesmo sentido vai o depoimento do Policial Militar M. V. S. na fl. 44/45 e na mídia acostada à audiência de fl. 229, o qual inclusive confirmou que foi a sua arma que o acusado tentou se apossar quando tentaram contê-lo, o que denota o estado de ira em que o acusado se encontrava, pouco lembrando a pessoa calma que ele pretendeu demonstrar ser durante seu interrogatório, situação que reforça a ideia de que ele de fato tentou agredir sua esposa. A mesma testemunha confirmou que o acusado ameaçou a vítima dizendo que ela "ia se arrepender", momento "em que usou um tom forte", isso porque a vítima havia acionado a polícia, acrescentando que ela mostrou-se temerosa com a ameaça. Relatou que a vítima e sua neta mencionaram que durante uma discussão M. muniu-se de uma faca e veio na direção da vítima, colocando-se a neta entre os dois, o que impediu que a agressão se consumasse. A vítima relatou que havia visto munições no quarto de M., o que fez com que os policiais fizessem uma busca e localizassem em uma gaveta algumas munições, mas o depoente não acompanhou a busca.
Com efeito, vê-se que todas as narrativas são harmônicas a respeito da tentativa de agressão, não só pelo mencionado pela vítima e pela informante L., mas também pelos policiais que atenderam a ocorrência. Ambos mencionaram que a vítima e sua neta relataram a tentativa de agressão, bem como a dinâmica dos fatos tal qual foi descrito por elas em juízo.
Afigura-se isolado nos autos a alegação do acusado no sentido de que a vítima fez a denúncia apenas para retirá-lo da residência, eis que a versão por ela trazida vem corroborada pelo restante da prova oral, especialmente pelo depoimento da informante L., cuja alegação de que foi influenciada pela avó e pela mãe para incriminá-lo também não apresenta qualquer sustentáculo.
Cabe lembrar que desde a chegada dos policiais logo após o ocorrido, a versão apresentada foi a de que o acusado tentou agredir a esposa com uma faca, versão que se sustentou ao longo da instrução do processo, não se denotando das declarações da vítima e da informante L. qualquer intenção de prejudicar o acusado. Mesmo porque, eventual responsabilização criminal do acusado não implicaria em qualquer vantagem para à vítima no tocante à partilha dos bens comuns, sendo possível ainda que ele fosse afastado da residência através de uma medida cautelar no âmbito civil.
Sendo assim, demonstrando a prova dos autos que o acusado agiu no sentido de tentar ofender a integridade física da vítima no âmbito doméstico, deve responder pelo crime de lesão corporal circunstanciado pela violência doméstica em sua modalidade tentada.
Lembre-se, no ponto, que o acusado portava uma faca e com esse instrumento investiu contra a vítima com o nítido propósito de agredi-la, tanto que o sua neta L. interveio e após colocar-se entre o ele e a vítima conseguiu evitar que a agressão fosse consumada, frustrando a intenção daquele em lesionar sua avó.
Com efeito, demonstrado de modo inequívoco o dolo do agente ao tentar ofender a integridade corporal da vítima com o uso de uma faca, somente não consumando seu intento por conta da intervenção de terceiro, plenamente configurado o delito de lesão corporal em sua modalidade tentada.
Sobre a possibilidade da tentativa no crime de lesão corporal, anote-se:
É indiscutível a possibilidade de tentativa de lesões corporais dolosas quando o agente age com dolo de ferir, mas é impedido por terceiro, que intercepta o golpe. Não se pode falar em tentativa de vias de fato, se o meio empregado pelo agente é capaz de causar dano à incolumidade física da vítima. Por outro lado, configura-se tentativa de crime de lesão corporal se a ação do agente traduz manifesto e inequívoco animus laedendi, são não se concretizando por ter sido impedido por terceiro (Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal, vol. 2, 13ª ed., Saraiva, p. 197).
Nesse norte, nossa Corte de Justiça decidiu:
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A PESSOA. LESÃO CORPORAL DE NATUREZA LEVE (ART. 129, CAPUT, C/C ART. 12, INC II, TODOS DO CÓDIGO PENAL). FORMA TENTADA. AUTORIA E MATERIALIDADE DEVIDAMENTE AFERIDAS. DEPOIMENTOS DA VÍTIMA E DE INFORMANTES CORROBORADOS PELOS DEMAIS ELEMENTOS PROBATÓRIOS DOS AUTOS. CONFISSÃO ESPONTÂNEA. DOLO LESIVO COMPROVADO. CONJUNTO DE PROVAS SUFICIENTES PARA EMBASAR MEDIDA CONDENATÓRIA. PEDIDO DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSÍVEL, AINDA QUE CRIME DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO NÃO SE CONFUNDE COM INSIGNIFICANTE. INTEGRIDADE CORPORAL E SAÚDE HUMANA TUTELADAS. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE PREJUDICADA. EFETUADA EM 1º GRAU. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
A palavra da vítima, quando firme e coerente com o contexto probatório, aliada aos depoimentos das testemunhas, mesmo que na categoria de informantes, é suficiente a embasar o decreto condenatório por crime de lesão corporal.
"Informantes, tal como testemunhas, não se escolhem. O que os faz é unicamente a circunstância de se encontrarem no momento e lugar do crime. Se suas declarações harmonizam-se com os demais elementos de convicção constantes nos autos adquirem força suficiente para alicerçar veredicto condenatório (Ap. Crim. n. 2003.004034-0, de Balneário Piçarras, julgado em 29-4-2003, rel. Sérgio Paladino)". (Apelação Criminal n. 2012.009496-3, de Lebon Régis, Relator: Des. Solon d'Eça Neves).
Sendo assim, demonstrando a prova dos autos que o acusado agiu no sentido de ofender a integridade física da vítima no âmbito doméstico, deve responder pelo crime de lesão corporal circunstanciado pela violência doméstica.
Nesse norte, nossa Corte de Justiça decidiu:
APELAÇÃO CRIMINAL. LESÃO CORPORAL LEVE E AMEAÇA NO ÂMBITO DOMÉSTICO. RECURSO DA DEFESA. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. AUTORIA E MATERIALIDADE DEVIDAMENTE COMPROVADAS. PALAVRAS DAS VÍTIMAS E DEPOIMENTOS DE TESTEMUNHAS EM CONSONÂNCIA COM OS DEMAIS ELEMENTOS PROBATÓRIOS. LAUDO PERICIAL QUE ATESTA AS LESÕES SOFRIDAS PELAS VÍTIMAS [...] (Apelação Criminal n. 2011.003605-4, de Chapecó, rel. Des. Rui Fortes, j. 14/7/2011).
E:
APELAÇÃO CRIMINAL - LESÃO CORPORAL - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (ART. 129, § 9º, DO CÓDIGO PENAL) - PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO - INVIABILIDADE - DECLARAÇÕES SEGURAS E COERENTES DA VÍTIMA - DEPOIMENTOS CORROBORADOS PELO LAUDO DE CORPO DELITO - MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS - CONDENAÇÃO MANTIDA.
A Lei n. 11.340/06, intitulada "Lei Maria da Penha", tem como objetivo coibir a violência doméstica e familiar, que na maioria das vezes ocorre às escuras, dentro do próprio ambiente domiciliar, ausente de testemunhas presenciais. Assim, nos delitos tipificados na nova lei, de suma importância é a palavra da vítima para o melhor elucidar dos fatos, de modo que comprovadas a materialidade e a autoria do delito de violência doméstica, impossível a absolvição. (APR n. 2008.029344-1, da Capital. Rel. Des. Moacyr de Moraes Lima Filho).
II. Ameaça
Imputa-se ao agente a prática do delito de ameaça, conduta típica prevista no art. 147 do Código Penal, in verbis:
Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave.
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
A respeito, ensina Julio Fabbrini Mirabete:
[...] A conduta típica é ameaçar, ou seja, intimidar, anunciar ou prometer castigo ou malefício, a denominada violência moral (vis compulsiva ou vis animo illata). É, pois, o anúncio da prática de um mal injusto e grave consistente num dano físico, econômico ou moral. Pode ser praticada por meio da palavra, ainda que gravada, por escrito (carta ou bilhete), desenho, gesto, ou qualquer outro meio simbólico (fetiches, bonecos etc.). Pode ser direta, com promessa de mal à vítima, ou indireta ou reflexa, de promessa de mal a terceiro. Pode ser explícita, como a exibição de uma arma, ou implícita, encoberta. Pode ser condicional, se não constituir elemento do crime de constrangimento ilegal ou outro qualquer, embora já se tenha decidido o contrário. Nada impede a ameaça a distância (por telefone, e-mail etc.) ou transmitida à vítima por terceiro. O importante é saber se a ameaça é idônea para influir na tranqüilidade psíquica da vítima, bem jurídico protegido pelo art. 147 do CP [...] (Código penal interpretado. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 1160).
Estabelecidas tais premissas, passa-se à analise da configuração do tipo penal no caso em mesa.
Tratando-se a ameaça de crime de mera conduta e que não deixa vestígios, é dispensada a prova da materialidade, nos termos do art. 158 do Código de Processo Penal. Ainda assim, a infração foi devidamente noticiada através do Boletim de Ocorrência de fls. 61/62.
A autoria, ao contrário do que alude a defesa, resta demonstrada pela prova oral coligida e recai sem dúvida alguma sobre a pessoa do acusado.
A respeito, vê-se que o acusado mais uma vez negou a pratica delitiva, ou seja, que ao dizer para a vítima que ela iria "se arrepender" tivesse a conotação da ameaça da prática de um mal futuro. Segundo narrou em seu interrogatório apenas disse para ela "você vai te arrepende, perder um cara igual a eu que trabalhou a vida inteira, colocou tudo dentro de casa, criou duas filhas, nossa vivência foi 35 anos e você vai se arrepende de desfaze uma pessoa igual a eu, mesmo tendo problema de saúde (...). Vai se arrepende, encontra um cara a igual a eu você não vai" (sic).
Noutro giro, a prova oral encartada no processo evidencia que o acusado realmente ameaçou a vítima, causando nesta fundado temor.
Neste sentido consta-se que a vítima não viu nas palavras do acusado quando disse que ela iria se arrepender apenas uma alusão ao fato de que estava colocando fim a uma casamento de vários anos, pois da forma como ele falou ficou nítido para ela que se tratava realmente de uma ameaça de morte, sobretudo porque feita em um contexto de tentativa de agressão com o uso de arma branca que recém ocorrera.
Tanto que desde a fase policial a vítima vem referindo-se a essa situação como ameaça ao relatar: (...) Que, quando a declarante começou a juntar as suas roupas M., mesmo na presença dos policiais, voltou a ameaçar a declarante, dizendo que se ela formalizasse a queixa iria se arrepender; (...) (fls. 47/48).
Na fase judicial referiu que quando M. já "estava saindo com os policiais" ele disse "T. você vai me pagar", isso em um tom "bem assustador", tanto que a vítima sentiu "um revertério, uma coisa", ficando com medo, mencionando em relação ao temor "ainda tô, né". Além disso, confirmou que o acusado disse que ela iria se arrepender se fosse na Delegacia, o que a depoente entendeu com uma ameaça, pois ficou com a impressão de que ele a mataria depois. Ao defensor afirmou que no dia o acusado a ameaçou de morte, pois disse que tinha vontade de cortar seu pescoço quando estivesse dormindo e colocar seu corpo no porta-malas do carro para dar fim, esclarecendo que na Delegacia de Polícia não mencionou isso porque estava muito nervosa.
A propósito, menciona-se:
[...] as declarações da vítima, para legitimar a prolação de uma sentença condenatória, não devem se apresentar isoladas do contexto dos autos, afigurando-se imprescindível, para o acolhimento da denúncia fundada em fatos dessa natureza, que do referido elemento probatório resplandeça coerência e harmonia com todo o conteúdo destinado a formar a convicção do julgador, pois, do contrário, a absolvição é imperativa. [...] (AC n. 2009.040442-5, de Imaruí, Relatora: Desa. Salete S. Sommariva, j. 11.11.2009).
APELAÇÃO CRIMINAL - CRIME CONTRA A LIBERDADE INDIVIDUAL - AMEAÇA (ART. 147 DO CP) - AUTORIA E MATERIALIDADE DEVIDAMENTE COMPROVADAS - PALAVRAS DA VÍTIMA ALIADA ÀS DEMAIS PROVAS QUE DEMONSTRAM A CONDUTA ILÍCITA PERPETRADA PELO ACUSADO - CONJUNTO PROBATÓRIO VÁLIDO A EMBASAR UMA MEDIDA CONDENATÓRIA - ABSOLVIÇÃO IMPOSSÍVEL - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO. (AC n.2008.009720-3, de Biguaçu, Relator: Des. Solon d'Eça Neves, j. 14.05.2008).
E não foi somente é a vítima que ficou com a nítida impressão de que o acusado ameaçou-a ao dizer que ela "iria se arrepender", pois as demais pessoas que presenciaram o fato também constataram que se tratava de uma ameaça, ainda que velada.
No particular, o depoimento da informante L. de fato não foi foi preciso, pois primeiro não soube dizer se o acusado ameaçou sua avó depois que a polícia chegou, para depois confirmar que M. disse que se T. registrasse a ocorrência "ela iria se arrepender", falando "um pouco mais grosso", tanto que sua avó ficou assustada, referindo que o denunciado disse isso quando a polícia ainda não havia chegado.
Não obstante a imprecisão, necessário lembrar que os policiais ouvidos em juízo presenciaram os dizeres ameaçadores lançados pelo acusado contra a vítima, transparecendo para eles a impressão de que ele realmente prometia um mal injusto para a vítima caso ela o denunciasse na Delegacia.
A. A. G. relatou na fase judicial (fl. 229) que durante o momento em que a vítima estava arrumando seus pertences para deixar a residência, o acusado várias vezes falou que era para ela não envolver a polícia e registrar o fato, pois senão ele iria voltar "e matar todo mundo", ouvindo ainda que caso ela fizesse isso iria se arrepender.
No mesmo sentido vai o depoimento do Policial Militar M. V. S. na mídia acostada à audiência de fl. 229, o qual inclusive confirmou que foi a sua arma que o acusado tentou se apossar quando tentaram contê-lo, o que denota o estado de ira em que o acusado se encontrava naquele dia. A mesma testemunha confirmou que o acusado ameaçou a vítima dizendo que ela "ia se arrepender", momento "em que usou um tom forte", isso porque a vítima havia acionado a polícia, acrescentando que ela mostrou-se temerosa com a ameaça.
A ameaça foi praticada de modo velado, insinuada por via sub-reptícia, mas facilmente percebida pela vítima que, por todas os elementos envolvidos, sentiu-se seriamente ameaçada, tanto que não só ela ficou intimida e temerosa, como também aqueles que presenciaram o ocorrido enxergaram nas palavras do acusado a intenção de causar mal injusto à ofendida pelo fato de a polícia ter sido acionada.
O dolo específico do delito de ameaça caracteriza-se pela intenção de provocar medo na vítima, exteriorizada de forma fria pelo agente, consumando-se no momento em que o ofendido é alcançado pela promessa de que está sujeito a mal injusto e grave, e sua caracterização prescinde da efetiva produção do mal prometido.
Segundo Guilherme Souza Nucci, [...] é indispensável que o ofendido efetivamente se sinta ameaçado, acreditando que algo de mal lhe pode acontecer; por pior que seja a intimidação, se ela não for levada a sério pelo destinatário, de modo a abalar-lhe a tranquilidade de espírito e a sensação de segurança e liberdade, não se pode ter por configurada a infração penal. Afinal, o bem jurídico protegido não foi abalado. [...] (Código penal comentado. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 699-700).
Ainda que se trate de crime classificado como formal, que dispensa a produção de resultado naturalístico, é necessária a demonstração de que a ameaça causou perturbação à tranquilidade psíquica da vítima, que teme o cumprimento da promessa de mal injusto e grave exteriorada pelo agente. Em não tendo a vítima ficado amedrontada, o fato é atípico, pois trata-se de crime impossível, na medida em que as palavras proferidas pelo réu não a intimidaram, não sendo atingido, portanto, o bem jurídico protegido pela lei penal. (TJSC, Apelação Criminal n. 2013.031167-3, de Joinville, rel. Des. Jorge Schaefer Martins, j. 05-09-2013).
Nesse norte é a jurisprudência de nosso Tribunal:
[...].
CRIME CONTRA A LIBERDADE PESSOAL. AMEAÇA. PRETENSÃO ABSOLUTÓRIA. DECLARAÇÕES DA VÍTIMA QUE ENCONTRAM CONFORTO NOS DEMAIS ELEMENTOS DE CONVICÇÃO QUE FORMAM O CONJUNTO PROBATÓRIO.
RECURSO DESPROVIDO.
"Configura-se o crime de ameaça quando o agente infunde, na vítima, manifesto temor de que irá fazer-lhe mal injusto e grave" (APR n. 32.445, de Timbó, rel. Des. José Roberge)(AC n. 2009.031588-1, de Itajaí, rel Des. Sérgio Paladino, j. 6/10/2009).
No caso em mesa, denota-se claramente que a intenção do acusado era causar temor na vítima para tentar dissuadi-la da ideia de registrar a ocorrência policial, pois disse de modo bem claro que se ela fosse na Delegacia "iria se arrepender". A entonação de voz utilizada deixou bem evidente à vítima e aos demais presentes no palco delituoso que a intenção do acusado era a de intimidar e causar temor, sobretudo porque proferidas logo depois de ter sido praticada uma tentativa de agressão com uso de uma faca, o que seguramente emprestou credibilidade ainda maior aos dizeres do acusado.
Para corroborar essa conclusão, cite-se:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE AMEAÇA (ARTIGO 147 DO CÓDIGO PENAL). PALAVRAS DIRIGIDAS À VÍTIMA, COM NÍTIDO INTERESSE DE INCUTIR MAL INJUSTO E GRAVE, SÃO CARACTERIZADORAS DO CRIME DE AMEAÇA. PALAVRAS DA VÍTIMA NO ATO DE AMEAÇAR SÃO DECISIVAS NA CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE AMEAÇA, MORMENTE QUANDO COERENTES COM PROVAS TESTEMUNHAIS. SENTENÇA MANTIDA.
1. O crime de ameaça é de natureza formal, consumando-se no momento em que a vítima é alcançada pela promessa, manifestada pelo agente de forma verbal, por escrito ou gesto, de que estará sujeito a mal injusto e grave, incutindo-lhe fundado temor, não reclamando sua caracterização a produção de qualquer resultado material efetivo.
2. As palavras "toma cuidado comigo", proferidas por investigado em processo administrativo, presidido pela vítima, e a esta dirigida, são capazes de incutir temor ao seu destinatário, mormente quando aludido procedimento, com parecer da vítima, foi conclusivo pela aplicação de pena ao acusado, o que redundou em sua reprovação no estágio probatório e subseqüente demissão.
3. "Não tendo o acusado alcançado os pressupostos que o tornariam apto a receber proposta de transação penal ou suspensão condicional do processo (daí a formulação da denúncia), considera-se bem aplicada a reprimenda pena privativa de liberdade, bem como sua substituição por pena restritiva de direitos" (APJ 20040310123455, 1ª T. Recursal, rel. Juiz José Guilherme de Souza).
4. "Convergindo as provas orais colhidas no sentido de que o réu, de forma velada e passível de ensejar real temor, endereça promessa verbal crível, à vítima no sentido de que poderia atingi-la em sua integridade física e atacá-la de forma reflexa, resta consumado o crime de ameaça, ante o enquadramento da conduta em que incorrera na descrição do tipo, determinando a sua apenação no molde legalmente descrito" (APJ 20010410080926, 1ª Turma Recursal, rel. Juiz Teófilo Rodrigues Caetano Neto).
5. Sentença mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos, com Súmula de julgamento servindo de Acórdão, na forma do artigo 82, § 5º, da Lei nº 9.099/95. (Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do D.F., Relator: JOSÉ GUILHERME DE SOUZA. Julgamento: 03/10/2006, Publicação: DJU 26/02/2007 Pág. 130).
Desse modo, tendo a ameaça infundido na vítima temor de mal injusto e grave, imperiosa a condenação pelo crime preconizado no artigo 147 do Código Penal.
III. Porte ilegal de munição de uso permitido
Imputa-se ao acusado o delito previsto no Art. 12 da Lei 10.826/03, conduta assim tipificada:
Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Observa-se, assim, que o tipo penal previu como objetos materiais alternativos à arma de fogo, acessórios e munições, bastando, para a configuração do delito, a apreensão de qualquer um deles, ainda que de forma isolada.
Ademais, o referido crime classifica-se como de mera conduta, ou seja, prescinde da comprovação de efetivo prejuízo à sociedade ou eventual vítima para sua configuração, e de perigo abstrato, cujo risco inerente à conduta é presumido pelo tipo penal, motivo pelo qual não se exige prova da potencialidade lesiva dos artefatos ou apreensão concomitante de todos os instrumentos descritos no tipo penal.
Além disso, "'[...] É crime de perigo presumido, onde a quantidade de munição é irrelevante, pois basta a existência de um único projétil para se configurar a prática delitiva, já que a Lei 10.826/03 tem por finalidade o desarmamento da população, e tem como objeto a segurança pública' (TJPR - APR n. 326.542-9, de Ibiporã, rel. Des. Antônio Martelozzo)". (TJSC - Apelação Criminal n. 2008.006951-0, de Rio do Sul, Rel. Des. Sérgio Paladino, j. em 28/05/2008).
A materialidade do delito vem estampada no Auto de Exibição e Apreensão de fl. 46, descrevendo que foram apreendidas 21 munições intactas, marca CBC, calibre 22 e 1 caixa plástica cor laranja para munição.
Importante esclarecer que a apreensão da munição deu-se após a prisão do acusado, em momento em que ele já não se encontrava na residência. A prova oral mostra que duas guarnições da Polícia Militar foram deslocadas ao local para atender a ocorrência, tendo aquela composta pelos soldados A. e M. efetuado a condução do acusado para a Delegacia de Polícia pelos crimes praticados no âmbito da violência doméstica, ao passo que a guarnição dos soldados J. M. B. e W. R. de S. permaneceram na residência procedendo uma busca porque receberam a informação de o acusado poderia ter uma arma de fogo ou munições em seu poder.
O policial W. R. de S. foi ouvido na fl. 245 e declarou: foram chamados em apoio à viatura que deu início à agressão, tanto que ao chegar no local já observou o acusado deitado na cama e alegando que estava passando mal, sendo acionado o SAMU. Durante o atendimento foi localizada uma faca na cama, referindo que o acusado "estava transtornado". Confirmou que foi dada voz de prisão ao acusado "pelo crime que ele tinha cometido antes", sendo ele conduzido pela primeira viatura. Alegou que continuou na residência acompanhado de um parente da vítima, pois esta alegou que ele tinha "arma e munição", sendo que em buscas no quarto foi encontrado no criado-mudo, escondidas por baixo da última gaveta, um estojo com cerca de 20 munições. A munição foi localizada no mesmo quarto em que o acusado foi encontrado deitado. A vítima não chegou a indicar o local em que as munições foram encontradas, mencionando que além dos policiais o parente da vítima também estava auxiliando nas buscas, tanto que foi ele quem encontrou a munição no criado-mudo. O acusado já não estava na residência quando a munição foi localizada, tanto que não tiveram a oportunidade de questioná-lo acerca dos objetos. Não soube especificar exatamente de quem o rapaz que encontrou a munição era parente e muito menos o grau de parentesco, mas tem certeza que ele tinha alguma relação de parentesco com os envolvidos, eis que ele ficou com a chave da residência para que os policiais fizessem a busca. Tem certeza que esse parente não ficou em nenhum momento sozinho no quarto durante o período em que lá permaneceram, pois inicialmente estavam no quarto os policiais e os bombeiros que atenderam o acusado e depois que este foi levado preso, os policiais ficaram durante todo o tempo no quarto até que as munições foram localizadas. Relatou que após o acusado ter recebido voz de prisão a vítima mencionou que ele teve arma de fogo e que já havia puxado essa arma para um vizinho, tendo o depoente solicitado a ela autorização para fazer buscas dessa arma na casa e que ela deixasse alguém responsável com a chave da residência, tendo então ficado esse rapaz. A vítima não acompanhou as buscas. Referiu que era nítido que a vítima e o acusado usavam quartos distintos. Iniciaram as buscas pelo quarto usado pelo acusado, pois esse era o local mais provável em que os objetos ilícitos poderiam estar. Foi necessário retirar a gaveta para que a caixa de munições pudesse ser encontrada.
O soldado J. M. B. foi o outro policial que participou das buscas no quarto do acusado (audiência de fl. 245), relatando que foram em apoio à primeira guarnição que atendeu a ocorrência. Confirmou que foram encontradas munições em uma cômoda, sendo que o material foi encontrado de baixo da última gaveta. Relatou que a munição foi encontrada no mesmo quarto em que o acusado estava deitado quando chegaram no local, mas não soube dizer se esse quarto era usado somente por ele. Fizeram buscas porque ouviram de vizinhos que o acusado tinha uma arma, suspeita que foi confirmada pela vítima.
Constata-se, portanto, que a munição foi encontrada após uma busca efetuada na residência pelos policiais, o que decorreu de uma suspeita de que o acusado pudesse ter uma arma de fogo ou munições, calhando ressaltar de plano que o acusado negou ser proprietário dos projéteis e também não soube explicar como foram parar no seu quarto, sugerindo que alguém possa ter colocado no local com o intuito de prejudicá-lo.
Um primeiro aspecto que se coloca como relevante para o exame da prova da referida infração diz respeito ao local em que as munições foram encontradas, mais precisamente o quarto da residência. Embora o acusado tenha afirmado que ele e a vítima não vinham dormindo em quartos separados, resta evidente pela prova judicializada que essa era a realidade do casal, pois é situação mencionada pela vítima e pela informante L., bem como ficou isso bem evidenciado para o policial W., tanto que destacou tal impressão no seu depoimento. Vale lembrar que o acusado estava nesse quarto quando os policiais lá chegaram, sendo inclusive atendido nesse cômodo, tanto que os policiais iniciaram as buscas nesse local por deduzirem que se houvesse algo de ilícito estaria ali.
Fixado esse ponto, necessário incursionar pela legalidade da busca que culminou com a apreensão da munição, pois se trata de aspecto crucial para verificar a licitude - ou não – da prova da pratica delituosa.
O delito em comento, sem dúvida alguma, tem natureza permanente, eis que enquanto o agente estiver na posse da arma ou da munição sem a necessária autorização legal – que na hipótese sequer foi sugerida existir –, estará cometendo o delito (Guilherme de Souza Nucci, Leis Processuais Penais Comentadas, 8ª ed., Forense, 2014, vol. II, p. 16), pois segundo Claus Roxin delitos permentes (...) são aqueles em que o crime não está concluído com a realização do tipo, senão que se mantém pela vontade delitiva do autor por tanto tempo como subsiste o estado antijurídico criado por ele mesmo (Derecho Penal, parte general, p. 329, apud Aury Lopes Júnior, Prisões Cautelares, 4ª ed., Saraiva, p. 60).
Sendo assim, ao menos em tese, seria possível o ingresso dos policiais na residência sem a autorização de quem quer que fosse para fazer cessar o delito e prender o autor da infração em flagrante, na exata dicção do art. 303 do Código de Processo Penal, in verbis:
Art. 303. Nas infrações permanentes, entende-se que o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.
Com efeito, nas situações de flagrante delito – e assim também ocorre nos chamados crimes permanentes –, há uma mitigação do direito à inviolabilidade de domicílio, isso por exceção da própria norma constitucional insculpida no art. 5, XI, da Constituição Federal, segundo a qual a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
Isso não significa que qualquer suspeita da autoridade policial possa permitir o ingresso em residência sem ordem judicial ou a pretexto de coibir o flagrante delito, pois é necessário que se conheça com razoável segurança e de modo prévio a situação de flagrante delito para que se possa ingressar na residência sem ordem judicial, vale dizer, não cabe aqui mero "achismo" ou juízo de adivinhação.
Ora, se para o juiz deferir um pedido de busca e apreensão domiciliar se faz necessária a existência de fundadas razões que justifiquem a realização da diligência (art. 240, § 1º, do Código de Processo Penal), não é menos verdade que os policiais que ingressam em uma residência sem ordem judicial devam fazê-lo também mediante fundadas razões da ocorrência de um crime, não mera suspeita como ocorreu no caso em apreço, decorrente da indicação da vítima e dos "comentários de vizinhos", ficando claro que a vítima não tinha exata certeza da existência de arma de fogo ou das munições porque não indicou minimamente o local em que o material poderia estar dentro da residência, tanto que o policial Willian referiu que iniciaram as buscas pelo quarto do acusado, já que, nas suas palavras, ali seria o local mais provável para encontrar o material ilícito.
Sobre essa questão, são pertinentes as considerações de Maria Lúcia Karam:
Evidentemente, a situação de flagrância indicada pelas circunstâncias tem que ser constatada pelos agentes do Estado antes de sua entrada no domicílio. Simples informações ou suspeitas de que poderia estar ocorrendo um crime no interior de uma residência, ou de que ali haveria algo de interesse para a investigação de um crime, não autorizam a entrada. Tais elementos autorizam apenas o requerimento de uma ordem judicial para posterior busca na residência (Liberdade, intimidade, informação e expressão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 38).
Por mais que houvesse por parte dos policiais a intenção de localizar eventual arma de fogo e munições a fim de evitar que tais instrumentos pudessem ser usados na perpetração de novos atos de violência doméstica por parte do acusado, não se revela adequado entender que o fim justifique os meios, pois não é possível apreciar um direito fundamental previsto na Carta Magna – tal qual se revela a inviolabilidade de domicílio – de forma relativizada, sob pena de subversão das regras constitucionais e legais que permeiam a investigação criminal.
Como destaca Iuri Victor Romero Machado:
O direito à inviolabilidade domiciliar, como um dos mais elementares do ser humano, é assegurado pelas mais diversas legislações do mundo ocidental, fazendo-se presente tanto nas Convenções de Direitos Humanos, quanto nas Constituições ou nas legislações infraconstitucionais.
Essa marcada presença decorre da reconhecida necessidade de se preservar a intimidade e o direito à propriedade que se estende a todos os indivíduos, eis que "uma sociedade sadia, civil, que tenha decoro, deve garantir ao indivíduo [...] um oásis, um refúgio contra a indiscrição alheia, um recinto pessoal, um lugar inviolável que constitua a sua cidadela". Não por outra razão, ainda em 1886, assim afirmou a Suprema Corte Americana: "Our law holds the property of every man so sacred, that no man can set his foot upon his neighbour's close without his leave". E, mesmo antes, Lord Chatam proferiu seu famoso discurso perante o Parlamento inglês, destacando que:
O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento pode soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar. (Inviolabilidade Domiciliar: Novas Perspectivas a partir do Direito Comparado. Extraído dehttp://emporiododireito.com.br/inviolabilidade-domiciliar-novas-perspectivas-a-partir-do-direito-comparado-por-iuri-victor-romero-machado/, consulta realizada em 03/08/2015).
Dito isso, vê-se que os policiais somente poderiam efetuar a busca domiciliar na hipótese de haver fundada suspeita da prática delituosa, o que não ocorria na espécie. Houve menção hipotética pela vítima da possível existência de arma de fogo e de munições, não se obtendo além disso nenhuma informação mais concreta acerca do fato, mas apenas comentários de vizinhos, sendo que nenhum deles chegou a ter o nome mencionado para se aquilatar qual conhecimento tinha a respeito dos fatos.
Neste ponto, certamente o leitor mais apressado estará imaginando que este magistrado não leu atentamente os depoimentos, pois a vítima deu autorização para que os policiais fizessem a busca na residência, o que é indiscutível. Contudo, veremos que essa autorização não era suficiente na hipótese vertente, pois também é incontroverso nos autos que ela não era a única proprietária do imóvel, o que significa dizer que o acusado deveria ter manifestado seu consentimento expresso para que a busca fosse realizada e isso não ocorreu, o que fulmina em definitivo a licitude da diligência policial.
É evidente que se a busca domiciliar visava a apuração de um ilícito envolvendo o acusado e não a vítima – e sendo ambos proprietários do imóvel –, havia a necessidade daquele ser cientificado da diligência policial e de suas consequências, isso sem falar na exigência de concordar de modo expresso com a busca, sobretudo porque os objetos tidos como ilícitos foram encontrados no cômodo da casa que era usado pelo acusado para seu repouso, situação igualmente evidenciada nos autos. E isso não ocorreu, pois quando a busca se iniciou o acusado sequer encontrava-se no local, pois aquela altura já havia sido conduzido para a Delegacia de Polícia.
Nessa linha de ideias, não poderia ser mais precisa a lição de Pierpaolo Cruz Bottini e Ana Fernanda Ayres Dellosso:
Como se sabe, o art. 5.º, XI, da Constituição da República, entre os direitos fundamentais, protege a casa, como asilo inviolável do indivíduo. O mesmo dispositivo estabelece exceções ao direito fundamental. Logo, por expressa previsão constitucional, as seguintes situações autorizam a violação do domicílio, sem o consentimento do morador: (I) flagrância delitiva; (II) necessidade de prestar socorro; e (III) autorização judicial. No entanto, em muitos casos, policiais adentram residências particulares, sem que presentes quaisquer destas situações excepcionais, sob o pretexto de terem obtido o consentimento do morador. (...) Frise-se a importância da discussão sobre a inviolabilidade do domicílio nessas duas situações, especialmente sob o prisma das provas ilícitas. Embora o Código de Processo Penal discipline o tema no título destinado às provas, a medida de busca e apreensão não configura propriamente meio de prova, mas meio de obtenção de prova. Mediante medidas de busca e apreensão se conservam elementos de provas, de tal forma que, se nulas as medidas, devem ser anuladas as provas obtidas por meio delas (CPP, art. 157, § 1.º).
Ainda em considerações iniciais, de se ver que a busca e apreensão já inicia, em sua previsão constitucional, como medida excepcional, vale dizer, como exceção ao sistema de proteção dos direitos fundamentais, o que ganha denotada importância para interpretação e aplicação das regras processuais nos casos práticos. Posto isso, importante analisar a situação do dito "consentimento" do morador, apto a excepcionar a regra da inviolabilidade do domicílio e autorizar a busca sem mandado judicial. Sabe-se que, nas buscas domiciliares, há um conflito de interesses em jogo – a busca da verdade, para realização da justiça criminal, e a preservação da intimidade e da inviolabilidade do domicílio. O consentimento do morador aparece como primeira forma de solução desse conflito. No entanto, é preciso cautela na sua análise, sempre diante das circunstâncias de obtenção da prova e da atuação da autoridade policial.
Como pontua a doutrina processual penal, durante o dia ou à noite, o morador pode permitir a entrada em sua casa e, nessa situação, dispensa-se mandado judicial para realização de busca domiciliar. O consentimento, porém, deve ser real e livre, despido de vícios como o erro, violência ou intimidação. Evidentemente que, em cada caso concreto, o consentimento do morador deve ser analisado com cautela e nunca presumido, especialmente para que se evitem abusos da autoridade policial.
Sobre o cenário de muitos casos brasileiros, Cleunice Pitombo destaca: "Infelizmente, no Brasil e em outros lugares, em que o miúdo desconhece os próprios direitos, o abuso policial surge manifesto. A polícia invade casas e o morador, temeroso, tímido, não lhe coarcta o passo".
O TJRS recentemente destacou a invalidade do consentimento de pessoa investigada por tráfico de drogas. Na ocasião, o Desembargador relator pontuou: "Não existe previsão legal para a busca domiciliar a partir da permissão informal do proprietário. Do consentimento a que se refere o art. 5.º, XI, da CF não se infere que poderão ser realizadas buscas sem determinação judicial, apenas sob a anuência do morador. Se assim fosse, veríamo-nos diante de um quadro temerário, no qual os mandados de busca e apreensão seriam dispensáveis, já que polícia sempre poderia conseguir, extrajudicialmente, o "consentimento" do proprietário. Afinal, é de se ter em conta que, nas circunstâncias descritas nos autos esse aval foi dado sob constrangimento" (Ap 70058172628, Rel. Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro, 3.ª Câmara Criminal, DJ 24.06.2014).
Dessarte, se há o consentimento do morador para buscas domiciliares, algumas questões devem ser bem refletidas: (I) forma do consentimento; (II) pessoa que consente e seu grau de esclarecimento sobre as implicações da medida. Sobre a forma do consentimento, deve ser expresso e jamais presumido, sendo que não há previsão legal de forma especial. (...). No tocante à pessoa que consente, deve ser aquele titular do direito à inviolabilidade do domicílio. A doutrina destaca que a permissão deve ser do próprio sujeito da medida de busca e apreensão ou de outra pessoa que possa, legitimamente, representá-lo. Ressalvas são feitas, ainda, às habitações coletivas, em que o consentimento por um dos moradores não autoriza a busca na casa ou aposento de terceiros.
No entanto, maior relevo tem a questão do grau de esclarecimento do morador que consentiu na realização da busca e apreensão. Para que se solucione o conflito de interesses – busca da verdade para realização da justiça e inviolabilidade do domicílio – por via consensual, é necessário que aquele que consente tenha pleno conhecimento das circunstâncias e consequências da realização da busca domiciliar, bem como que isso seja documentado. No ponto, não há previsão legal. Contudo, tratando-se de medida que pode implicar a produção de prova contra o próprio morador que consente com a busca, para que ele decida de forma justa e válida se franqueará a entrada em sua residência, necessário que no mínimo lhe sejam esclarecidos seus direitos e o alcance da inviolabilidade do domicílio, bem como as consequências da realização da busca domiciliar.
A mesma lógica e o mesmo cuidado são observados nos procedimentos de interrogatórios, tanto judicial quanto policial, a fim de garantir o direito da pessoa de não produzir prova contra si (deriva das previsões constitucionais – art. 5.º, LVII e LXII – e consagrado do Pacto de São José da Costa Rica, art. 8.º). (...) Além disso, no ponto do consentimento, necessária observância de cuidados, a fim de assegurar que este seja consciente e válido. Frise-se que o consentimento não se presume e requer prova, cujo ônus é do Estado (TRF 2.ª Região, RSE 200551015058355, DJ 22.10.2008). Mais do que isso, parece-nos essencial que sejam esclarecidos, ao sujeito da medida e de forma documentada, os seus direitos, o alcance da inviolabilidade do domicílio e as consequências de sua decisão por franquear a entrada de policiais para a busca domiciliar. Trata-se de medidas mínimas para coibir abusos da autoridade policial e fazer valer um Estado Democrático de Direito." (grifei – Apud Rômulo de Andrade Moreira. O crime permanente e a inviolabilidade do domicílio, extraído de http://emporiododireito.com.br/o-crime-permanente-e-a-inviolabilidade-do-domicilio-por-romulo-de-andrade-moreira/#_ftn1, consulta efetuada em 03/08/2015).
Portanto, foi inconstitucional e ilegal a apreensão realizada na residência do acusado no que diz respeito ao delito de porte ilegal de munição.
Em consequência, devem ser desconsiderados por completo o auto de apreensão desse material, bem como quaisquer testemunhos alusivos a todo material ilícito em questão, por força do art. 5º, LVI, da Constituição, segundo o qual "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos" e as provas daí derivadas, ainda que estas tenha sido produzidas sob o crivo do contraditório (art. 157, e respectivos parágrafos, do CPP).
Em reforço a essa conclusão, Marco Antônio Garcia de Pinho leciona que (...) a questão das provas ilícitas por derivação, isto é, aquelas provas e matérias processualmente válidas, mas angariadas a partir de uma prova ilicitamente obtida é, sem dúvida, uma das mais tormentosas na doutrina e jurisprudência. Trata-se da prova que, conquanto isoladamente considerada possa ser considerada lícita, decorra de informações provenientes da prova ilícita. Nesse caso, hoje, nossos tribunais vêm tomando por base a solução da Fruits of the Poisonous Tree, adotada pela US Supreme Court. Esse entendimento, na doutrina pátria, é adotado, dentre outros autores, por Grinover e Gomes Filho. Já Avolio, também tratando com maestria sobre o assunto, concluiu não ser possível a utilização das provas ilícitas por derivação no nosso direito pátrio. Há pouco mais de dez anos, em maio de 1996, o STF confirmou sua posição quanto à inadmissibilidade das provas derivadas das ilícitas, posicionamento, hoje, ainda mais pacífico tendo à frente a ministra Ellen Gracie e os ministros como Gilmar Mendes, Peluzo e Joaquim Barbosa. A prova ilícita por derivação se trata da prova lícita em si mesma, mas cuja produção decorreu ou derivou de outra prova, tida por ilícita. Assim, a prova originária, ilícita, contamina a prova derivada, tornando-a também ilícita. É tradicional a doutrina cunhada pela Suprema Corte norte-americana dos "Frutos da Árvore Envenenada" —Fruits of the Poisonous Tree— que explica adequadamente a proibição da prova ilícita por derivação.
Prossegue este mesmo autor (...) que se sustenta um argumento relacional, ou seja, para se considerar uma determinada prova como fruto de uma árvore envenenada, deve-se estabelecer uma conexão entre ambos os extremos da cadeia lógica; dessa forma, deve-se esclarecer quando a primeira ilegalidade é condição sine qua non e motor da obtenção posterior das provas derivadas, que não teriam sido obtidas não fosse a existência da referida ilegalidade originária. Estabelecida a relação, decreta-se a ilegalidade. O problema é análogo, diga-se, ao direito penal quando se discute com profundidade o tema do nexo causal. É possível que tenha havido ruptura da cadeia causal ou esta se tenha enfraquecido suficientemente em algum momento de modo a se fazer possível a admissão de determinada prova porque não alcançada pelo efeito reflexo da ilegalidade praticada originariamente. ("Breve ensaio das provas ilícitas e ilegítimas no direito processual penal", http://ultimainstancia.uol.com.br/ensaios/ler_noticia.php?idNoticia=34917, apud Rômulo de Andrade Moreira, op. cit).
Outra não é a orientação do e. Supremo Tribunal Federal:
PROVA PENAL – BANIMENTO CONSTITUCIONAL DAS PROVAS ILÍCITAS (CF, ART. 5º, LVI) – ILICITUDE (ORIGINÁRIA E POR DERIVAÇÃO) – INADMISSIBILDADE – BUSCA E APREENSÃO DE MATERIAIS E EQUIPAMENTOS REALIZADA, SEM MANDADO JUDICIAL, EM QUARTO DE HOTEL AINDA OCUPADO – IMPOSSIBLIDADE – QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DESSE ESPAÇO PRIVADO (QUARTO DE HOTEL, DESDE QUE OCUPADO) COMO "CASA", PARA EFEITO DA TUTELA CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR – GARANTIA QUE TRADUZ LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO EM SUA FASE PRÉ-PROCESSUAL – CONCEITO DE "CASA" PARA EFEITO DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 5º, XI E CP, ART. 150, § 4º, II) – AMPLITUDE DESSA NOÇÃO CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS APOSENTOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO, POR EXEMPLO, OS QUARTOS DE HOTEL, PENSÃO, MOTEL E HOSPEDARIA, DESDE QUE OCUPADOS): NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI). IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA COM TRANSGRESSÃO À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR – PROVA ILÍCITA – INIDONEIDADE JURÍDICA – RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. BUSCA E APREENSÃO EM APOSENTOS OCUPADOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO QUARTOS DE HOTEL) – SUBSUNÇÃO DESSE ESPAÇO PRIVADO, DESDE QUE OCUPADO, AO CONCEITO DE "CASA" – CONSEQÜENTE NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL.
– Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de "casa" revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer aposento de habitação coletiva, desde que ocupado (CP, art. 150, § 4º, II), compreende, observada essa específica limitação espacial, os quartos de hotel. Doutrina. Precedentes. – Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público poderá, contra a vontade de quem de direito ("invito domino"), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em aposento ocupado de habitação coletiva, sob pena de a prova resultante dessa diligência de busca e apreensão reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude originária. Doutrina. Precedentes (STF).
ILICITUDE DA PROVA – INADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM JUÍZO (OU PERANTE QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) – INIDONEIDADE JURÍDICA DA PROVA RESULTANTE DA TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS.
– A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do "due process of law", que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo.
– A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em consequência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do "male captum, bene retentum". Doutrina. Precedentes.
A QUESTÃO DA DOUTRINA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA ("FRUITS OF THE POISONOUS TREE"): A QUESTÃO DA ILICITUDE POR DERIVAÇÃO.
– Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subsequente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária.
– A exclusão da prova originariamente ilícita – ou daquela afetada pelo vício da ilicitude por derivação – representa um dos meios mais expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do "due process of law" e a tornar mais intensa, pelo banimento da prova ilicitamente obtida, a tutela constitucional que preserva os direitos e prerrogativas que assistem a qualquer acusado em sede processual penal. Doutrina. Precedentes. – A doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos "frutos da árvore envenenada") repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de repercussão causal. Hipótese em que os novos dados probatórios somente foram conhecidos, pelo Poder Público, em razão de anterior transgressão praticada, originariamente, pelos agentes da persecução penal, que desrespeitaram a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar.
– Revelam-se inadmissíveis, desse modo, em decorrência da ilicitude por derivação, os elementos probatórios a que os órgãos da persecução penal somente tiveram acesso em razão da prova originariamente ilícita, obtida como resultado da transgressão, por agentes estatais, de direitos e garantias constitucionais e legais, cuja eficácia condicionante, no plano do ordenamento positivo brasileiro, traduz significativa limitação de ordem jurídica ao poder do Estado em face dos cidadão. (grifei - STF, Segunda Turma, à unanimidade, Recurso em Habeas Corpus nº. 90.376/RJ, Rel. Min. Celso de Mello).
Em suma, havendo ilicitude na prova em que se assenta a acusação e sendo o caso de desprezá-la in totum, inafastável a conclusão de que o acusado deve ser absolvido por deficiência de provas.
IV. Concurso material
Impõe-se, in casu, o reconhecimento do concurso material entre os crimes de lesão corporal tentado e ameaça.
Não cabe falar em pos factum impunível, na medida em que os objetos jurídicos tutelados são absolutamente diferentes. Enquanto no delito de lesão corporal protege-se a incolumidade e a saúde física, no crime de ameaça, busca-se resguardar a paz de espírito e a tranquilidade espiritual das pessoas. Ademais, as condutas praticadas pelo réu são absolutamente autônomas, embora dentro de um mesmo contexto fático, o de abuso e violência nas relações domésticas.
Portanto, é o caso de reconhecer o concurso material de crimes, o que implica na soma das penas que vierem a ser aplicadas.
V. Dosimetria das penas
Censurável e antijurídica a conduta do réu, cuja culpabilidade ressume demonstrada nos autos, eis que se trata de pessoa mentalmente sã e imputável, tendo agido com elevada consciência da ilicitude do ato praticado; seus antecedentes criminais não registram qualquer registro negativo, mormente porque a simples existência de outro processo em andamento não leva à consideração negativa da presente circunstância na forma da Súmula 444 do STJ (fl. 32); a conduta social não conta com elementos suficientes para que possa ser aferida de modo negativo; a personalidade do réu, apesar de aparentemente desviada em função da pratica delituosa em análise nos autos, não pode ser apreciada pelo viés jurídico e sim psicológico, exigindo-se para sua completa aferição a realização de laudo psicológico (TJSC, Apelação Criminal n. 2012.059923-6, de Mafra, rel. Des. Cinthia Beatriz da S. Bittencourt Schaefer, j. 10-09-2013), de sorte que não pode ser sopesada negativamente; os motivos da prática delitiva estão relacionados, basicamente, com o descontentamento do acusado com a negativa da vítima em trocar a residência do casal por outra e a posterior desaprovação da atitude da vítima em registrar os fatos perante à autoridade policial, motivações que se revelam dentro da normalidade; as circunstâncias denotariam a alta reprovabilidade da conduta ora apenada, eis que os delitos foram praticados como se o réu nunca tivesse mantido qualquer vínculo afetivo ou emocional com a vítima, mas como tal característica já é inerente aos delitos permeados pela violência doméstica – não extrapolando a normalidade –, entende nossa Corte de Justiça que tal particularidade não pode agravar a pena (Apelação Criminal n. 2013.062006-0, de Tubarão, Relator Des. Subst. Volnei Celso Tomazini); as consequências foram normais à espécie; a vítima não contribuiu para a conduta do réu.
Assim, por infração ao art. 129, § 9º do CP e com base nestas circunstâncias, na primeira fase, fixo a pena-base em 3 (TRÊS) meses de detenção.
Na segunda fase, ausentes circunstâncias atenuantes ou agravantes, mantenho a reprimenda no patamar anteriormente fixado.
Lembre-se, por oportuno, que a (...) violência doméstica constitutiva do crime de lesão corporal descrito no art. 129, § 9º do Código Penal impede a incidência da agravante geral prevista no art. 61, II, letra "f" do mesmo diploma legal. (TJRS, APELAÇÃO CRIME Nº 70022258974, Rel. DES. VLADIMIR GIACOMUZZI), evitando-se com isso o (...) bis in idem, afinal o fato de o agente prevalecer-se de relações domésticas (art. 61, II, "f", CP) é circunstância inerente ao delito do art. 129, § 9º, do mencionado diploma legal. (Apelação Criminal n. 2014.051268-7, de Chapecó, Relator: Des. Paulo Roberto Sartorato).
Na terceira fase, ausentes causas especiais de aumento da pena. Presente, contudo, a causa de especial diminuição de pena prevista no art. 14, II, parágrafo único, do Código Penal, reduzo a pena em 2/3 (dois terços) e fixo-a, definitivamente, em 1 (UM) MÊS DE DETENÇÃO.
Por infração ao art. 147, do CP, fixo na primeira fase da dosimetria, a pena em 1 (UM) MÊS DE DETENÇÃO, devendo ser anotado que no caso não cabe a adoção da pena de multa por expressa vedação legal (art. 17, da Lei Maria da Penha).
Presente a circunstância agravante prevista no art. 61, II, "f", do Código Penal, pois o crime foi praticado a esposa do acusado em contexto de violência doméstica e familiar. Cabe lembrar que tal circunstância não é inerente ao tipo penal violado, como ocorre na lesão corporal, de sorte que cabe sua incidência no caso em mesa.
Desse modo, aumento a pena retro em 10 dias, fixando-a em 1 (UM) MÊS e 10 (DEZ) DIAS DE DETENÇÃO mês/dias de detenção.
Na terceira fase, ausentes causas especiais de aumento e diminuição de pena, de sorte que resta a pena quantificada, definitivamente, em 1 (UM) MÊS e 10 (DEZ) DIAS DE DETENÇÃO .
Considerando o reconhecimento do concurso material entre os delitos, procede-se a soma das penas retro quantificadas na forma do art. 69 do Código Penal, de sorte que a pena totaliza 2 (DOIS) MESES e 10 (DEZ) DIAS DE DETENÇÃO.
O regime para o cumprimento da pena corporal será o ABERTO (art. 33, § 2º, "c", do CP).
VI. Substituição da pena privativa de liberdade
Os delitos em análise – em face de sua natureza –, não comportam a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito, mesmo levando-se em conta o Enunciado 6 do FONAJE, in verbis:
ENUNCIADO 6 – A Lei n.º 11.340/06 não obsta a aplicação das penas substitutivas previstas no Código Penal, vedada a aplicação de penas de prestação pecuniária ou pagamento isolado de multa.
É que os crimes foram praticados com violência e grave ameaça contra a pessoa, incidindo a vedação expressa contida no art. 44, I, do Código Penal, in literis:
Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo [...]. (grifou-se)
Sendo assim, tendo em conta que os delitos foram praticados com violência e grave ameaça contra a pessoa, desaconselhável a concessão da referida benesse, mesmo porque trataram-se de ilícitos perpetrados em contexto de violência doméstica e também por isso a substituição é ainda menos recomendada (art. 44, III, do Estatuto Repressivo).
Nesse sentido, extrai-se da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mutatis mutandis:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. NÃO CABIMENTO. AMEAÇA, VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO E VIAS DE FATO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. IMPOSSIBILIDADE. ART. 44, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO [...].
III - A jurisprudência desta Corte se firmou no sentido da inaplicabilidade da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos em casos como o presente, em que o delito é cometido mediante ameaça, em virtude do óbice contido no art. 44, inciso I, do Código Penal (v.g. HC n. 294007/MS, Sexta Turma, Rel.ª Ministra Marilza Maynard (Desembargadora convocada do TJ/SE), DJe de 27/6/2014; HC n. 290650/MS, Quinta Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe de 22/5/2014; RHC n. 36539/MS, Sexta Turma, Rel.ª Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 20/5/2014; HC n. 284785/MS, Quinta Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe de 2/5/2014.) Habeas corpus não conhecido (HC n. 264.155/MS, rel. Min. FELIX FISCHER, j. 16-9-2014).
Na mesma toada, o egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
APELAÇÃO CRIMINAL. LESÕES CORPORAIS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA.
PLEITO ABSOLUTÓRIO. INVIABILIDADE. MATERIALIDADE DO CRIME E AUTORIA DEVIDAMENTE COMPROVADAS. PALAVRA DA VÍTIMA UNÍSSONA E COERENTE AO RELATAR AS LESÕES PRATICADAS PELO RÉU, AS QUAIS FORAM ATESTADAS POR MEIO DE LAUDO PERICIAL E ESTÃO EM CONSONÂNCIA COM A CONFISSÃO DO RECORRENTE EM AMBAS AS FASES PROCESSUAIS. PLEITO DE INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE, NA ESPÉCIE. CONDUTA QUE NÃO PODE SER CONSIDERADA IRRELEVANTE DIANTE DOS BENS JURÍDICOS TUTELADOS. ABSOLVIÇÃO INVIÁVEL. CONDENAÇÃO MANTIDA.
PEDIDO DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. IMPOSSIBILIDADE. VEDAÇÃO EXPRESSA DO ART. 44, I, DO CP. DELITO COMETIDO COM GRAVE AMEAÇA À PESSOA. PRECEDENTES. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Criminal n. 2014.058313-6, de Blumenau. Relator: Des. Rui Fortes).
VII. Suspensão condicional da pena
Embora não seja possível a aplicação ao réu das medidas despenalizadoras previstas no art. 44 do CP, conforme já analisado, entendo ser possível a aplicação da suspensão da pena – sursis. A propósito, sobre o tema, preleciona a Des.ª Maria Berenice Dias:
SURSIS - Como a pena do crime de lesão corporal qualificada pela violência doméstica é de três meses a três anos o agressor tem direito à suspensão condicional da pena, o chamado sursis (CP, art. 77), que voltará a se revestir de importância ímpar nos delitos contra a mulher tutelados pela Lei Maria da Penha. A concessão desta benesse não está condicionada à natureza do crime, mas tão só à quantidade da pena (basta não ter sido aplicada pena superior a 2 anos. (DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça, São Paulo, Editora RT, 2007, p. 108.).
No mesmo sentir:
EMENTA: LESÃO CORPORAL - SUBSTITUIÇÃO DA PENA CORPORAL POR RESTRITIVAS - IMPOSSIBILIDADE - SURSIS - PRESENÇA DE REQUISITOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS - CONCESSÃO - POSSIBILIDADE. 1 - Não há como substituir a pena privativa de liberdade por restritivas de direitos em delitos de lesão corporal, pois, ainda que a pena não tenha sido fixada em patamar superior a quatro anos, não se pode esquecer que o mesmo foi cometido com violência contra a vítima. 2 - Ainda que o agente não faça jus à substituição da pena por restritivas de direitos, por ter o delito sido praticado com violência contra a pessoa, não há impedimento à concessão do sursis quando este reúne os requisitos objetivos e subjetivos preconizados no art. 77 do Código Penal. 3 - Recurso ministerial provido, mas, de ofício, concedido ao apelado o sursis pelo prazo de 02 (dois) anos, mediante condições a serem delineadas pelo juízo da execução. (TJMG -APELAÇÃO CRIMINAL N° 1.0132.06.005250-4/001 - RELATOR: EXMO. SR. DES. ANTÔNIO ARMANDO DOS ANJOS).
Com efeito, dispõem o art. 77 e art. 78, ambos do CP, in verbis:
Art. 77 - A execução da pena privativa de liberdade, não superior a 2 (dois) anos, poderá ser suspensa, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que:
I - o condenado não seja reincidente em crime doloso;
II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias autorizem a concessão do benefício;
III - Não seja indicada ou cabível a substituição prevista no art. 44 deste Código.
§ 1º - A condenação anterior a pena de multa não impede a concessão do benefício. (Redação dada pela Lei 7.209, de 11.7.1984)
§ 2º A execução da pena privativa de liberdade, não superior a quatro anos, poderá ser suspensa, por quatro a seis anos, desde que o condenado seja maior de setenta anos de idade, ou razões de saúde justifiquem a suspensão. (Redação dada pela Lei 9.714, de 25.11.1998.)
Art. 78 - Durante o prazo da suspensão, o condenado ficará sujeito à observação e ao cumprimento das condições estabelecidas pelo juiz.
§ 1.º - No primeiro ano do prazo, deverá o condenado prestar serviços à comunidade (art. 46) ou submeter-se à limitação de fim de semana (art. 48).
§ 2.º - Se o condenado houver reparado o dano, salvo impossibilidade de fazê-lo, e se as circunstâncias do art. 59 deste Código lhe forem inteiramente favoráveis, o juiz poderá substituir a exigência do parágrafo anterior pelas seguintes condições, aplicadas cumulativamente:
a) proibição de freqüentar determinados lugares;
b) proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do juiz;
c) comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.
O sentenciado é primário (art. 77, I, do CP) e as circunstâncias concretas do caso, conjugadas com os elementos subjetivos apreciados no art. 59 do CP (art. 77, II, do CP), autorizam a concessão do benefício. Além disso, a pena aplicada foi inferior a 02 (dois) anos (art. 77, do CP) e a substituição da pena não é cabível no caso (art. 77, III, do CP).
Com efeito, o sentenciado será submetido a um período de prova de 02 (dois) anos, oportunidade em que ficará sujeito às condições do sursis simples (art. 78, § 2º, do Código Penal), na medida em que as circunstâncias do art. 59 do Código Penal lhe são inteiramente favoráveis e não se trata de crime que envolva a reparação dos danos, cabendo lembrar que é inviável cumular as condições do sursis simples e as condições do sursis especial previsto no art. 78, § 1º, do Código Penal.
Válida, no ponto, a lição de Julio Fabbrini Mirabete:
Não é possível, segundo a jurisprudência firmada, a aplicação cumulativa das condições previstas nos §§ 1º e 2º do art. 78, pois as últimas são substitutivas daquelas, se preenchidos os requisitos legais. (Código Penal interpretado. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 630).
Acerca do tema, nosso Sodalício já se manifestou:
APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL DE NATUREZA LEVE (CP, ART. 129, § 9.º). CONDENAÇÃO. RECURSO DEFENSIVO. [...] SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA. CUMULAÇÃO DAS CONDIÇÕES PREVISTAS NO ART. 78, §§ 1.º E 2.º, DO CÓDIGO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. SURSIS ESPECIAL QUE SUBSTITUI O SIMPLES. AFASTAMENTO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE. É inadmissível a combinação das condições previstas para as duas espécies de suspensão da pena, isto é, impor a prestação de serviços à comunidade juntamente com as condições elencadas no art. 78, § 2.º, do Código Penal, uma vez que o sursis especial substitui o simples. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (Apelação Criminal n. 2011.047626-5, de Chapecó, Rel. Des. Roberto Lucas Pacheco, j. em 31/05/2012).
Portanto, a pena ficará suspensa pelo prazo de 2 anos, mediante o cumprimento das seguintes condições:
1) Não se ausentar da cidade onde reside ou mudar de residência, sem prévia autorização judicial;
2) Comparecer em Juízo MENSALMENTE, para informar e justificar suas atividades;
3) Não portar armas ou instrumentos capazes de ofender a integridade física de outrem (art. 79, do CP).
VIII. Dispositivo
Ante o exposto, e tudo mais que dos autos conta, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido contido na denúncia, para, em consequência, CONDENAR M. da S. à pena privativa de liberdade de 2 (DOIS) MESES e 10 (DEZ) DIAS DE DETENÇÃO, em regime ABERTO, dando-o como incurso no art. 129, § 9º c/c o art. 14, II, e art. 147 c/c o art. 61, II, "f", ambos c/c o art. 69, todos do Código Penal.
Por outro lado, ABSOLVO M. da S. da imputação do art. 12 da Lei n. 10.826/03, o que faço amparado pelo art. 386, VII, do Código de Processo Penal.
Conforme razões já declinadas, concedo ao réu o benefício da suspensão condicional da pena pelo período de dois anos mediante o cumprimento das condições supra elencadas.
Condeno o réu no pagamento de custas processuais.
Não obstante a absolvição pelo crime de porte de munições, decreto o perdimento das munições apreendidas na fl. 46, eis que o réu negou ser o proprietário e porque não houve a apresentação até o momento de qualquer pedido de restituição, sobretudo amparado em prova que torne lícito o porte, de modo que o material deve ser encaminhado ao Exército para posterior destinação adequada. Por absolutamente inúteis, também decreto o perdimento dos demais bens apreendidos, os quais devem ser encaminhados para destruição.
Procedam-se as devidas comunicações, conforme recomendado pela Egrégia Corregedoria-Geral de Justiça.
Transitada em julgado, lance-se o nome do condenado no rol dos culpados e forme-se o PEC para posterior remessa à Vara de Execuções Penais.
Publique-se.
Registre-se.
Intimem-se.
.
Tubarão (SC), 3 de agosto de 2015.
Mauricio Fabiano Mortari
Juiz de Direito
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