O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA E SUAS ARTICULAÇÕES JURÍDICAS NO BRASIL

28/09/2021

  Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Ao abordar o assunto dos atravessamentos legais implicados no autismo, faz-se necessário apresentar um panorama breve sobre o que de fato define esta categoria, suas características, nomenclaturas e outras especificidades que contextualizam os tópicos próprios do direito que serão elaborados mais adiante. O Transtorno do Espectro Autista, ou TEA, é um transtorno do neurodesenvolvimento, o que denota diferenças no modo como o sistema nervoso do indivíduo se desenvolve, tanto em estrutura como em função. A prevalência do autismo ocorre entre cerca de 1 e 2% da população geral (DI MARTINO et al, 2014), porém este é um dado de difícil quantificação devido ao grande número de diagnósticos em países mais desenvolvidos em comparação com os países menos desenvolvidos.

Na maior parte dos casos (DI MARTINO et al, 2014), o autista possui uma genética característica, porém a sua ampla variabilidade dificulta predições genéticas precoces. Usualmente, as testagens genéticas ocorrem após os diagnósticos terem sido conferidos. Eles são apoiados por escalas, contudo o julgamento clínico obtém ampla preferência, em especial advindo dos psiquiatras. Uma problemática inerente deste método menos objetivo é a maior facilidade de diagnósticos equivocados ocorrerem, o que consequentemente afeta a maneira pela qual a criança será tratada e, para a temática deste texto, afeta as leis que estão implicadas para com esta criança; se um autista for erroneamente diagnosticado com o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade - TDAH -, por exemplo, ele não terá acesso aos direitos garantidos para pessoas com deficiência.

Além da questão social, o autismo geralmente provoca interesses restritos, comportamentos estereotipados e alterações sensoriais (ROGERS e DAWSON, 2010). Estes aspectos contemplam os atuais critérios diagnósticos do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM-V (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). Nota-se, todavia, que apesar de suas dificuldades, as pessoas autistas normalmente são capazes de aprender tão rápido quanto crianças típicas - exceções ocorrem em comorbidades com outras condições -, porém características como interesses específicos podem fazer com que aprendam sobre coisas igualmente específicas de sua experiência com o mundo. Vale lembrar, também, que  a rigidez lógica do autismo estereotípico pode inclusive ser benéfica em determinados contextos, como no desenvolvimento de softwares, engenharia, matemática, entre outros.

Em relação ao autismo em homens e mulheres, observa-se uma prevalência masculina no diagnóstico, cerca de 3 a 4 vezes maior (BARON-COHEN et al., 2011). A literatura disponível atualmente aborda diversas explicações possíveis para este fenômeno, como a teoria do “cérebro masculino extremo”, o córtex cerebral ser mais fino em homens do que mulheres, e ainda mais no autismo, altos níveis de exposição à testosterona fetal, genética ligada ao cromossomo X, entre outras (BARON-COHEN et al., 2011; BARON-COHEN et al., 2015). As teorias biológicas são diversas e, além delas, a influência de papéis de gênero é inegável. Um fenômeno observado em pautas atuais é a “camuflagem” ou “mascaramento”, onde mulheres autistas aprendem a esconder os seus sintomas autistas (PEARSON e ROSE, 2021) e recebem um diagnóstico tardio ou até não o recebem. Novamente, do ponto de vista legal, é problemático não contemplar uma mulher autista com os direitos que a ela são cabíveis.

Uma descrição compreensiva do TEA não seria possível sem ao menos mencionar o tópico da identidade política do autismo, onde muitos autistas e mães de autistas reivindicam a categoria como uma neurodivergência humana válida, recusando a redução do autismo a um “transtorno”. Esta luta política se fundamenta na perspectiva de que o problema real está na sociedade que não é adaptada ao corpo autista, o que por sua vez se relaciona ao modelo social da deficiência, âmbito que se torna indispensável nessa discussão a partir da Lei Nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, que reza: “A pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais” (BRASIL, Lei 12.764/2012).

 

1. Marcos legais relativos às pessoas com deficiência

Uma vez que as pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) passam a ser abrigadas nas leis específicas para as pessoas com deficiência (PCD), parece apropriado abordar as questões legais mais gerais relacionadas a esse grupo como um todo para que, depois, discorra-se sobre a legislação específica do TEA.

Em primeiro lugar, as pessoas com deficiência são aquelas que “têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas” (BRASIL, Decreto 6.949/2009). As barreiras citadas podem estar nas vias públicas e privadas, nos edifícios, nos obstáculos à expressão e ao recebimento de informações, nos transportes, nos entraves ao acesso às tecnologias e na própria discriminação (BRASIL, Lei 13.146/2015). Tal definição baseia-se no modelo social da deficiência, que reconhece o corpo e suas limitações mas que denuncia, também, essa estrutura social que dificulta a participação e oprime a pessoa com deficiência (DINIZ, 2007).

O caminho percorrido até que esse entendimento fosse amplamente difundido e garantido legalmente foi repleto de discussões, estudos e reivindicações, e revela-se a partir dos numerosos marcos legais que ou influenciaram ou trataram especificamente sobre os direitos das pessoas com deficiência. Pode-se dizer que a proclamação da Declaração dos Direitos Humanos, em 1948, foi o que fortaleceu os movimentos sociais ao redor do mundo e incentivou a implementação de tantas outras leis e declarações, como a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, de 1975, a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, de 1990 e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, de 1999 (CAPELLINI e RODRIGUES, 2014). Foi então que, no dia 11 de dezembro de 2006, realizou-se a Convenção sobre o Direito das Pessoas com Deficiência, um dos marcos legais vigentes mais importantes sobre o assunto. Como bem traz o seu artigo 1º, “o propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” (BRASIL, Decreto 6.949/2009).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 foi a primeira constituição nacional a mencionar especificamente as pessoas com deficiência e seus direitos. Dois anos depois, o Estatuto da Criança e do Adolescente é aprovado e passa a reforçar alguns dos direitos das crianças e adolescentes com deficiência, sendo adicionados e/ou atualizados ao longo dos anos, tais quais: atendimento sem discriminação ou segregação, em suas necessidades gerais de saúde e específicas de habilitação e reabilitação (art. 11, § 1º); atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino (art. 54, III) e prioridade de atendimento nas ações e políticas públicas de prevenção e proteção às famílias com crianças e adolescentes com deficiência (art. 70, parágrafo único) (BRASIL, Lei 8.069/1990).

Ainda no contexto brasileiro, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, também aborda algumas questões mais específicas das pessoas com deficiência, como a definição da educação inclusiva e sua asseguração (GIL, 2017). Em 2008, é criada a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, que vem materializar esse processo de democratização do acesso das pessoas com deficiência à educação pública brasileira (BAPTISTA e CORREIA, 2018). Logo depois, em 2009, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi ratificada no Brasil e passou a vigorar enquanto lei. Por fim, para dar efetividade às disposições da Convenção e de seu Protocolo Facultativo, foi criada, em 2015, a Lei Brasileira de Inclusão, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, que destina-se a “assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania” (art. 1º) (BRASIL, Lei 13.146/2015).

 

2. Legislação específica do TEA

É importante salientar que as pessoas com deficiência possuem os mesmos direitos de quaisquer pessoas, acrescidos dos regularizados na legislação especial, de acordo com a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Mais especificamente no caso das crianças, ainda há a proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, Lei 8.069/1990).

No entanto, em se tratando das crianças autistas, não havia legislação específica para o público. Surge, então, a necessidade de leis direcionadas à causa autista, para que tais sujeitos tivessem garantido o amplo acesso aos seus direitos fundamentais. É instituída a Lei Berenice Piana - nome da mãe de uma criança autista que auxiliou na criação dessa legislação, por meio da proposta apresentada à Comissão de Direitos Humanos do Senado -, Lei 12.764/2012, no dia 27 de dezembro de 2012. Essa lei dispõe sobre a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com o Transtorno do Espectro Autista (TEA).

A Lei, como mencionado anteriormente, equipara as pessoas com   TEA às PCD, e, portanto, toda a legislação - direitos e deveres - postulada na Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Em seu primeiro artigo, determina as características da pessoa com TEA - pessoas com "deficiência persistente e clinicamente comprovada no que se refere à interação social, bem como possuidoras de padrões restritivos e repetitivos de comportamento, com excessiva aderência à rotina e interesses fixos." (VALENTE, 2017)

Em seguida, a Lei dispõe sobre as diretrizes da Política Nacional de Proteção, destacando a importância da intersetorialidade para se desenvolver ações eficazes e políticas públicas para o atendimento não apenas no âmbito médico, mas por várias áreas ao mesmo tempo. Ainda, destaca a necessidade da participação de toda a sociedade, que deve agir tanto na formulação de políticas públicas para esse público e também no acompanhamento e na avaliação de seu desenvolvimento. Dessa forma, se garante que não apenas os profissionais da área participem e, assim, os pais de crianças autistas têm também a possibilidade de interferir no processo de criação de políticas públicas a respeito.

Depois disso, a lei fala sobre a Atenção Integral à Saúde, dando à pessoa com autismo "a garantia do diagnóstico precoce, do atendimento multiprofissional e o amplo acesso a medicamentos e nutrientes necessários" (VALENTE, 2017). Vale trazer, ainda, o direito básico da pessoa com TEA ao acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS), respeitadas suas necessidades específicas, conforme o decreto 8.368/2014.

Já a quarta diretriz, por sua vez, fala sobre o mercado de trabalho e o TEA, trazendo a necessidade da inserção e inclusão dos mesmos. A ampliação da informação em relação ao espectro autista, além de capacitação e conscientização, junto ao incentivo à pesquisa científica, são algumas das formas de expansão do conhecimento para que seja possível a diminuição do preconceito sofrido por essa população (VALENTE, 2017).

É garantido, ainda, o direito do poder público de firmar contrato tanto público quanto com convênio jurídico privado para o tratamento adequado da pessoa com TEA, garantindo assim que o atendimento e o número de profissionais especializados seja suficiente e eficaz para as múltiplas especificidades do acompanhamento de que esse público precisa - e sobre o qual detém direito. Por fim, a Lei prevê que as instituições de ensino são proibidas de recusar a matrícula de crianças com TEA, com a previsão do pagamento de multa - três a vinte salários mínimos. (VALENTE, 2017)

De forma geral, a Lei traz as diretrizes básicas a serem seguidas, ou seja, o conteúdo mínimo necessário em forma de normas gerais. Segundo Valente (2017), a eficácia da Lei pode ser dividida em eficácia jurídica e eficácia social ou efetividade. A primeira pode ser definida como a aptidão para a norma existente ser inserida nos casos concretos, e não apenas nos termos jurídicos, gerando efeitos jurídicos.

Já a eficácia social, ou efetividade, trata, além da decisão por tornar a norma juridicamente eficaz quanto o resultado dessa aplicação nos fatos concretos, seja ele existente ou não. A efetividade é, portanto, a materialização do que é previsto pela norma - a realização do próprio direito -, realizando sua função social. É preciso, portanto, que a lei atue no meio social e não apenas no âmbito teórico e quanto maior essa aplicação ao social, mais efetividade a norma tem. Portanto, o questionamento que fica para estudos futuros é: a norma jurídica atual, apesar de existente, basta ou designa uma "efetividade parcial" na sociedade?

 

Notas e Referências

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 5. ed. Porto Alegre, RS: Artmed Editora Ltda., 2014.

BAPTISTA, Gilvane Belem; CORREIA, Claudio Roberto. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008: quais origens e quais trajetórias? RPGE, Araraquara, v. 22, n. 2, p. 716-731, dez. 2018.

BARON-COHEN, Simon et al. Elevated fetal steroidogenic activity in autism. Molecular psychiatry, Berlin, Alemanha, v. 20, n. 3, p. 369-376, 2015.

BARON-COHEN, Simon et al. Why are autism spectrum conditions more prevalent in males? PLoS biology, San Francisco, CA, EUA, v. 9, n. 6, 2011.

BRASIL. Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm. Acesso em: 23 ago. 2021.

BRASIL. Lei 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm. Acesso em: 23 ago. 2021.

BRASIL. Lei 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 23 ago. 2021.

BRASIL. Lei 13.977, de 8 de janeiro de 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/31904204; Acesso em: 09 ago. 2021.

BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 23 ago. 2021.

CAPELLINI, Vera Lúcia Messias Fialho; RODRIGUES, Olga Maria Piazentin Rolim. O direito da pessoa com deficiência: marcos internacionais. 2014. Disponível em: https://acervodigital.unesp.br/bitstream/unesp/155248/1/unesp-nead_reei1_ee_d02_texto01.pdf. Acesso em: 23 ago. 2021.

DI MARTINO, Adriana et al. The autism brain imaging data exchange: towards a large-scale evaluation of the intrinsic brain architecture in autism. Molecular psychiatry, v. 19, n. 6, p. 659-667, 2014.

DINIZ, Débora. O que é deficiência? 1. ed.. São Paulo: Brasiliense, 2007.

GIL, Marta. A legislação federal brasileira e a educação de alunos com deficiência. 2017. Disponível em: https://diversa.org.br/artigos/a-legislacao-federal-brasileira-e-a-educacao-de-alunos-com-deficiencia/. Acesso em: 23 ago. 2021.

PEARSON, Amy; ROSE, Kieran. A conceptual analysis of autistic masking: Understanding the narrative of stigma and the illusion of choice. Autism in Adulthood, New Rochelle, NY, USA, v. 3, n. 1, p. 52-60, 2021.

ROGERS, Sally; DAWSON, Geraldine. Intervenção Precoce em Crianças com Autismo: Modelo Denver para a promoção da linguagem, da aprendizagem e da socialização. 1. edição. Lisboa: Lidel-Edições Técnicas, 2010.

VALENTE, Nara Luiza. A Lei 12.764/2012: uma análise da proteção jurídica ao autista. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS, nº 3, 2017, Londrina. Anais. 2017. 1-12.

 

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